Polícia colombiana mantêm guarda em frente a pessoas em fila tentando entrar na Colômbia pela fronteira venezuelana, na ponte internacional Simom Bolivar, em Cucuta, Colômbia. 24 de janeiro de 2018.

O êxodo venezuelano

A necessidade de uma resposta regional a uma crise migratória sem precedentes

Polícia colombiana mantêm guarda em frente a pessoas em fila tentando entrar na Colômbia pela fronteira venezuelana, na ponte internacional Simom Bolivar, em Cucuta, Colômbia. 24 de janeiro de 2018. © 2018 Carlos Garcia Rawlins/Reuters

 

Síntese

O atual êxodo de venezuelanos gerou a maior crise migratória desta natureza na história recente da América Latina. De acordo com as Nações Unidas, mais de 2,3 milhões de venezuelanos deixaram seu país desde 2014, além de muitos outros que deixaram o país, mas cujos casos não foram registrados pelas autoridades.

Os venezuelanos têm deixado o seu país por diferentes motivos. A grave escassez de medicamentos, suprimentos médicos e alimentos torna extremamente difícil para muitas famílias ter acesso a cuidados básicos de saúde e garantir a alimentação de seus filhos. Uma repressão implacável do governo tem resultado em milhares de detenções arbitrárias, centenas de casos de civis julgados por tribunais militares, casos de tortura e outras violações contra pessoas detidas. Prisões arbitrárias e abusos por parte das forças de segurança, inclusive pelos serviços de inteligência, continuam. As taxas extremamente altas de crimes violentos e a hiperinflação também são fatores centrais na decisão de muitas pessoas de deixar o país.

Este relatório oferece uma visão geral sobre onde estão vivendo os mais de 2 milhões de venezuelanos que deixaram o país desde 2014 –dos quais, pelo menos metade no último ano e meio –, as condições que enfrentam, suas perspectivas de regularizar sua situação migratória nos países que os acolheram, e os padrões internacionais aplicáveis que devem orientar a resposta dos governos que os recebem.

Dada a escala e a complexidade da migração venezuelana no âmbito regional, os governos devem unir esforços para adotar uma resposta coletiva e coordenada. Particularmente, os governos devem considerar adotar:

  • Um regime regional de proteção temporária, que garantiria a todos os venezuelanos a regularização de sua situação migratória por período determinado, pelo menos enquanto aguardam o julgamento de seus pedidos individuais de proteção;
  • Um mecanismo regional para distribuir os custos financeiros e a efetiva recepção dos venezuelanos que fogem de seu país, de forma equitativa; e
  • Estratégias multilaterais efetivas para enfrentar as causas que levam tantos venezuelanos a fugirem de seu país, incluindo a adoção e aplicação de sanções específicas, como o congelamento de ativos e o cancelamento de vistos de importantes autoridades venezuelanas implicadas em graves violações de direitos humanos.

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O fluxo massivo de pessoas saindo da Venezuela é um dos maiores desafios que os governos das Américas enfrentam hoje. Nos últimos dois anos, muitos governosfizeram esforços excepcionais para acolher venezuelanos fugindo de perseguições, violência, e severas carências materiais. Mais recentemente, no entanto, alguns países vêm endurecendo suas políticas migratórias, tornando mais difícil aos venezuelanos formalizarem sua situação. Algumas dessas medidas podem fragilizar a proteção de direitos de venezuelanos solicitantes de refúgio. Episódios recentes de violência xenofóbica, e um clima que ameaça dar mais espaço a ataques desse tipo, também são uma preocupação crescente.

A crise política, econômica, de direitos humanos e humanitária na Venezuela cria uma combinação de fatores que leva os venezuelanos a deixarem seus lares, incapazes ou sem o desejo de voltar. Alguns fatores podem imediatamente qualificar uma pessoa como refugiado, enquanto para outras o impacto cumulativo de diferentes fatores pode ensejar uma válida solicitação de refúgio. Em outros casos, indivíduos fugindo da Venezuela podem não preencher os requisitos para ter reconhecida sua condição como refugiado, mas enfrentariam grandes dificuldades na Venezuela, se forçados a voltar, e têm urgente necessidade de assitência humanitária nos países para onde migraram.

Nos termos da Convenção sobre Refugiados de 1951, o status de refúgio é consequência de um fundado temor de perseguição racial, religiosa, política, ou por outras motivações. Na América Latina, no entanto, normas regionais de caráter não vinculante, bem como a legislação doméstica de alguns países, ampliaram as condições de elegibilidade para o refúgio.

Em particular, 15 Estados da região incorporaram a Declaração de Cartagena de 1984, que oferece diretrizes aos Estados latinoamericanos no processo de desenvolverem marcos regulatórios de para proteção de refugiados. Adicionalmente a suas obrigações sob a Convenção sobre Refugiados, os governos desses países não podem forçar o retorno de pessoas a seu país de origem se cumprirem os critérios para a caracterização de refúgio nos termos da Declaração.

Particularmente relevante à situação da Venezuela, a Declaração de Cartagena considera como refugiados pessoas fugindo de “violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública”. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refúgio (ACNUR), interpretando o sentido de “outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública”, observou que esta motivação é a menos frequentemente aplicada por órgãos nacionais responsáveis pela análise de solicitações de refúgio, sob a definição de Cartagena. Estados precisam considerar cuidadosamente, em alguns casos sem precedentes domésticos nos quais se apoiar, a extensão em que suas leis domésticas abarcam válidas solicitações de refúgio por venezuelanos que fugiram de seu país por razões humanitárias originadas na atual crise. Em recente decisão sobre uma medida liminar requerida pelo governo do estado de Roraima, Brasil, a Ministra Rosa Weber do Supremo Tribunal Federal determinou que a incorporação da definição expandida da Declaração de Cartagena gera um “dever de proteção humanitária” em relação aos venezuelanos que solicitam refúgio no Brasil.

O ACNUR, por sua vez, argumentou que “as amplas circunstâncias que levaram ao fluxo de saída de nacionais venezuelanos se enquadrariam no espírito da Declaração de Cartagena”.

Além disso, o ACNUR declarou que, embora nem todos os venezuelanos tenham deixado o país por motivos relacionados a refúgio, "está ficando cada vez mais claro que um número significativo [de venezuelanos] precisa de proteção internacional", e agora eles não podem ou não desejam retornar.

