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A resistência ao desafio populista

Manifestantes levando bandeiras e cartazes participam da Marcha das Mulheres próximo a Torre Eiffel na Parvis des Droits de l'Homme no dia 21 de janeiro de 2017 em Paris, França.

© 2017 Christophe Morin/IP3/Getty Images

A onda de populistas autoritários parece menos inevitável do que há um ano. Naquele momento, parecia não haver como impedir uma série de políticos ao redor do mundo que afirmavam falar em nome do “povo”, mas que angariavam seguidores por meio da demonização de minorias impopulares, atacando os princípios dos direitos humanos e alimentando a desconfiança das instituições democráticas. Hoje, a reação popular em uma ampla gama de países, reforçada em alguns casos por líderes políticos com a coragem de defender os direitos humanos, fez com que o futuro de muitas dessas agendas populistas se tornasse incerto. Onde a resistência se fez forte, os avanços populistas têm sido limitados. Mas onde a mensagem de ódio e exclusão encontra apoio, os populistas prosperam.

Ao se retirarem desta luta, muitas potências ocidentais particularmente se voltaram para dentro, deixando o mundo cada vez mais fragmentado. Com os Estados Unidos liderado por um presidente que exibe uma perturbadora simpatia por líderes autoritários, que esmagam direitos, e com o Reino Unido preocupado com o Brexit, dois tradicionais defensores dos direitos humanos internacionalmente – ainda que com suas falhas – estão frequentemente ausentes em importantes iniciativas.

Atingidos por forças políticas racistas e anti-refugiados internamente, a Alemanha, a França e seus parceiros na União Europeia nem sempre estiverem dispostos a compensar esse vácuo. Democracias como a Austrália, o Brasil, a Indonésia, o Japão e a África do Sul têm sido, na melhor das hipóteses, raramente vistas como defensores ativos dos direitos humanos.

A China e a Rússia procuraram aproveitar esse momento. Embora focados em suprimir qualquer possibilidade de protestos massivos contra a retração de suas economias e a corrupção generalizada, os presidentes Xi Jinping e Vladimir Putin têm agressivamente promovido uma agenda contra direitos nos fóruns multinacionais e forjado alianças mais fortes com governos repressivos. Sua evasão de qualquer forma de controle público atraiu a admiração de populistas ocidentais e autocratas ao redor do mundo.

A debandada de muitos governos que poderiam ter liderado a defesa enfática dos direitos humanos deixou o caminho aberto para líderes destrutivos e seus apoiadores. As atrocidades em massa proliferaram com impunidade em países como o Iêmen, a Síria, a Birmânia e o Sudão do Sul. As normas internacionais destinadas a prevenir os mais terríveis abusos e as emergentes instituições de resposta judicial a essas atrocidades, como o Tribunal Penal Internacional (TPI), estão sendo desafiados.

Neste ambiente hostil, vários pequenos e médios países começaram a assumir maiores papéis de liderança. Ao construírem amplas coligações, eles se mostraram capazes de exercer uma pressão relevante em defesa dos direitos humanos. Em alguns casos, eles contaram com o apoio de um público cada vez mais mobilizado. Eles não podem substituir completamente os poderes agora ausentes, mas seu surgimento mostra que o compromisso em defender os direitos humanos está vivo e bem.

Respondendo ao populismo

Sérios problemas estão por trás do aumento do populismo em muitas partes do mundo: o deslocamento do poder econômico e as desigualdades causadas pela globalização, automação e mudanças tecnológicas; as mudanças culturais temidas, resultantes da maior possibilidade de comunicação e mobilidade, permitindo a migração causada por guerras, pela repressão, pela pobreza e pelas mudanças climáticas; divisões sociais entre elites cosmopolitas que recebem e se beneficiam de muitas dessas mudanças e aqueles que sentem que suas vidas se tornaram mais precárias; e também a traumática onda de ataques terroristas que os demagogos usam para alimentar a xenofobia e a islamofobia.

