Texto por Andrea Carvalho e Cesar Muñoz Acebes; Análise Geoespacial por Léo Martine; Direção de Design por Grace Choi; Gráficos por Ivana Vasic; Desenvolvimento por Christina Rutherford; Produção de vídeo por Laura Prieto Uribe

O fogo começou em uma estrada de terra que atravessa Terra Nossa, um assentamento rural criado para conciliar a agricultura familiar com a preservação da floresta na Amazônia. Era dia 11 de agosto de 2022, período de seca na região. Um pequeno agricultor observou cerca de 10 homens com galões de gasolina, ateando fogo na vegetação ao longo de um trecho de quatro quilômetros de estrada. Pouco tempo depois, as chamas atingiam os lotes dos assentados, consumindo bananeiras, pés de pitaya e mandioca. “Eu só chorava”, o agricultor nos contou.

Todo mundo no assentamento Terra Nossa conhece esses homens. São fazendeiros, grandes detentores de terras, embora quaisquer reivindicações sobre a titularidade dessas terras sejam bastante duvidosas. Eles estavam acompanhados de homens armados.

Imagens de satélite coletadas pela Human Rights Watch mostram o início das queimadas em 11 de agosto no local descrito pelo agricultor.

Animação de anomalias térmicas cumulativas indicando atividade de fogo no assentamento Terra Nossa, estado do Pará, Brasil. © NASA FIRMS

As chamas se alastraram durante um mês dentro do assentamento, destruindo não apenas os lotes dos moradores, mas também partes da reserva florestal, que já sofria com a extração ilegal de madeira valiosa. Vídeos gravados por moradores – cuja localização confirmamos – revelam a devastação.

Os moradores nos disseram que, em outubro, homens a mando dos fazendeiros trouxeram capim para converter as áreas queimadas no Terra Nossa em pastagem e delas se apoderar ilegalmente.

A situação do Terra Nossa mostra como a grilagem de terras e a destruição ambiental na Amazônia estão acabando com os meios de subsistência e, consequentemente, aumentando a pobreza. “Arrancaram tudo para tirar a nossa renda e nós morrermos aos poucos”, desabafou um morador.

Aqueles que denunciam a destruição arriscam suas vidas. Membros da comunidade acreditam que grupos criminosos operando dentro do Terra Nossa mataram pelo menos quatro pessoas desde 2018. Outra está desaparecida e acreditam que esteja morta.

As agruras no Terra Nossa se repetem, com pequenas diferenças, em toda a Amazônia. Povos indígenas, ribeirinhos e outras comunidades que vivem da agricultura, da pesca, e do uso sustentável da floresta tentam manter suas terras, proteger o meio ambiente e seus modos de subsistência em meio a ataques de redes criminosas envolvidas na extração de madeira, grilagem de terras, mineração e caça e pesca ilegais.

Durante anos, viajamos para algumas dessas comunidades e documentamos como a destruição ambiental anda de mãos dadas com a violência. Durante a última década, mais de 300 pessoas morreram em conflitos pelo uso da terra e de recursos naturais na Amazônia, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Examinamos as investigações de diversos desses casos de violência e encontramos falhas gritantes das autoridades que dificultaram seriamente a responsabilização dos envolvidos nos assassinatos, incluindo casos em que não houve autópsias ou que a polícia sequer visitou a cena do crime.

A situação se agravou depois que Jair Bolsonaro assumiu a presidência em 1º de janeiro de 2019. Seu governo sabotou a fiscalização ambiental. O processo sancionador ambiental ficou praticamente paralisado e servidores em cargos de liderança foram removidos após operações importantes contra o garimpo ilegal. Seu governo também se recusou a demarcar territórios indígenas ao mesmo tempo em que adotou normativas que facilitaram a invasão de terras. Além disso, defendeu garimpeiros e madeireiros e sugeriu que a proteção ambiental “prejudica” o desenvolvimento na Amazônia. Os resultados foram devastadores.

A área desmatada na Amazônia em 2022 foi 53 por cento maior do que em 2018, ano anterior à posse de Bolsonaro. Em 2022, o número de focos de queimadas, identificados em imagens de satélite, foi o maior desde 2010.

Fonte: Projeto de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (PRODES), sistema operado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Os números anuais registrados pelo INPE cobrem o período de 12 meses entre 1º de agosto do ano anterior e 31 de julho.