Alguns governos sul-americanos, apesar dos enormes desafios, têm feito esforços consideráveis para receber os venezuelanos, inclusive adotando regras especiais para lhes garantir permissão legal de residência, além da possibilidade de solicitarem refúgio. Essas permissões têm possibilitado a regularização da situação migratória de centenas de milhares de venezuelanos, ajudando-os a se estabelecerem no exterior, a trabalharem e terem acesso a serviços básicos. Ainda assim, venezuelanos por vezes relataram dificuldades em obtê-las, devido aos custos proibitivos ou exigências de documentos que não puderam trazer da Venezuela e não conseguem obter no exterior.

Alguns desses governos, entretanto, recentemente passaram a adotar medidas que, na prática, tornam extremamente difícil a obtenção dessas permissões. Por exemplo, Chile, Peru, e Equador anunciaram que passariam a requerer a venezuelanos que apresentem passaporte para que possam solicitá-las. Esta é uma medida adotada para garantir que os respectivos governos possam verificar a identidade dos venezuelanos que solicitam permanência legal. Apesar de os governos peruano e equatoriano terem parcialmente recuado após duras críticas, é importante ressaltar que essas medidas representam um obstáculo intransponível para muitos. Para um cidadão comum na venezuela, obter um passaporte na Venezuela para o cidadão comum é muito difícil e em alguns casos chega a levar mais de dois anos.

No mais, centenas de milhares de venezuelanos permanecem em situação irregular, o que dificulta muito que consigam obter autorização para trabalhar, matricular seus filhos na escola e acessar serviços de saúde. Isso os torna mais vulneráveis à exploração sexual e laboral, ao tráfico de pessoas, e também menos propícios a denunciarem abusos às autoridades competentes.

No Caribe, onde vários governos têm laços econômicos e políticos estreitos com o governo venezuelano, nenhum país adotou oficialmente uma permissão especial à residência legal de venezuelanos e a maioria dos países não tem leis para regulamentar o processo de solicitação de refúgio no geral. Em alguns casos, venezuelanos com certificados de refúgio emitidos pelo ACNUR foram detidos ou deportados à Venezuela e, em outros casos, venezuelanos sofreram perseguição ou foram vítimas de comportamentos xenófobos.

Em julho e agosto de 2018, a Human Rights Watch conduziu uma investigação nas fronteiras entre Colômbia e Venezuela e entre Brasil e Venezuela, onde entrevistamos funcionários da ONU, agentes governamentais e dezenas de venezuelanos que tinham cruzado a fronteira. O relatório também é baseado em entrevistas adicionais conduzidas pela Human Rights Watch por telefone, e-mail, Skype ou mensagens de texto com venezuelanos que recentemente deixaram seu país, além de advogados, especialistas e ativistas que monitoram a situação da imigração venezuelana em países da América do Sul e Caribe. Salvo quando explicitado de maneira contrária, as informações deste relatório são baseadas em entrevistas da Human Rights Watch com especialistas com conhecimento específico sobre as condições em seus países respectivos; todos os especialistas pediram que mantivéssemos o anonimato. O relatório também se baseia em uma revisão completa das informações oficiais publicadas por autoridades governamentais e pelo ACNUR.

 

O contexto da emigração venezuelana

De acordo com as Nações Unidas, mais de 2,3 milhões de venezuelanos deixaram a Venezuela entre 2014 e 2017.[1] No entanto, considerando o número de venezuelanos que deixam o seu país cruzando a fronteira por caminhos não oficiais e daqueles que ainda não conseguiram regularizar sua situação migratória, é provável que o número de venezuelanos que tenham deixado o país nos últimos anos seja ainda maior. A população total da Venezuela é estimada em cerca de 32 milhões.

Segundo o ACNUR, mais de 298.000 venezuelanos são solicitantes de refúgio e mais de 567.000 obtiveram outras formas de permissão legal para residência em diversos países, o que significa que os demais– mais de um milhão de venezuelanos – permanecem em situação irregular.[2]

Onde está vivendo a maioria dos venezuelanos que deixou o seu país?

Os países que mais receberam venezuelanos desde 2014 são:

  • Colômbia: estima-se que 1 milhão de pessoas tenham se mudado da Venezuela para a Colômbia e lá permanecido entre março de 2017 e junho de 2018, de acordo com um relatório do governo colombiano. As autoridades colombianas informaram à época que o número incluía 442 mil venezuelanos no país que não possuíam permissão legal de permanência, 376 mil com situação migratória regular e 250 mil colombianos que estavam na Venezuela mas retornaram à Colômbia.[3] (Desde então, o governo colombiano tem concedido permissão especial de permanência aos 442.000 venezuelanos que se registraram junto ao governo). O número real de venezuelanos na Colômbia é provavelmente muito maior, visto que muitos chegam ao país pelos mais de 270 pontos de travessia não oficial ao longo da fronteira.
  • Peru: Um número estimado de 395.000 venezuelanos está vivendo no Peru[4]. Mais de 126.000 venezuelanos buscam refúgio no Peru, o maior número de venezuelanos solicitantes de refúgio registrados em qualquer outro país. Além disso, 46.200 venezuelanos receberam uma permissão temporária especial de permanência.[5]
  • Equador: Um número estimado de 250.000 venezuelanos chegou ao Equador.[6] Estima-se que pelo menos 83.400 obtiveram permissão de residência ou visto, e mais de 7.100 solicitaram refúgio.[7]
  • Chile: mais de 84.000 venezuelanos haviam recebido permissão legal para residir no Chile em dezembro de 2017.[8]
  • Argentina: quase 78.000 haviam recebido permissão legal para residir na Argentina em maio de 2018, e mais de 400 solicitaram refúgio até junho.[9]
  • Estados Unidos: havia mais de 72.700 solicitações de refúgio por venezuelanos nos Estados Unidos em junho de 2018.[10] É importante notar que esse número representa casos, e não indivíduos – portanto, o número de pessoas representadas por esse número é, sem dúvida, maior.
  • Panamá: mais de 7.100 venezuelanos solicitaram refúgio e 51.400 buscavam alternativas para permanência legal no Panamá em março de 2018.[11]
  • Brasil: mais de 32.700 venezuelanos solicitaram refúgio e outros 25.300 obtiveram permissão para residência temporária no país até abril de 2018.[12]
  • México: aproximadamente 25.000 venezuelanos tinham permissão legal de residência até abril de 2018, e outros aproximados 6.900 eram solicitantes de refúgio em julho.[13]
  • Países do sul do Caribe: aproximadamente 98.500 venezuelanos estão vivendo no sul do Caribe – a maioria em Trinidade e Tobago (40.000), Aruba (20.000) e Guiana (15.000).[14]
  • República Dominicana: há aproximadamente 25.800 venezuelanos vivendo no país, de acordo com um levantamento oficial do governo.[15]