Tratar destas questões não é algo simples, mas os populistas tendem a responder menos com propostas de soluções genuínas do que com a criminalização das minorias vulneráveis e dos segmentos desfavorecidos da sociedade. O resultado tem sido um ataque frontal aos valores de inclusão, tolerância e respeito, que constituem o cerne dos direitos humanos. De fato, certos populistas parecem apreciar a destruição dos símbolos que representam esses valores. Invocando sua própria interpretação dos interesses da maioria, esses populistas procuram substituir a ordem democrática – governo eleito com limitações impostas por leis e pelo próprio estado de direito – por um “majoritarismo” ilimitado.

Responder a este desafio populista exige não somente lidar com as legítimas preocupações que ele pressupõe, mas também reafirmar os princípios de direitos humanos que os populistas rechaçam. Isso exige o enaltecimento de governos que se mostram comprometidos e responsivos para com seus constituintes e não para com o empoderamento e o enriquecimento de seus membros. Isso exige demonstrar que todos os nossos direitos serão colocados em risco se permitirmos que governantes selecionem quais pessoas merecem o respeito por seus direitos. Isso exige lembrar às pessoas comuns que elas precisam de direitos humanos tanto quanto os dissidentes e os grupos vulneráveis.

A disposição de líderes democráticos de enfrentarem esse desafio e defenderem os direitos humanos tem oscilado. Um ano atrás, quando os populistas pareciam ter o vento a seu favor, poucos se atreveram a contestá-los. Mas desde o ano passado, isso começou a mudar, com efeitos visíveis.

Defendendo direitos

França

A França representou a reviravolta mais significativa. Em outros países europeus – a Áustria e a Holanda, principalmente – políticos centristas e da centro-direita competiram com populistas, adotando muitas de suas posições nacionalistas. Eles esperavam esvaziar de forma preventiva o apelo dos populistas, mas acabaram reforçando sua mensagem.

Emmanuel Macron adotou uma abordagem diferente durante sua campanha presidencial. Abraçou abertamente os princípios democráticos, rejeitando firmemente os esforços da Frente Nacional de fomentar o ódio contra muçulmanos e imigrantes. Sua vitória e o sucesso de seu partido nas eleições parlamentares mostraram que os eleitores franceses rejeitam massivamente as políticas excludentes da Frente Nacional.

Resta saber como Macron governará. Sua mudança para tornar permanentes muitos aspectos preocupantes da lei de emergência da França foi um preocupante passo inicial. Na política externa, ele tem exercido liderança, enfrentado governos autocráticos na Rússia, Turquia e Venezuela, e demonstrado disposição para apoiar uma atuação coletiva mais forte da União Europeia contra os ataques da Polônia e Hungria aos direitos. Mas ele tem se mostrado relutante em enfrentar os generalizados abusos na China, no Egito e na Arábia Saudita. Apesar dessas ambiguidades, Macron mostrou durante sua campanha que uma defesa vigorosa dos princípios democráticos pode atrair um amplo apoio do público.

Estados Unidos

Como reação à eleição de Donald Trump, os Estados Unidos viram uma ampla reafirmação de direitos humanos em muitos cantos. Trump ganhou a presidência com uma campanha de ódio contra imigrantes mexicanos, refugiados muçulmanos e outras minorias raciais e étnicas, bem como com um evidente desdém pelas mulheres. Uma poderosa resposta veio de organizações da sociedade civil, jornalistas, advogados, juízes, da sociedade em geral e, por vezes, até mesmo de políticos do mesmo partido de Trump.

Mesmo assim, Trump conseguiu adotar medidas de grande retrocesso por meio de decretos – deportando muitas pessoas sem levar em conta seus laços profundos com os Estados Unidos, reavivando uma cruel e desacreditada política de encarceramento em massa, relaxando a fiscalização sobre abusos policiais e restringindo o financiamento mundial para saúde reprodutiva das mulheres.

Mas a resistência limitou o dano que poderia ter sido causado, principalmente em relação aos esforços de Trump em discriminar muçulmanos que procuram visitar ou obter refúgio nos Estados Unidos, em comprometer o direito à assistência médica nos EUA, em expulsar pessoas transgêneros das forças armadas, e até, em alguns casos, expulsar imigrantes residentes de longa data.