É extremamente importante que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que assumiu o cargo no dia 1º de janeiro de 2023, adote medidas urgentes para proteger a Amazônia e sua população, restabelecendo o Estado de direito na região.

A luta do Terra Nossa

A negligência das autoridades, a destruição ambiental e a violência marcam a história do Terra Nossa.

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) criou o Terra Nossa em 2006, como um Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS). Trabalhadores rurais receberam lotes para agricultura de pequena escala e têm acesso à reserva florestal dentro dos limites do projeto, onde podem coletar valiosas castanhas-do-pará e do babaçu e outros produtos florestais para venda – sua principal fonte de renda. Os assentados não podem comercializar seus lotes sem a autorização do INCRA, uma medida para evitar que grandes latifundiários se apropriem da terra.

Contudo, a proteção está somente no papel. Latifundiários e especuladores imobiliários têm realizado “ataques sistemáticos e profusos” contra o território e seus recursos naturais, segundo o Procurador da República Gabriel Dalla Favera de Oliveira.

Além disso, uma mineradora tem atividades no assentamento Terra Nossa sem autorizações adequadas, segundo o Ministério Público Federal do Pará. Após procuradores alertarem sobre o possível impacto para as famílias assentadas no Terra Nossa e os indígenas na Terra Indígena Baú, o Tribunal Regional Federal suspendeu sua licença em agosto de 2022. Contudo, um morador e um procurador da república nos disseram que a mineradora ainda estaria operando.

Localizado no enorme estado do Pará, Terra Nossa está na divisa de Altamira e Novo Progresso, que costumam figurar entre os municípios com os maiores índices de desmatamento e queimadas. O assentamento fica próximo à BR-163, uma conhecida rodovia que corta a Amazônia e facilita o acesso às áreas de floresta. A partir dela, ramais se espalham como veias de destruição nas imagens de satélite.

202301ehr_brazil_amazon_inset_para_pt
Fonte: Natural Earth, PRODES

Imagens de satélite entre 2006 e 2022 mostram a progressão do desmatamento no assentamento Terra Nossa estado do Pará, Brasil. © NASA Landsat

Em 2015, poderosos fazendeiros persuadiram o INCRA a reduzir o tamanho do assentamento de 149.000 hectares em quase oito vezes. Em três meses, o Ministério Público Federal conseguiu a anulação da redução e, em 2020, o Tribunal Regional Federal condenou três servidores do INCRA por improbidade administrativa em razão da redução do assentamento.

Mas as invasões do território nunca pararam.

O Terra Nossa foi projetado para assentar mil famílias, mas em vistoria ocupacional do assentamento em 2016, peritos agrários do INCRA constataram que apenas 291 lotes estavam ocupados por trabalhadores rurais. Outros 130 estavam nas mãos de pessoas que haviam ocupado a área antes da criação do assentamento ou se apropriado ilegalmente de lotes posteriormente. Esses peritos identificaram extração ilegal de madeira e mineração dentro do assentamento.

O relatório recomendou ao INCRA a adoção de medidas para “imediata retomada” das áreas controladas por pessoas envolvidas na grilagem de terras. Em junho de 2022, o INCRA nos informou que ainda não havia conseguido notificar pessoalmente os ocupantes ilegais, medida necessária para uma posterior retomada das terras. O procurador da república Oliveira considerou esse atraso “absolutamente injustificável.”

Os moradores avaliam que a complacência do INCRA tem permitido cada vez mais invasões e violência.

Em 2017, uma associação local de produtores rurais começou a denunciar aos órgãos ambientais e aos ministérios públicos federal e estadual que os fazendeiros estavam usando as estradas de terra do assentamento para transportar madeira extraída ilegalmente, além de empregarem homens armados para proteger suas atividades. Os pequenos agricultores correm grandes riscos ao fazerem essas denúncias.

Em 2018, um morador e um sindicalista foram mortos e outra pessoa desapareceu após compartilharem com outros membros da comunidade que pretendiam denunciar as atividades dos fazendeiros. O irmão de uma das vítimas, que residia no município próximo de Novo Progresso, também foi assassinado depois que começou a investigar o caso por não confiar na polícia local.