O número de venezuelanos solicitantes de proteção internacional na União Europeia (UE) aumentou de 325 em 2014 para 11.980 em 2017.[16] Em abril de 2018, a Venezuela apareceu pela primeira vez na lista dos cinco principais países de origem dos solicitantes de refúgio na UE. Durante aquele mês, 2.324 venezuelanos entraram com pedidos de proteção internacional na União Europeia, um aumento de 62% em relação a março. Em junho, solicitantes venezuelanos entraram com menos pedidos que em maio (quando entraram com 3.070 pedidos), mas o total de pedidos ainda foi muito maior do que no começo do ano. [17] Os venezuelanos tiveram uma parcela muito pequena de solicitações repetidas, o que sugere que sejam recém-chegados à União Europeia.

Somente em 2016 e 2017, mais de 40.000 venezuelanos ingressaram na Espanha, onde o maior número de venezuelanos chegou à Europa.[18] Ao longo desses anos, mais venezuelanos solicitaram refúgio que qualquer outra nacionalidade. De acordo com estatísticas oficiais, 10.350 venezuelanos solicitaram refúgio em 2017 – comparado à 3.960 em 2016 e 596 em 2015.[19] Mais de de 26.000 venezuelanos solicitaram refúgio na Espanha desde 2014.[20]

 

Legislação internacional aplicável

Alguns venezuelanos podem se qualificar como refugiados conforme a definição da Convenção de Refugiados de 1951. Alguns outros podem ser igualmente considerados refugiados segundo a definição mais ampla de refúgio da Declaração de Cartagena, incorporada ao marco legal de 15 países da região.

Sob a Convenção de Refugiados de 1951 e seu Protocolo de 1967, um refugiado é definido como qualquer pessoa que, “temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele”. [21]

O direito de não ser forçado a retornar nessas circunstâncias é chamado princípio de non-refoulement. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (CAT, na sigla em inglês), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) e a Convenção Europeia sobre Direitos Humanos (CEDH), bem como o direito internacional consuetudinário, incluem proteções de non-refoulement. [22]

A Declaração de Cartagena de 1984, embora constitua instrumento legal não vinculante, ofereceu uma influente diretriz normativa no desenvolvimento do marco internacional de proteção aos refugiados na América Latina. A Declaração de Cartagena adota uma definição mais ampla de refugiado para incluir “as pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade foram ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública” (ênfase adicionada). [23]

Essa previsão da declaração tem uma óbvia relevância potencial à situação da Venezuela, mas há um vácuo de precedentes legais para orientar os Estados na sua interpretação e aplicação. O ACNUR, ao interpretar o sentido do trecho “outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública”, observou que a motivação é a menos frequentemente aplicada por órgãos nacionais responsáveis pela análise de solicitações de refúgio, sob a definição de Cartagena. O ACNUR, no entanto, sustentou que ao aplicar cláusula análoga incluída na Convenção da Organização da Unidade Africana sobre refúgio na África, a falta de alimentos, serviços médicos e a falta de suprimentos devem ser consideradas como indicadores factuais da existência de “circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública”.[24]

Embora a Declaração de Cartagena não seja por si só vinculante, sua definição de refugiado foi incorporada às leis ou práticas de 15 países da região: Argentina, Belize, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Paraguai, Peru e Uruguai.[25]

Em decisão liminar de agosto de 2018, a ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber declarou que o Brasil se obrigou a respeitar a definição ampliada de refugiado da Declaração de Cartagena ao incorporá-la à legislação doméstica, que agora reconhece como refugiado “aquele que é obrigado a deixar seu país devido à grave e generalizada violação de direitos humanos”. A decisão, que explicitamente discutiu o caso dos venezuelanos solicitando refúgio no Brasil, concluiu que “a ampliação do

conceito de refugiado gera, ao Estado, um dever de proteção humanitária”.[26]

O ACNUR declarou que “está ficando cada vez mais claro que um número significativo de venezuelanos precisa de proteção internacional”. [27] O ACNUR considera que “as amplas circunstâncias que levaram ao fluxo de saída de nacionais venezuelanos se enquadrariam no espírito da Declaração de Cartagena”, com presunção irrefutável de necessidade de proteção internacional”. [28]

Em uma resolução publicada em março de 2018, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão oficial que interpreta os padrões regionais de direitos humanos, instou os membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) a adotarem uma série de medidas em resposta à massiva imigração venezuelana nas Américas[29], incluindo:

  • Garantir condição de refugiado a venezuelanos com fundado temor de perseguição em caso de retorno à Venezuela, ou que considerem que sua vida, integridade, ou liberdade individual estariam ameaçadas devido à violência, massivas violações de direitos humanos, e sérias perturbações na ordem pública, nos termos da Declaração de Cartagena;
  • Respeitar o princípio de nonrefoulement de venezuelanos em risco de perseguição ou de outras sérias violações de direitos humanos, dentre as quais, de acordo com a interpretação da Comissão, estão incluídos sérios riscos à saúde ou vida devido a condições médicas, de acordo com a interpretação mais ampla da definição de refúgio da Declaração de Cartagena;
  • Expandir canais regulares, seguros e acessíveis para a migração por meio de progressiva expansão da concessão de vistos e regimes de visto facilitados e facilmente acessíveis, ou outras medidas legais para a residência no país, considerando a necessidade desses mecanismos de serem economicamente acessíveis e garantirem o acesso a venezuelanos que possam não estar em posse de toda a documentação por motivos fora de seu controle;
  • Prover assistência humanitária a venezuelanos nas jurisdições nacionais;
  • Garantir acesso ao direito à nacionalidade para pessoas apátridas, bem como filhas e filhos de venezuelanos nascidos no exterior com risco de se tornarem apátridas; e
  • Adotar medidas afirmativas como campanhas educacionais e de conscientização para combater a discriminação e xenofobia.