O secretário de Estado, Rex Tillerson, rejeitou em grande parte a promoção de direitos humanos como um elemento da política externa dos EUA, ao mesmo tempo em que reduziu o papel dos EUA no exterior de forma mais ampla ao comandar um desmantelamento inédito do Departamento de Estado. Ele se recusou a preencher muitos cargos sênior, demitiu vários diplomatas veteranos, cortou o orçamento e deixou o departamento à deriva. Desolados, muitos diplomatas de carreira e funcionários de nível médio se demitiram.

Mas enquanto Trump abraçava um autocrata após o outro, alguns dos funcionários do Departamento de Estado que restaram, por vezes com o apoio do Congresso, fizeram o possível para evitar um completo abandono dos princípios de direitos humanos que desempenharam um papel de alguma forma importante na orientação da política externa dos EUA durante quatro décadas. Foram eles que permitiram que Washington ainda que ocasionalmente desempenhasse um papel importante, como pelo uso de ameaças de sanções direcionadas contra os militares birmaneses responsáveis pela limpeza étnica da minoria Rohingya.

Alemanha

A Alemanha ocupou as manchetes dos jornais ao longo do ano passado quando o partido Alternative for Germany (AfD, na sigla em alemão) se tornou o primeiro partido de extrema direita a alcançar um lugar no parlamento depois de décadas. Com a ascensão do AfD, houve fragmentação do apoio à coalizão governista que inclui o partido da chanceler Angela Merkel, União Democrata Cristã, complicando sua tarefa de formar uma nova coalizão governamental. A preocupação de Merkel com a política doméstica, e sua contínua defesa de sua corajosa decisão tomada em 2015 de acolher um grande número de solicitantes de refúgio na Alemanha, ironicamente privaram a Europa de uma voz ativa na defesa dos direitos dos refugiados e imigrantes – a questão mais disputada do continente atualmente. Isso também deixou Macron sem seu mais destacado parceiro europeu na resistência ao populismo autoritário.

No entanto, as eleições alemãs também mostraram uma lição sobre como lidar com a extrema direita. Para além das regiões economicamente enfraquecidas no leste do país, onde o racismo generalizado e a xenofobia nunca foram efetivamente tratados desde a queda do muro de Berlim, foi na Baviera rica, onde o AfD ganhou mais votos. Foi nesta região, também, onde o parceiro de Merkel no governo, a União Social Cristã, adotou mais as posições nacionalistas do AfD do que o próprio partido de Angela Merkel. O confronto baseado em princípios, em vez da competição calculada, acabou sendo a resposta mais efetiva.

Polônia e Hungria

A Europa Central tornou-se um terreno especialmente fértil para os populistas, uma vez que certos líderes se utilizam do medo da migração em outras partes da Europa para minar os controles sobre seus próprios poderes internamente. Mas lá, também, os populistas encontraram resistência.

Na Polônia, em meio a grandes protestos públicos e fortes críticas internacionais, incluindo por parte das instituições da UE, o presidente Andrzej Duda vetou a tentativa inicial do governo de minar a independência do judiciário e o estado de direito, ainda que a alternativa por ele proposta seja falha.

Na Hungria, a ameaça de ação judicial da EU, bem como a crítica  internacional – inclusive dos Estados Unidos –, impediram os planos do governo de fechar a Universidade da Europa Central, um pilar do pensamento independente que se opôs à "democracia iliberal" defendida pelo primeiro ministro Viktor Orban. No caso da Polônia, pelo menos, há um crescente reconhecimento por parte das instituições da UE e de alguns Estados-membros de que os ataques ao regime democrático representam uma ameaça para a própria UE. E dada a posição da Polônia e da Hungria como principais beneficiários do financiamento da UE, um debate se iniciou sobre a questão de condicionar o acesso ao financiamento ao respeito dos valores básicos da UE.