Moradores acreditam que homens armados que trabalham para os fazendeiros mataram os quatro homens. Um homem foi condenado pelo homicídio do sindicalista e está pendente o julgamento relativo à morte do morador de Novo Progresso, segundo informações obtidas em consulta no sistema eletrônico do Tribunal. Pedimos informações sobre os outros casos ao Ministério Público do estado do Pará, mas não obtivemos resposta.

A partir de 2019, quando Bolsonaro assumiu a presidência, suas declarações e políticas contrárias à proteção do meio ambiente causaram reflexos em toda a Amazônia, incluindo no Terra Nossa.

Em agosto daquele ano, o assentamento enfrentou muitas queimadas, parte de um plano coordenado por fazendeiros da região para queimar áreas desmatadas ao longo da rodovia BR-163 e convertê-las em pastagens e monocultura de soja. As queimadas aumentaram em 10 de agosto de 2019, que ficou conhecido como o “Dia do Fogo”.

Enquanto isso, criminosos seguem ameaçando lideranças comunitárias do Terra Nossa. Eles enviam mensagens e fazem telefonemas com intimidações, apresentam denúncias falsas contra lideranças nas delegacias e apontam para elas suas armas, segundo nos disseram moradores e procuradores.

Em 2020, o Ministério Público Federal no Pará disse em um comunicado de imprensa que grileiros “instalaram um regime de terror” no Terra Nossa “com ameaças e violência constantes contra os legítimos assentados.”

No entanto, uma liderança da comunidade nos disse que ninguém foi responsabilizado pelas ameaças contra os moradores do Terra Nossa.

O trauma e o medo pairam sobre Terra Nossa. Membros da comunidade têm medo de sair de casa, seja para encontrar amigos ou procurar atendimento médico, e moradores evitam entrar na reserva florestal para coletar castanhas e outras frutas. Muitos estão lidando com o impacto psicológico de viver dessa maneira. O “absenteísmo” estatal, como descreve Oliveira, tem permitido que “a lei do mais forte” prevaleça.

No dia 10 de julho de 2022, outro morador do Terra Nossa morreu após ser baleado. Antes do assassinato, ele comentou com outras pessoas que havia confrontado um homem que estava entrando em seu lote para acessar a reserva florestal e extrair madeira ilegalmente, moradores disseram.

Um mês depois, e três anos após o “Dia do Fogo” de 2019, o Terra Nossa ficou novamente em chamas. Mais de cem famílias perderam suas colheitas, segundo um morador. Imagens de satélite mostram que o fogo se espalhou e atingiu a terra indígena vizinha. A imprensa noticiou as queimadas no Terra Nossa, que ainda assim continuaram durante um mês, demonstrando o fracasso das autoridades em responder adequadamente à situação.

202301ehr_brazil_amazon_indigeneous_territory_fires_pt
Análise da perda florestal entre julho e outubro de 2022 mostra a extensão da invasão do fogo no território indígena Baú. Análise realizada comparando o Índice de Vegetação por Diferença Normalizada (NDVI, em inglês) em ambas as datas, usando um limite de 0,8 e acima para a floresta tropical. © Planet Labs PBC, NICFI Satellite Data Program

No Terra Nossa, o fogo faz parte de uma estratégia para intimidar os moradores, destruir seus meios de subsistência e afugentá-los, disse Oliveira. Moradores também disseram que os fazendeiros continuam derrubando as castanheiras que sobreviveram às queimadas, eliminando o que é uma importante fonte de renda. “Eles fazem pressão até a pessoa ir embora para não morrer, e tomam a área”, disse um morador.

As autoridades federais e estaduais estão plenamente cientes da combinação tóxica de violência e destruição do meio ambiente e meios de subsistência no Terra Nossa. Documentamos o caso em um relatório de 2019, que apresentamos em uma audiência no Congresso Nacional e que recebeu ampla cobertura de imprensa. Somente em 2022, enviamos sete ofícios a autoridades alertando sobre os graves problemas no assentamento. Em agosto, mais de 50 organizações da sociedade civil cobraram das autoridades a proteção dos assentados. O Ministério Público Federal também tem recomendado ao INCRA a desintrusão dos ocupantes irregulares do Terra Nossa.

Depois que nós e organizações parceiras dissemos às autoridades que alguns policiais locais teriam ameaçado moradores do Terra Nossa, o secretário de segurança do estado do Pará nos informou que o efetivo policial local havia sido substituído.