Do mesmo modo, o ACNUR lançou uma Nota de orientação sobre o fluxo de venezuelanos, que encoraja países a considerarem, adicionalmente à concessão de refúgio a venezuelanos, a criação de “medidas orientadas à proteção que possibilitem a residência legal aos venezuelanos”. Esses arranjos devem ser garantidos em lei; acessíveis a todos os venezuelanos, independentemente de quando ingressaram no país, com custo mínimo ou zero; e garantir acesso a serviços básicos e direitos fundamentais, incluindo acesso à saúde, educação, e abrigo, liberdade de circulação, e união familiar.[30]

A crise política, econômica, de direitos humanos e humanitária na Venezuela cria uma combinação de fatores que leva os venezuelanos a deixarem seus lares, incapazes ou sem o desejo de voltar. Alguns fatores podem imediatamente qualificar uma pessoa como refugiado, enquanto para outras o impacto cumulativo de diferentes fatores pode ensejar uma válida solicitação de refúgio. Quando uma pessoa atende aos critérios da definição da Convenção de Refugiados de 1951 ou da Declaração de Cartagena nas jurisdições onde essa definição é aplicada, o status de refugiado se aplica igualmente com todos os direitos que lhe são atribuídos, incluindo o direito de não ser forçadamente retornado ao seu país de origem.

Como relativamente poucos venezuelanos fora de seu país obtiveram reconhecimento de seu status de refugiado, seja sob a Convenção de Refugiados de 1951, seja sob a definição da Declaração de Cartagena, muitos estão vivendo sem qualquer reconhecimento legal oficial, ou com diversas permissões temporárias ou especiais de permanência que não estão explicitamente conectadas à necessidade de proteção internacional. Também deve ser notado que a condição de refugiado não depende da presença legal no país de acolhimento ou mesmo do reconhecimento formal. Um indivíduo é um refugiado quando sua situação responde aos critérios da definição de refugiado. O reconhecimento da condição de refugiado não torna a pessoa um refugiado, mas é somente o reconhecimento formal de uma condição que é de seu direito.

Principais dificuldades que os venezuelanos
enfrentam no exterior

Uma primeira dificuldade para muitos é encontrar meios para deixar a Venezuela, o que por vezes fazem com recursos limitados e por travessias de fronteira perigosas e clandestinas.[31] Uma vez fora de seu país, uma dificuldade importante para muitos venezuelanos é a obtenção de permissão legal para permanecer nos países onde estão vivendo.

Centenas de milhares de venezuelanos que deixaram o país permanecem em situação irregular nos países onde vivem atualmente. Esse status precário compromete severamente sua capacidade de obter uma permissão de trabalho, de matricular seus filhos na escola ou obter assistência médica. Mesmo alguns com permissão legal de residência não podem exercer plenamente seus direitos fundamentais. Essa situação irregular os torna mais vulneráveis à exploração laboral e sexual, ao tráfico de pessoas e menos propensos a denunciarem abusos às autoridades competentes, de acordo com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e diversas entrevistas conduzidas pela Human Rights Watch.[32]

Ademais tem havido relatos críveis de práticas xenofóbicas e discriminatórias contra venezuelanos por diversas fontes, em diversos países, incluindo abusos por autoridades e outros indivíduos, extorsão e uma retórica que estigmatiza os venezuelanos, culpando-os por maiores índices de violência nos países onde chegaram e acusações de “roubarem” empregos de nacionais.[33]

Por exemplo, além das práticas xenofóbicas – descritas no próximo capítulo – sofridas pelos venezuelanos em algumas ilhas do Caribe, houve alguns incidentes de xenofobia isolados no Brasil. Em março de 2018, moradores do estado de Roraima – que divide a fronteira com a Venezuela – organizaram várias manifestações contra imigrantes venezuelanos. Durante um protesto em Macajaí, no sul de Roraima, organizado depois que um venezuelano foi acusado de matar um cidadão brasileiro, manifestantes brasileiros expulsaram venezuelanos – incluindo mulheres e crianças – de um prédio abandonado que haviam ocupado para morar. De acordo com relatos da imprensa, os manifestantes destruíram e incendiaram alguns dos pertences dos venezuelanos.[34] As autoridades brasileiras instauraram investigações sobre esse incidente, bem como sobre publicações que incitavam racismo e xenofobia nas mídias sociais.[35]

Em agosto de 2018, moradores de Pacaraima, cidade brasileira que faz fronteira com a Venezuela, atacaram venezuelanos que estavam morando nas ruas, os agrediram, atearam fogo em seus bens pessoais, e os ameaçaram. Isso ocorreu como resultado de um protesto contra a imigração venezuelana após um homem brasileiro ter sido roubado, supostamente por venezuelanos. Muitos venezuelanos disseram à Human Rights Watch que eles e outros fugiram durante o ataque; alguns buscaram abrigo em uma igreja enquanto outros o fizeram junto a um edifício do governo federal ou um posto da Polícia Federal. Mais de 1.200 venezuelanos voltaram à Venezuela após o incidente, incluindo alguns que poderiam ser solictiantes de refúgio, de acordo com um promotor público local. A polícia não interviu para impedir a violência ou prender os que estavam atacando venezuelanos.[36]

 

Caminhos legais para a residência e obstáculos para alcançá-los

América Central e do Sul

Além da possibilidade de solicitar refúgio, vários governos da América do Sul adotaram diversas medidas para garantir aos venezuelanos permissões legais para a residência em seus países. Por exemplo, Colômbia, Peru, Brasil e Chile criaram uma permissão especial de residência para imigrantes venezuelanos.[37] A Argentina e o Uruguai permitem que os venezuelanos solicitem um visto especial aplicável a nacionais do Mercosul, apesar de a Venezuela ter sido expulsa desse bloco regional em dezembro de 2016.[38] Venezuelanos no Equador podem solicitar um visto ligado à UNASUL para permanência.[39] 

Essas permissões regularizaram a situação migratória de centenas de milhares de venezuelanos, permitindo que recomessem suas vidas sem medo de serem expulsos a qualquer instante. No entanto, mesmo em países que oferecem permissões para residência, venezuelanos relataram dificuldades em obtê-las, como custos proibitivos ou a exigência de que apresentem documentos que não puderam trazer da Venezuela e que não conseguem obter no exterior.[40]

Mais recentemente, países que até agora estavam implementando políticas para acolher venezuelanos passaram a adotar medidas preocupantes que poderiam, na prática, limitar drasticamente a capacidade de venezuelanos de aplicarem para as permissões.