Venezuela

Na América Latina, o presidente Nicolás Maduro continuou a eviscerar a democracia e a economia da Venezuela sob o pretexto de defender os venezuelanos e de agir contra aqueles a quem ele chama de imperialistas. Mas à medida que seu governo se tornou mais brutal e autocrático, sua administração corrupta e incompetente da economia tornou-se dolorosamente aparente. Esta nação potencialmente rica foi depauperada, apesar das suas vastas reservas de petróleo, com muitas pessoas desesperadamente à procura de alimentos e remédios em meio a uma hiperinflação furiosa.

As pessoas, em grandes números, tomaram as ruas para protestar. Alguns funcionários deixaram de apoiar o governo. Um número inédito de países latino-americanos irrompeu sua tradicional relutância para criticar a repressão de um país vizinho. Outros seguiram essa tendência, incluindo a UE.

Maduro conseguiu permanecer no cargo, em grande parte devido à repressão violenta que ele se dispôs a empregar. Aproveitando-se de uma Suprema Corte submissa e de uma Assembleia Constituinte que ele criou para assumir os poderes legislativos da Assembleia Nacional controlada pela oposição, Maduro conduziu uma brutal repressão à dissidência. Porém, à medida que os venezuelanos continuam a caminhar rumo à pobreza e miséria, não está claro por quanto tempo eles vão deixar Maduro se manter no poder.

Uma luta que merece apoio

Nenhum desses exemplos de resistência aos líderes populistas significa sucesso garantido. Uma vez no poder, populistas têm a considerável vantagem de poderem desfrutar do poder do Estado. Mas a resistência mostra que há uma luta em curso, que muitas pessoas não ficaram silenciosas, de braços cruzados, enquanto autocratas atacam seus direitos e liberdades fundamentais.

Populistas e autocratas preenchem um vácuo

Por outro lado, onde a resistência doméstica foi reprimida e a preocupação internacional ausente, populistas e outras forças contrárias a direitos prosperaram. O presidente Recep Tayyip Erdoğan, por exemplo, dizimou o sistema democrático da Turquia impunemente, já que a UE deslocou seu foco a garantr sua ajuda na contenção do grande fluxo de refugiados à Europa. O presidente Abdel Fattah al-Sisi esmagou a dissidência pública no Egito, com pouca interferência dos EUA ou da UE. Eles caíram em sua narrativa de combate ao terrorismo e garantia da estabilidade, ainda que sua implacável supressão de qualquer opção islâmica no processo político do país fosse exatamente o que os islamistas militantes queriam.

Com a aparente conivência dos aliados ocidentais, o novo príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohamed bin Salman, liderou uma coalizão de Estados árabes em uma guerra contra os Houthi e seus aliados no Iêmen, que inclui bombardeios e bloqueios de civis, agravando sobremaneira a maior crise humanitária internacional. A preocupação com a contenção da migração por mar através da Líbia levou a UE – particularmente a Itália – a treinar, financiar e orientar os guardas costeiros líbios para fazerem o que nenhum navio europeu poderia legalmente fazer: retornar migrantes e refugiados desesperados, à força, a horríveis condições de trabalho forçado, estupro e maus tratos brutais.

Os esforços de Putin para reprimir a oposição ao seu longo governo encontraram pouca resistência dos governos estrangeiros mais focados em sua conduta na Ucrânia e na Síria do que na própria Rússia. Xi Jinping encontrou pouca resistência a sua imposição da mais intensa repressão desde a brutal supressão do movimento democrático da Praça Tiananmen (Paz Celestial) de 1989 porque outras nações temiam pôr em perigo os lucrativos contratos chineses ao defenderem os direitos do povo chinês.

Na verdade, quando houve pouca resposta internacional ao seu comportamento na esfera doméstica, governos repressivos sentiram-se encorajados a manipular e obstruir as instituições internacionais que podem defender os direitos.