Porém, muito mais precisa ser feito. Agora, todos os olhos estão voltados para o presidente Lula.

O desafio adiante

Lula herdou uma das maiores taxas de desmatamento da Amazônia quando se tornou presidente em 2003. Ao final de seu segundo mandato, em 2010, a taxa de desmatamento tinha caído 67 por cento comparado a 2002, ano anterior da sua posse.

Sob a liderança da ministra do meio ambiente, Marina Silva, seu governo conseguiu essa redução em parte por meio da aplicação efetiva das leis ambientais, da criação de áreas protegidas, da demarcação de territórios indígenas e da restrição de crédito a produtores em posse de terras públicas e propriedades irregulares ou que tinham violado leis ambientais.

Mas o governo Lula também promoveu hidrelétricas e outros projetos de infraestrutura na Amazônia que resultaram em impactos ambientais e sociais bastante adversos.

O presidente Lula tem prometido uma mudança radical nas desastrosas políticas anti-ambientais de Bolsonaro. Sinais positivos foram a renomeação de Marina Silva como sua ministra do Meio Ambiente e a criação do Ministério dos Povos Indígenas, comandado pela liderança indígena Sônia Guajajara.

Para reduzir drasticamente o desmatamento e as queimadas, o governo Lula deveria cumprir a promessa de fortalecer a capacidade dos órgãos de proteção do meio ambiente e dos direitos indígenas, bem como apoiar servidores experientes que foram afastados e perseguidos durante quatro anos por tentar fazer seu trabalho. Deveria, ainda, rejeitar projetos de lei em tramitação no Congresso que acelerariam o desmatamento e fortalecer o controle e a rastreabilidade das cadeias produtivas de ouro, carne, e outros produtos agrícolas para assegurar que não estejam vinculados ao desmatamento ilegal.

Órgãos federais, incluindo o INCRA, as polícias e ministérios públicos estaduais e federais e governadores estaduais precisam trabalhar juntos para combater a grilagem, desmantelar as redes criminosas na Amazônia e garantir a responsabilização tanto pelos crimes ambientais quanto pela violência contra defensores da floresta.

Novo Progresso, Pará State
a esquerda: Área desmatada e queimada na fazenda Salmo 23 próxima à Floresta Nacional do Jamanxim na cidade de Novo Progresso, estado do Pará. 30 de setembro de 2019. © 2019 Fernando Martinho/Repórter Brasil a direita: Município de Novo Progresso, no estado do Pará, transformado nos últimos anos pelo lucro do “ouro verde”, com novos restaurantes e lojas de grife, 30 de setembro de 2019.© 2019 Fernando Martinho/Repórter Brasil

Castelo dos Sonhos, Pará State
a esquerda: Tempestade se aproximando de uma fazenda de gado na margem da BR163, próximo à Castelo dos Sonhos, estado do Pará. 30 de setembro de 2019. Castelo dos Sonhos está localizada a cerca de 150 quilômetros ao sul de Terra Nossa, ao longo da BR-163, estrada que corta a Amazônia e facilita o acesso às áreas de floresta. © 2019 Fernando Martinho/Repórter Brasil a direita: Garimpo de ouro ilegal na bacia do Rio Curuá e área desmatada e queimada para atividades agrícolas, próximos à Castelo dos Sonhos, estado do Pará. © 2019 Fernando Martinho/Repórter Brasil

Durante seu discurso de posse no Congresso em 1° de janeiro, o presidente Lula prometeu esforços para zerar o desmatamento e combater a pobreza e a desigualdade. Esses objetivos andam de mãos dadas na Amazônia.

O papel fundamental que a floresta desempenha na manutenção da biodiversidade e na contenção das mudanças climáticas é bastante conhecido em todo o mundo. A floresta tem a grande capacidade de capturar ou, se destruída, liberar dióxido de carbono, o principal gás contribuindo para o aquecimento global.

Menos conhecidos são os árduos esforços daqueles que buscam o uso sustentável da floresta, como os pequenos agricultores do Terra Nossa e os povos indígenas em tantas partes da enorme floresta, na luta pela preservação do planeta.

O governo brasileiro, a comunidade internacional e todos nós temos o dever de apoiá-los.

 

Para mais publicações da Human Rights Watch sobre o Brasil »
Para mais publicações da Human Rights Watch sobre o meio ambiente »