O Chile exige que venezuelanos solicitem o visto na Venezuela, e requer que apresentem um passaporte.[41] Na prática, dado que para conseguir um agendamento e, então, um passaporte na Venezuela é extremamente difícil e pode levar até dois anos, o requisto chileno de apresentar passaporte significa de fato fechar as portas para muitos venezuelanos.

Em agosto de 2018, percebendo que mais de 4.200 venezuelanos ingressavam no país diariamente, o Equador declarou emergência humanitária em três províncias para lidar com o fluxo e prover assistência humanitária. Dias após, no entanto, autoridades anunciaram que passariam a requerer aos venezuelanos que apresentassem passaporte para entrar ao país[42]. O governo equatoriano recuou da medida após um juiz decidir contrariamente à ela, mas anunciou também que requereria a venezuelanos sem passaporte que apresentem uma certificação válida de sua identidade venezuelana emitida por uma autoridade venezuelana ou internacional reconhecida pelo Equador.[43]

De maneira similar, o Peru anunciou que a partir de 25 de agosto de 2018 também passará a requerer que venezuelanos entrando o país apresentem passaporte; autoridades peruanas declararam que os venezuelanos ainda são bem-vindos no país, e justificaram a medida argumentando que isso os permitirá uma melhor e mais controlada migração. Após a forte reação gerada pela medida, o Ministro das Relações Exteriores disse que o Peru permitiria que venezuelanos entrem com o passaporte vencido, que crianças e pessoas idosas poderiam entrar sem passaporte, e que não ter um passaporte não seria um obstáculo para solicitar refúgio.[44] Conforme um decreto recente, somente venezuelanos que entrarem no país até 31 de outubro poderão aplicar para a permissão especial existente para venezuelanos.[45]

Estados têm a prerrogativa de adotar medidas rigorosas para verificar as identidades e nacionalidades de solicitantes de refúgio e demais, mas em nenhuma hipótese venezuelanos solicitantes de refúgio devem ser rejeitados pela falta de passaporte ou qualquer outra forma específica de identificação. Tal resultado constituiria em refoulement, e portantouma violação das obrigações dos respectivos governos de nos termos da legislação internacional sobre refúgio.

Em 2017, o Panamá limitou o acesso ao país ao impor aos venezuelanos uma nova exigência de visto antes de entrarem em seu território.[46]

Na Colômbia, país que recebeu de longe o maior número de imigrantes venezuelanos, o governo vem adotando uma série de medidas para oferecer aos venezuelanos que chegam ao país acesso urgente à assistência médica e matrícula de crianças venezuelanas nas escolas. Outras iniciativas em coordenação com agências da ONU e grupos locais fornecem refeições, vacinas e abrigo.

Em julho de 2017, o governo colombiano criou uma permissão especial que permite que cidadãos venezuelanos que entraram no país legalmente, mas que tiveram seus vistos expirados, regularizassem sua situação migratória e tivessem permissão para trabalho e ter acesso a serviços públicos básicos.[47] Entre 2017 e os primeiros meses de 2018, 180.000 venezuelanos receberam essa permissão.[48] Em julho de 2018, o governo colombiano editou um decreto que concedia aos mais de 400.000 imigrantes venezuelanos em situação migratória irregular que tinham cadastro em uma pesquisa do governo acesso a serviços públicos básicos e autorizações de trabalho, e que regulamentava a matrícula de seus filhos nas escolas.[49]

Muitos venezuelanos na Colômbia que não se registraram junto ao governo ainda estão em situação irregular e por isso enfrentam uma série de dificuldades. Em maio de 2018, as autoridades declararam que mais de 2.700 venezuelanos “decidiram voluntariamente retornar ao seu país” para “evitar serem sancionados” pelas autoridades colombianas por não terem permissão para permanecer no país.[50] No entanto, fontes confiáveis que vêm monitorando a situação, tendo solicitado anonimato, questionaram se os retornos foram voluntários, e afirmaram à Human Rights Watch que muitos venezuelanos foram detidos, receberam ordens para entrarem em um caminhão e foram levados para a fronteira.[51]

Em 2018, o governo federal do Brasil destacou as forças armadas para a fronteira com a Venezuela para responder à imigração venezuelana, incluindo para auxiliar na implementação das polítcias humanitárias do Brasil. Em cooperação com agências da ONU, as forças armadas instalaram uma estrutura na fronteira onde venezuelanos podem solicitar refúgio ou uma permissão especial de residência, e obter vacinação e cuidados emergenciais de saúde. Além disso, junto com o ACNUR, o governo federal abriu 10 abrigos para acolher venezuelanos no estado de Roraima. No momento em que esse relatório foi escrito, mais de 4.000 venezuelanos moravam nesses abrigos, e outros dois estavam em construção. Um programa contínuo para realocar venezuelanos em outras partes do país tem sido implementado lentamente; até 18 de agosto de 2018, somente 820 venezuelanos haviam sido realocados para outras partes do Brasil.[52]

 

Venezuelanos em marcha

 

Mais de 200 venezuelanos atravessam a pé a fronteira colombo-venezuelana todos os dias, tentando chegar ao seu destino final, seja em outras cidades da Colômbia ou em outros países da região.