A China prendeu cidadãos que esperavam poder se engajar com as Nações Unidas para tratar da violação de direitos no país. A Rússia fez uso de no mínimo 11 vetos para bloquear qualquer tentativa do Conselho de Segurança da ONU de lidar com crimes de guerra do governo sírio. A Rússia também ameaçou retirar-se de um importante órgão europeu de supervisão de direitos humanos se sanções sobre a ocupação da Crimeia fossem mantidas, enquanto o Azerbaijão subornava alguns membros desse órgão e a Turquia ameaçava reter sua contribuição orçamentária. Burundi ameaçou os próprios investigadores da ONU com retaliação.

Birmânia e os Rohingya

O custo de não enfrentar os ataques populistas contra os direitos humanos foi talvez mais forte na Birmânia. A danosa retórica nacionalista cada vez mais propagada por extremistas budistas, oficiais de alta patente das forças militares birmaneses e alguns membros do governo liderado por civis ajudaram a acelerar uma campanha de limpeza étnica contra muçulmanos Rohingya após ataques de grupos militantes a postos de segurança. Uma campanha de massacres conduzida pelo exército, os casos generalizados de estupro e incêndios massivos em pelo menos 340 aldeias provocaram a fuga por sobrevivência de mais de 640 mil refugiados Rohingya ao país vizinho Bangladesh. Estes são os mesmos crimes que a comunidade internacional prometeu nunca mais tolerar.

No entanto, as nações ocidentais que há muito demonstravam um ativo interesse pela Birmânia foram relutantes em agir, mesmo para impor sanções direcionadas, financeiras e de viagens aos generais do exército responsáveis por esses crimes contra a humanidade. Em parte, essa reticência foi causada pela concorrência geopolítica com a China pelo apoio do governo birmanês.

Também desempenhou um papel nesse contexto a indevida deferência dada a Aung San Suu Kyi, a líder civil de facto da Birmânia, muito embora não tenha controle real sobre os militares e não tenha demonstrado interesse em pagar o preço político pela defesa de uma minoria impopular. O resultado foi a mais rápida fuga massiva forçada desde o genocídio ruandês, com pouca esperança imediata de um retorno seguro e voluntário dos Rohingyas ou de que as pessoas responsáveis pelas atrocidades que os levaram a fugir sejam trazidas à justiça.

Nações da Organização de Cooperação Islâmica (OCI) convocaram uma sessão especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU, na qual eles apoiaram uma resolução condenando os crimes contra a humanidade na Birmânia. O esforço foi notável porque representou uma instância rara em que os membros da OCI apoiaram uma resolução criticando um país em particular.

Resistir pode funcionar

África e o TPI

Uma das respostas mais encorajadoras aos autocratas anti-direitos pôde ser encontrada na África. O ano já era notável pela queda de dois tiranos de longa data. O presidente da Gâmbia, Yahya Jammeh, perdeu uma eleição livre e justa para Adama Barrow, e quando ele se recusou a aceitar o resultado, foi levado a deixar o cargo pela ameaça das tropas da África Ocidental.

O presidente do Zimbábue, Robert Mugabe, deixou o poder após um golpe, embora substituído por seu vice-presidente, Emmerson Mnangagwa, um líder militar com longo histórico de abusos. Ambos os países viram grandes protestos públicos contra esses tiranos de longa data.

No entanto, a defesa africana dos direitos foi muito impressionante em resposta aos ataques populistas contra a justiça internacional. Há não mais que um ano, muitos líderes africanos, alguns com as mãos manchadas de sangue e temendo responsabilização criminal, planejavam um êxodo em massa de seus países do Tribunal Penal Internacional. Usando a retórica populista contra o que eles chamavam de neocolonialismo, esses líderes procuraram retratar o TPI como um órgão anti-africano porque, tendo levado a sério crimes cometidos contra povos africanos, o TPI concentrou sua atenção em líderes africanos responsáveis por atrocidades. (O alcance da jurisdição do TPI  também foi limitado pela recusa de alguns governos de ratificarem o tratado de sua constituição e pela relutância do Conselho de Segurança da ONU de encaminhar outras situações para investigação).

Mas o êxodo em massa tornou-se um fracasso em massa quando apenas o Burundi se retirou, em um esforço sem sucesso para suspender a investigação do TPI sobre supostos crimes contra a humanidade cometidos sob a administração de Pierre Nkurunziza, quando ele violentamente ampliou seu mandato como presidente. A Gambia reverteu sua retirada anunciada depois que o presidente Barrow tomou posse. Os tribunais da África do Sul bloquearam, pelo menos temporariamente, a tentativa do presidente Jacob Zuma de se retirar do TPI depois de ele sofrer acusações de ter violado uma ordem judicial para evitar que o presidente sudanês Omar al-Bashir, para quem havia mandados do TPI, fugisse da África do Sul durante uma visita para evitar a prisão.

Um grande apoio popular ao TPI por grupos cívicos em toda a África ajudou a persuadir a maioria dos governos africanos a continuar como membros do tribunal. O promotor do TPI também buscou ampliar o alcance do tribunal pedindo permissão aos juízes para investigar crimes de todos os lados do conflito no Afeganistão, incluindo a tortura impune cometida por soldados e agentes de inteligência dos EUA.

O grande papel dos pequenos Estados

No ano passado, houve uma impressionante disposição por parte de pequenos e médios estados a assumirem posições de liderança, enquanto as grandes potências ficavam em silêncio face a massivas atrocidades ou até mesmo obstruíam os esforços de resposta.

Esta não é a primeira vez que os Estados menores assumiram a liderança em questões de direitos. O TPI, o Tratado de Proibição de Minas Terrestres, a Convenção sobre Munições Cluster, o Protocolo Facultativo sobre Crianças Soldados e a Convenção Internacional contra o Desaparecimento Forçado foram todos garantidos em grande parte por coalizões globais de pequenos e médios estados que operam sem, ou apesar das, grandes potências. No entanto, a disposição dessas vozes alternativas em ocupar um lugar central foi particularmente importante no ano passado, já que as principais potências em grande parte abandonaram o cenário ou tentaram contorná-lo.

Iêmen

O esforço no Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas para instaurar uma investigação internacional independente sobre violações  no Iêmen foi ilustrativo. Uma coalizão de estados árabes liderados pela Arábia Saudita devastou civis iemenitas; conduziu ataques aéreos a casas, mercados e hospitais; e impediu o urgente trabalho da ajuda humanitária e o acesso a outros bens. Como resultado, 7 milhões de pessoas enfrentavam fome e o país registrava quase 1 milhão de casos suspeitos de cólera em 2017.

Forças da oposição Houthi e seus aliados também fizeram uso de minas terrestres, recrutaram crianças soldados e bloquearam ajuda. Apesar desta grave situação, a proposta de uma investigação recebeu, no melhor dos casos, apoio modesto dos Estados Unidos, Reino Unido e França – todos eles importantes vendedores de armas à Arábia Saudita. Nenhum desses países estava disposto a tomar um posicionamento  público sobre isso. Nesse vácuo, a Holanda assumiu a liderança, contando com o apoio do Canadá, Bélgica, Irlanda e Luxemburgo.

A tarefa não foi fácil. A Arábia Saudita ameaçou romper laços diplomáticos e econômicos com qualquer país que apoiasse a investigação. No entanto, em parte por causa dessa ameaça e por sua mensagem implícita de que ricos deveriam estar acima do escrutínio de suas atrocidades, a Arábia Saudita foi obrigada a se sujeitar a uma investigação da ONU, uma vez que ficou claro que provavelmente perderia uma votação disputada. A esperança agora é que um grupo de investigadores monitorando as ações das partes envolvidas no conflito do Iêmen leve a um melhor comportamento.

Síria

No caso da Síria, os vetos reiterados e as ameaças de veto da Rússia no Conselho de Segurança da ONU, às vezes acompanhados pela China, impediram a única rota imediatamente disponível para o Tribunal Penal Internacional. Apesar de um crescente esforço internacional para desencorajar o uso do veto em situações de atrocidades massivas, a Rússia e a China, bem como os Estados Unidos, não apoiaram essas iniciativas.