A Human Rights Watch entrevistou vários venezuelanos que caminhavam ao longo da estrada, incluindo mulheres e crianças. Por exemplo, Rosa Márquez (pseudônimo), de 25 anos, que caminhava com sua filha de 6 anos, disse que havia deixado Maracai, sua cidade natal na Venezuela, porque não podia comprar comida suficiente para alimentar sua família ou medicamentos para tratar as pedras nos rins da filha. Elas viajaram pela Venezuela de ônibus por horas e cruzaram a fronteira para a Colômbia em direção a Medellín, onde o pai da menina as aguardava. Porém, sem documentos legais exigidos para permanecer na Colômbia, elas não conseguiram comprar uma passagem de ônibus e decidiram caminhar até uma cidade de onde viajariam para Medellín. A caminhada pelas montanhas até aquela cidade, que incluía travessias por áreas com temperaturas congelantes, leva mais de 47 horas a pé.[53]

Uma pesquisa realizada em julho pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários constatou que os venezuelanos que deixam o país a pé andam uma média de 16 horas por dia e caminham por cerca de 13 dias. Muitos andam porque não têm documentos legais, enquanto muitos outros o fazem porque não podem pagar uma passagem de ônibus. Poucos tinham recursos suficientes para cobrir suas jornadas, muitos não estavam comendo o suficiente e mais de 90% dormiam nas ruas.[54]

A Cruz Vermelha colombiana montou tendas em alguns lugares ao longo da estrada. Em um deles, uma média de 80 venezuelanos por dia param para beber água, comer bolachas, descansar e fazer ligações telefônicas – disse um voluntário.[55]

Caribe

No Caribe, onde vários governos têm laços estreitos e são economicamente dependentes do governo venezuelano, nenhum país adotou oficialmente uma permissão especial para os venezuelanos permanecerem legalmente e a maioria dos países não tem leis para regulamentar o processo de solicitação de refúgio. A imigração venezuelana teve um impacto particularmente forte nas ilhas de Trinidade e Tobago, Aruba e Curaçao – ao sul do Caribe – dada sua proximidade geográfica com a Venezuela, seu tamanho menor e capacidade limitada para absorver imigrantes. [56]

Alguns dos principais problemas enfrentados pelos venezuelanos no Caribe incluem:

  • Trinidade e Tobago: não há um marco legal para regulamentar o procedimento de solicitação de refúgio ou para guiar os direitos dos refugiados. O governo adotou uma política de refugiados em 2014 que ainda está em processo de implementação. Cerca de 4.000 dos cerca de 40.000 venezuelanos na ilha tinham solicitado refúgio em agosto de 2018.[57]


Uma organização não-governamental local chamada Living Water Community tem sido um importante ponto de contato para os solicitantes de refúgio, atuando em nome do ACNUR. Todos os solicitantes de refúgio e refugiados reconhecidos recebem um certificado do ACNUR que atesta sua condição. Detentores de certificados podem legalmente permanecer no país, mas não podem trabalhar.


Apesar de, anteriormente, os venezuelanos terem conseguido obter assistência médica e matricular seus filhos na escola primária, a Human Rights Watch recebeu relatos críveis de múltiplas fontes, que solicitaram anonimato, de que as autoridades locais desconsideraram os certificados emitidos pelo ACNUR, detendo pessoas mesmo com certificados de solicitante de refúgio. Em abril, no que parece ter sido um incidente isolado, 82 venezuelanos; incluindo alguns em posse de certificados do ACNUR e outros que tinham declarado a intenção de solicitar o status de refugiado, tiveram seu retorno à Venezuela determinado pelas autoridades de imigração.[58]

Em 9 de abril de 2018, policiais uniformizados realizaram uma busca no porto de entrada em San Fernando e detiveram Isabel Gabriela González Herrera. Isabel, uma cidadã venezuelana que chegara a Trinidade e Tobago havia um mês, estava lá para entregar uma sacola com comida para venezuelanos que a levariam para seu filho de 4 anos na Venezuela, de acordo com depoimento de uma testemunha à Human Rights Watch. Ela foi levada para uma delegacia de polícia, onde um oficial de imigração exigiu provas de seu estatuto legal no país. Como ela não as tinha, foi detida. Em 12 de maio, Isabel foi levada perante um juiz de imigração, que a sentenciou a um ano de prisão e ao pagamento de 18.000 dólares de Trinidade e Tobago (aproximadamente 2.700 dólares dos EUA), apesar de ela ter um certificado de refúgio emitido pelo ACNUR. Isabel permanecia em uma prisão de segurança máxima até o momento da elaboração deste relatório. [59]

  • Curaçao: em julho de 2017, o governo declarou publicamente que havia avocado a responsabilidade do ACNUR para registrar solicitações de refúgio e emitir certificados de solicitante de refúgio. No entanto, até onde pudemos nos informar, o governo de Curaçao não emitiu um único certificado desde então, embora centenas de venezuelanos tenham solicitado uma entrevista para buscar refúgio em Curaçao.

Embora Curaçao não seja parte da Convenção de 1951 ou de seu Protocolo de 1967, como um país constituinte da Holanda, Curaçao está vinculada à Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH). O artigo 3º da CEDH impede o refoulement em casos de tortura ou tratamento desumano, incluindo alguns casos de falta de acesso a cuidados de saúde. O governo da Holanda é responsável por violações da CEDH que ocorram em Curaçao, incluindo quaisquer deportações que violem as disposições de non-refoulement do artigo 3º.

A Human Rights Watch recebeu relatos críveis de várias fontes que solicitaram anonimato, informando que autoridades governamentais estão ativamente conduzindo buscas para averiguação de situação migratória, com atos física e verbalmente abusivos contra venezuelanos e os detendo por períodos indefinidos em condições desumanas e sem acesso à assistência jurídica. Há também relatos de que as autoridades têm deportado alguns venezuelanos que tentam buscar refúgio – incluindo aqueles cujas solicitações podem ser acolhidas segundo os critérios previstos no artigo 3º da CEDH – e têm também pressionado os pais que foram detidos a informarem às autoridades sobre o paradeiro de seus filhos para que possam ser deportados juntos.

Essas fontes também disseram que, legalmente, as crianças venezuelanas são autorizadas a ir à escola em Curaçao. Mas, na prática, elas enfrentam barreiras para se matricularem, e algumas temem ir à escola, já que as autoridades têm realizados buscas para tirá-las das escolas.

Com 19 anos, Santiago Hernández (pseudônimo) desertou do exército venezuelano após testemunhar abusos pelo pessoal das forças armadas. Em 17 de agosto de 2018, ele saiu da venezuela por barco, em direção a Curaçao, temendo represálias por desertar e ter testemunhado os abusos. Naquela noite, autoridades de Curaçao o prenderam em águas territorias, supostamente por entrada ilegal. Hernández disse às autoridades que ele queria solicitar refúgio, mas o ignoraram e o detiveram. Em detenção imigratória, ele tentou solicitar refúgio mais uma vez, mas os agentes disseram que ele teria que ligar para o consulado venezuelano. Às escondidas, ele  conseguiu obter um celular e ligou para um advogado, que preencheu uma solicitação de refúgio em seu nome em 21 de agosto, de acordo com a documentação analisada pela Human Rights Watch. Seu advogado disse à Human Rights Watch que Hernández foi questionado por dois dias, e em 27 de agosto as autoridades de imigração pediram que assinásse documentos em holandês, que ele não entendia. Hernández continua na detenção imigratória em Curação no momento de elaboração desse relatório.[60]

  • Aruba: os venezuelanos têm o direito de solicitar refúgio e os solicitantes de refúgio registrados junto ao governo podem obter uma permissão de trabalho e trabalhar legalmente. Os filhos de solicitantes de refúgio podem se matricular na escola, embora haja algumas preocupações quanto à discriminação e que sua matrícula esteja condicionada a ter seguro de saúde, o que é caro. Os venezuelanos em Aruba – também um país constituinte da Holanda – podem ser elegíveis à proteção internacional a refugiados sob o Protocolo de 1967 da Convenção de 1951 (ao qual Aruba aderiu), bem como proteção contra refoulement nos termos do artigo 3º da CEDH.
  • Guiana: estima-se que 15.000 venezuelanos estão vivendo no país, com um número maior deles indo e voltando para a Venezuela. Os venezuelanos na Guiana têm acesso à saúde pública, que é uma das principais razões pelas quais as pessoas entram e saem do país, e as crianças em sua maioria podem frequentar a escola – embora algumas enfrentem barreiras por não falarem inglês. O governo guianense concedeu permissões ad hoc a venezuelanos para permanecerem por períodos de três meses e declarou que ratificaria instrumentos internacionais sobre refugiados – porém, não existe uma política ou lei de refugiados, nem qualquer outro marco legal que ofereça clareza sobre opções legais para os venezuelanos buscarem refúgio ou viverem no país.
  • República Dominicana: embora o país tenha uma lei para regulamentar o processo de refúgio, vários venezuelanos, membros de um grupo que presta apoio a venezuelanos imigrantes e solicitantes de refúgio no país, disseram à Human Rights Watch que, na prática, é difícil solicitá-lo. Os obstáculos incluem o curto período de 15 dias após a chegada ao país para apresentar o pedido, a exigência de apresentá-lo na capital do país e a exigência de documentação as quais eles não têm.


A Human Rights Watch também recebeu relatos críveis de diversas fontes que solicitaram anonimato, sobre detenções de pessoas que “parecem venezuelanas” e de deportações que não respeitam o devido processo e a avaliação adequada das necessidades de proteção. Os venezuelanos detidos não têm acesso à assistência jurídica, não têm o direito de contestar legalmente suas detenções e são detidos indefinidamente até que o governo da República Dominicana os deporte ou que o detido pague sua passagem, segundo fontes críveis disseram à Human Rights Watch. Nem o ACNUR nem grupos não-governamentais têm entrada permitida ao centro de detenção onde estão sendo mantidos esses venezuelanos, o que limita sua capacidade de monitorar situação deles e fornecer apoio.

A Human Rights Watch também recebeu relatos confiáveis de que os venezuelanos estão fazendo jornadas perigosas para viajar até as ilhas no sul do Caribe, que estão a uma curta distância de barco da Venezuela continental, ocasionando naufrágios e mortes em pleno mar.[61] Em janeiro de 2018, houve os primeiros casos confirmados de venezuelanos que morreram no mar enquanto tentavam chegar a Curaçao, com partes de seus corpos sendo trazidas pelas ondas à terra. A disposição de refugiados para arriscar viagens perigosas geralmente surge em situações em que os caminhos legais são bloqueados; os venezuelanos encontraram obstáculos para a entrada legal e organizada e permanência nessas ilhas.

Estados Unidos e Espanha

Nos Estados Unidos, os venezuelanos se tornaram a principal nacionalidade entre os solicitantes de refúgio. Havia mais de 72.000 venezuelanos solicitantes de refúgio nos Estados Unidos em junho de 2018.[62] Entre 2011 e 2016, os venezuelanos tinham uma taxa de 46,4% de recusa de suas solicitações de refúgio, o que é 3,4% menor que a taxa de recusa de solicitantes de refúgio de todas as nacionalidades (49,8%) durante esse mesmo período.[63] A Human Rights Watch não conseguiu obter estatísticas mais recentes sobre as taxas de recusa de solicitações de refúgio apresentadas por venezuelanos.

Um total de mais de 26.000 venezuelanos são solicitantes de refúgio na Espanha.[64] Os venezuelanos são a principal nacionalidade em solicitações de refúgio na Espanha. Entretanto, apenas 1% dos venezuelanos que buscam refúgio no país lograram obter a proteção, segundo a Comissão Espanhola de Ajuda aos Refugiados.[65]

Essas baixas taxas de concessão de refúgio levantam questões sobre a atuação das autoridades, incluindo os juízes de imigração, quanto à consideração de todas as causas que podem justificar o temor dos venezuelanos de voltarem para casa como razões legítimas para conceder refúgio.

Recomendações

Para efetivamente proteger os direitos dos venezuelanos que fogem de seu país, os Estados deveriam garantir análises cuidadosas, individuais, de todos os solicitantes de refúgio. Ao fazê-lo, devem levar em conta as recentes recomendações emitidas por órgãos competentes que interpretam os padrões internacionais aplicáveis, incluindo o ACNUR e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

De forma coerente com as recomendações de ambos os órgãos, os Estados deveriam também considerar a adoção de outros mecanismos legais para assegurar a proteção e regularização migratória de venezuelanos que podem não qualificar para a condição de refugiado segundo as legislações nacionais, mas enfrentariam grandes dificuldades na Venezuela, se retornarem, e têm urgente necessidade de assitência humanitária nos países para onde migraram.

Especificamente, dada a escala e a complexidade da migração venezuelana no âmbito regional, os governos devem unir esforços para adotar uma resposta coletiva e coordenada. Particularmente, os governos devem considerar adotar:

  • Um regime regional de proteção temporária, que garantiria a todos os venezuelanos a regularização de sua situação migratória por período determinado, pelo menos enquanto aguardam o julgamento de seus pedidos individuais de proteção;
  • Um mecanismo regional para distribuir os custos financeiros e a efetiva recepção dos venezuelanos que fogem de seu país, de forma equitativa.