Para romper esse impasse, foi lançada uma ideia para contornar o sistema de veto do Conselho de Segurança, por meio de uma ação na Assembleia Geral da ONU, na qual nenhum Estado tem poder de veto. A liderança nessa inciativa veio do pequeno Liechtenstein, que orquestrou uma ampla coalizão de governos. Com o apoio desta coalização, a Assembleia Geral terminou votando 105 a 15 para estabelecer um mecanismo para coletar provas e elaborar petições a serem apresentadas judicialmente quando essas vias se tornaram possíveis – um compromisso importante para garantir justiça. Isso também abre caminho para que a Assembleia Geral possivelmente crie um tribunal especial para a Síria se a Rússia continuar a bloquear as vias existentes para garantir justiça no TPI.

A importância da responsabilização criminal ficou clara quando deparamos com o uso contínuo pelo governo sírio de agentes nervosos proibidos, como o sarin, em 2017, apesar de supostamente ter abandonado o uso de armas químicas após ter notoriamente utilizado sarin em Ghouta oriental, em agosto de 2013. A Rússia ofereceu uma outra versão da história em relação a um episódio ocorrido em abril de 2017 na cidade de Khan Sheikhoun no Nordeste síria – de que uma bomba convencional síria teria supostamente atingido um estoque de sarin que era mantido por rebeldes. Mas como essa teoria foi refutada de forma conclusiva, a Rússia respondeu vetando a continuação de uma investigação da ONU. Quando um membro permanente do Conselho de Segurança está disposto a usar seu poder para acobertar as atrocidades de um aliado – neste caso, ao mesmo tempo que fornece apoio militar – é particularmente importante explorar caminhos alternativos para defender os direitos mais básicos.

Filipinas

As Filipinas apresentaram um exemplo particularmente cínico e letal de um desafio populista aos direitos humanos. Assim como o fez anteriormente enquanto era prefeito da cidade de Davao, o presidente Rodrigo Duterte assumiu o cargo incentivando a polícia a matar suspeitos de crimes relacionados a drogas. O resultado foi uma epidemia de tiroteios policiais – muitas vezes retratados como "confrontos", mas repetidamente demostrando serem execuções sumárias – que deixaram mais de 12 mil pessoas mortas em cerca de um ano e meio desde que Duterte assumiu a presidência. A grande maioria das vítimas eram jovens moradores de favelas nas grandes cidades – pessoas que não atraem nenhuma simpatia por muitos filipinos.

A disputa territorial em curso entre a China, os Estados Unidos e as Filipinas sobre o Mar da China Meridional deixou pouco espaço para a preocupação com as execuções. Donald Trump, como fez em outras circunstâncias, parecia principalmente admirar as qualidades autoritárias de Duterte.

Em vez disso, uma importante pressão para cessar esse massacre veio de um grupo de estados, liderados pela Islândia, que emitiram declarações no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Duterte tentou desprezar esses casos de morte, mas acabou, sob pressão, transferindo autoridade sobre o combate às drogas, pelo menos temporariamente, da polícia letal para uma agência de drogas muito mais respeitadora de direitos. Quando a polícia foi retirada das operações antidrogas, as execuções caíram rapidamente.

Direitos das mulheres

Vários dos populistas de hoje em dia exibem uma inclinação misógina. No ano passado, a Rússia descriminalizou certos atos de violência doméstica. A Polônia, que já possui uma das leis de aborto mais restritivas da Europa, agora está limitando o acesso à contracepção de emergência.

Sob Trump, o governo dos EUA reintroduziu uma ampliada "Global Gag Rule", que reduz consideravelmente o financiamento a serviços de saúde essenciais para mulheres e meninas no exterior.

No entanto, foram crescentes os atos de demonstração de resistência. A Marcha das Mulheres, convocada inicialmente como uma resposta americana à eleição de Trump, se transformou em um fenômeno global, com milhões de pessoas marchando em apoio aos direitos humanos das mulheres.