Governos que adotaram novas medidas requerendo que venezuelanos apresentem passaportes válidos para obter certas modalidades de regularização migratória deveriam atentar imediatamente para a necessidade de garantir que isso não impeça, de forma alguma, que venezuelanos que não estejam em posse desses documentos possam solicitar refúgio. Em geral, e em vista das muitas dificuldades que enfrentam os venezuelanos para obterem passaporte em seu país, governos deveriam considerar a existência de meios mais flexíveis para verificarem a identidade e nacionalidade dos venezuelanos solicitando ingresso.

Os governos também devem buscar alternativas à detenção de solicitantes de refúgio, impedir a detenção arbitrária ou prolongada nos casos em que a detenção é utilizada, devendo ser esta uma medida de último recurso, e permitir que organizações internacionais e grupos não-governamentais tenham acesso a centros de detenção de imigrantes para monitorarem as condições de detenção e garantir o acesso à proteção.

Finalmente, a Holanda deve assegurar que o tratamento dos venezuelanos em Curaçao e Aruba respeite suas obrigações internacionais, incluindo o dispositivo sobre non-refoulement previsto na Convenção Europeia de Direitos Humanos.

Além disso, é fundamental continuar a buscar estratégias multilaterais para lidar com as causas que levam tantos venezuelanos a fugirem de seu país. Isso deve incluir a adoção e aplicação de sanções direcionadas, como o congelamento de ativos e o cancelamento de vistos de importantes autoridades venezuelanas implicadas em graves violações de direitos humanos, e a necessidade de responsabilização por violações dos direitos humanos. Essas sanções não têm um impacto generalizado na população e não exacerba a situação humanitária dos venezuelanos.

Na 38ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em junho de 2018, o Peru fez uma declaração em nome de um grupo inter-regional de 53 países, expressando preocupação com a crise humanitária e de direitos humanos na Venezuela e solicitando a continuidade do acompanhamento e relatoria do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Na 39ª sessão do Conselho, que ocorrerá em setembro de 2018, os membros do Grupo de Lima devem apresentar – e o Conselho deve adotar – uma resolução que determine o acompanhamento e relatoria pelo Escritório do Alto Comissariado sobre a situação dos direitos humanos na Venezuela, bem como a apresentação e discussão desses relatórios pelo Conselho.

 

Zimbábue: um caso para comparação

Embora cada situação seja distinta, há alguns notáveis paralelos entre o êxodo venezuelano e a fuga de zimbabuenses nos anos 2000.

Conforme detalhado no relatório de 2008 da Human Rights Watch, “Neighbors in Need: Zimbabweans Seeking Refuge in South Africa”, um colapso econômico causado por danosas políticas governamentais do partido do presidente Robert Mugabe, ZANU-PF, juntamente com uma resposta opressiva à oposição política, levaram centenas de milhares de zimbabuenses a fugirem para os países vizinhos.[66] 

Esses fatores econômicos e políticos combinados obrigaram muitos zimbabuenses a deixarem o país, predominantemente rumo à África do Sul, mas também Botsuana, Moçambique e Zâmbia. Entre 1 e 1,5 milhão de zimbabuenses estavam na África do Sul no início de 2008. Quase todos entraram e permaneceram sem documentação. As razões pelas quais os zimbabuenses fugiram foram diversas. Alguns temiam a perseguição devido a sua oposição política real ou suspeita à administração ZANU-PF, enquanto outros foram forçados a sair devido às más condições econômicas que os deixaram empobrecidos. Pessoas entrevistadas à época para o relatório de 2008 da Human Rights Watch declaravam, assim como os venezuelanos de hoje, que não tinham intenção de retornar ao Zimbábue enquanto a crise continuasse.

Na época, a Human Rights Watch argumentou que a maioria desses zimbabuenses cumpria a definição da Convenção de Refugiados de 1951 ou a definição mais ampla da Convenção sobre Refugiados da África, que, como a Declaração de Cartagena na América Latina, reconhece como refugiados pessoas que fogem de eventos que perturbam de maneira grave a ordem pública, entre outras razões, mas, por razões práticas, recomendou que o remédio mais realista e eficaz seria que a África do Sul adotasse um "status de isenção temporária de imigração para zimbabuenses". Esse status, argumentou a Human Rights Watch, regularizaria temporariamente a situação de todos os zimbabuenses residentes na África do Sul por um período a ser considerado, garantiria o fim das deportações e forneceria a todos os zimbabuenses na África do Sul o direito de trabalhar durante esse período.

Embora tenha demorado vários meses, em 2009 o governo sul-africano respondeu ao elevado número de zimbabuenses que haviam entrado no país com a adoção de uma “permissão especial” para os zimbabuenses no país, um processo de visto que foi reiterado várias vezes até hoje.

Agradecimentos

Este relatório foi elaborado por Tamara Taraciuk Broner, pesquisadora sênior da divisão das Américas, em consulta com Bill Frelick, diretor do programa de refugiados, e Chris Albin-Lackey, conselheiro legal sênior da Human Rights Watch, que também revisou e editou o relatório. Além disso, o relatório foi revisado e editado por José Miguel Vivanco, diretor executivo das Américas; Daniel Wilkinson, diretor adjunto das Américas; Juan Pappier, pesquisador das Américas; Aisling Reidy, conselheira legal sênior, e Joseph Saunders, diretor adjunto de programas da HRW. A pesquisadora das Américas, Mirte Postema, e os estagiários das Américas, Santiago Menna, Julian Piacente e Christine Vlasic, forneceram valioso apoio à pesquisa. Delphine Starr e Megan Monteleone, assistentes das Américas, e Luiz Pecora, coordenador para o Brasil, forneceram apoio logístico. O relatório foi preparado para publicação por Fitzroy Hepkins, gerente administrativo, e José Martínez, coordenador sênior de administração. Este relatório foi traduzido para o espanhol por Gabriela Haymes e para o português por Hugo Arruda.

A Human Rights Watch gostaria de agradecer profundamente cada um dos advogados e ativistas entrevistados que contribuíram com informações valiosas para este relatório, e agradecimentos especiais aos especialistas que monitoram de perto a situação da imigração venezuelana e pediram para não serem identificados para preservar a possibilidade de continuarem fazendo o seu trabalho.

Mais importante ainda, a Human Rights Watch é imensamente grata a todos os venezuelanos que generosamente compartilharam suas experiências conosco, com a esperança de que isso contribuiria para garantir uma maior proteção de seus direitos e dos direitos de outras pessoas em uma situação semelhante.

 

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