O primeiro-ministro canadense Justin Trudeau e o presidente francês Macron se identificaram como feministas, com o Canadá fazendo da busca por igualdade de gênero uma parte central de seus programas de ajuda e a França anunciando novas medidas para combater a violência de gênero e o assédio sexual. Os governos holandês, belga e escandinavo lideraram os esforços para estabelecer um fundo internacional de direitos reprodutivos para substituir as perdas do financiamento dos EUA por conta da Global Gag Rule – e a Suécia adotou uma "política externa feminista" que prioriza os direitos das mulheres e meninas em lugares como a Arábia Saudita.

Respondendo em grande parte à mobilização de ativistas dos direitos das mulheres, três estados do Oriente Médio e do Norte da África – Tunísia, Jordânia e Líbano – derrubaram dispositivos em seus códigos penais que permitiam que estupradores escapassem da punição casando com suas vítimas.

Direitos LGBT

As minorias sexuais e de gênero foram um alvo de ataques comuns de governos que procuram angariar apoiadores conservadores, muitas vezes como uma distração para mascarar seus fracassos. Seja Putin na Rússia, Al-Sisi no Egito ou Mugabe no Zimbabwe, líderes tentaram alimentar o pânico moral para garantirem ganhos políticos próprios às custas de ataques a pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT). A polícia na Indonésia, na Tanzânia e no Azerbaijão atacou pessoas LGBT em público e invadiu espaços privados impunemente.

Independentemente da forma, a aumentada perseguição de pessoas LGBT é um bom indicador de que o governo está fracassando em cumprir as expectativas do público. No entanto, a suposição de que a perseguição a pessoas LGBT será inevitavelmente recebida com aprovação tem se tornado cada vez mais incerta.

A maioria dos países latino-americanos avançou no campo de direitos LGBT nos fóruns internacionais, juntando-se ao Japão e muitos outros países da América do Norte e da Europa. Moçambique, Belize, Nauru e Seychelles descriminalizaram, nos últimos anos, as relações entre pessoas do mesmo sexo.

Essa resistência esteve presente mesmo na Rússia. A detenção, a tortura, o desaparecimento forçado e o assassinato de homossexuais pelas forças de segurança sob o presidente checheno Ramzan Kadyrov enfrentaram uma indignação tão generalizada que Putin foi obrigado a conter seu aliado, acabando com esse pesadelo nesta república do sul da Rússia. No entanto, em outros lugares, outras prioridades impediram o tratamento do tema, como na resposta às repressões anti-LGBT no Egito, onde doadores pareciam relutantes em suscitar a questão por medo de ofenderem um aliado no combate ao terrorismo.

Hora de agir, não de se desesperar

A principal lição do ano passado é que, apesar das consideráveis dificuldades, a defesa dos direitos humanos pode ter sucesso se os esforços apropriados forem feitos. Os populistas oferecem respostas superficiais a problemas complexos, mas grande parte da sociedade, quando lembrada dos princípios dos direitos humanos que estão em jogo, pode ser convencida a rejeitar a criminalização de minorias impopulares promovida por populistas e os esforços que estes empregam para minarem os mecanismos de fiscalização e controle dos abusos do governo.

O foco das potências ocidentais em seus problemas domésticos moldado pela luta sobre o populismo levou a um mundo cada vez mais fragmentado, onde muitas vezes as atrocidades em massa são deixadas impunes. Ainda assim, os pequenos e médios países que respeitam princípios podem fazer a diferença se reunirem forças e atuarem estrategicamente.

Uma avaliação justa das perspectivas globais para os direitos humanos deve suscitar preocupações, mas não a desistência – um apelo à ação e não um grito de desespero. A medida que entramos no 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o desafio é aproveitar as consideráveis oportunidades que ainda existem para responder aos que reverteram difíceis conquistas.

As normas de direitos humanos fornecem uma orientação, mas tornam-se operacionais apenas se encontrarem entre seus defensores governos e pessoas comuns. Cada um de nós tem um papel a desempenhar. O ano passado mostra que os direitos podem ser protegidos de ataques populistas. O