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O Brasil atrás das grades

Abusos Cometidos
por Guardas e Policiais
(continuação)
        EXECUÇÕES SUMÁRIAS, TORTURA E OUTROS ABUSOS FÍSICOS
                Amazonas
                Ceará
                Minas Gerais
                Paraíba
                Rio Grande do Norte
                Rio Grande do Sul
                São Paulo
        IMPUNIDADE

Punições Não Autorizadas:
Execuções Sumárias, Tortura e Outros Abusos Físicos

PREFÁCIO

RESUMO

SISTEMA PENITENCIÁRIO

SUPERLOTAÇÃO

DELEGACIAS

CONDIÇÕES FÍSICAS

ASSISTÊNCIA

ABUSOS ENTRE PRESOS

ABUSOS POR POLICIAIS

CONTATO

TRABALHO

DETENTAS

AGRADECIMENTOS

 

Particularmente na sequência das rebeliões, tentativas de fuga e outros incidentes sérios, mas às vezes mesmo por ofensas triviais, agentes penitenciários e policiais desconsideram as restrições da LEP e recorrem à violência física. O que segue é uma descrição, estado por estado, de incidentes recentes envolvendo abuso físico violento nas penitenciárias, cadeias e delegacias do Brasil, as mais sérias envolvendo a execução sumária de detentos.(237)

Amazonas

Até meados de 1997, a Penitenciária Raimundo Vidal Pessoa, em Manaus, a principal prisão do estado, era o local da violência oficial implacável. Os prisioneiros descreveram como o diretor da prisão, um membro da Polícia Militar, supervisionou pessoalmente o espancamento de prisioneiros, às vezes inclusive participando ele mesmo, assim como agentes bêbados batiam nos prisioneiros sob qualquer pretexto. Tropas de choque da polícia militar costumavam entrar na prisão regularmente, batendo nos detentos e quebrando coisas. A situação começou a mudar com o estabelecimento da nova Secretaria de Justiça em março de 1997. Para a surpresa de todos, quando três prisioneiros foram brutalmente espancados por tropas de choque da Polícia Militar em julho de 1997, o novo secretário de justiça visitou a prisão e desculpou-se junto aos presos em nome do governo do estado.(238) O secretário também buscou a acusação dos membros da guarnição militar que realizaram os espancamentos.

Naquele mesmo mês, após uma rebelião na prisão durante a qual inúmeras ocorrências de abuso físico foram divulgadas, o diretor do presídio foi destituído, junto com alguns poucos adjuntos.(239) Em dezembro de 1997, quando a Human Rights Watch visitou as instalações, os presos tinham muitas reclamações para discutir, mas o abuso físico pelos guardas não era um deles. Em nossa pesquisa, esta foi praticamente a única prisão masculina na qual a questão não foi levantada.

Ceará

A polícia militar agiu de modo correto. O resultado foi excepcional.

--Gen. Cândido Vargas Freire, Secretário de Segurança Pública, descrevendo a reação da polícia em resposta a uma tentativa de fuga perto de Fortaleza, Ceará, em dezembro de 1997, na qual sete prisioneiros fugitivos foram mortos e três reféns foram feridos, dois por tiros da polícia.(240)

Denominado "Sangue no Natal" pela imprensa,(241) a reação da polícia à tentativa de fuga de vinte e três prisioneiro do Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS) de Fortaleza, em 25 de dezembro de 1997, envolveu o uso excessivo de força letal e pelo menos duas execuções sumárias. A despeito disto, as autoridades policiais minimizaram a gravidade do incidente e, até o momento da elaboração deste relatório, a promotoria falhou em concluir a investigação que poderia produzir acusações contra os policiais que cometeram abusos durante a operação.

Em 24 de dezembro de 1997, três defensores dos direitos dos presos, Eunísia Barroso, coordenadora da Pastoral Carcerária da Arquidiocese de Fortaleza, Maria Nilva Alves, presidente da Fundação Maria Nilva, e Eder Gil Teixeira Pinheiro, vice-presidente da Fundação Maria Nilva, chegaram ao IPPS para oferecer doações de Natal aos presos lá confinados.(242) Enquanto os visitantes assistiam a uma demonstração de capoeira apresentada em sua homenagem,(243) vinte e três presos invadiram o recinto onde a performance estava sendo conduzida e agarraram à força os três ativistas dos direitos dos presos e o chefe da segurança interna do IPPS, Ten. Francisco Tomaz de Aquino. Empunhando dois revólveres e várias facas caseiras, os internos levaram os quatro reféns para a escolinha da prisão. Durante uma troca de tiros com os guardas da prisão, um ou mais tiros disparados pelas autoridades atingiu Francisco Sérgio Dias Ferreira, o prisioneiro que acreditava-se ser o líder do ataque, na cabeça, matando-o instantaneamente.(244) Com os quatro reféns efetivamente sob seu controle, os prisioneiros restantes iniciaram uma série de negociações com as autoridades, utilizando o telefone celular de Maria Nilva.(245)

As negociações entre os prisioneiros e a polícia (que acabaram por durar mais de vinte e cinco horas) foi uma árdua experiência para os reféns. Embora as autoridades prisionais tenham anunciado à imprensa que eles haviam distribuído amplas rações de alimentos, água e roupa de cama para os reféns, Eder Gil e Eunísia relataram à Human Rights Watch que suas súplicas por água e comida eram repetidamente desconsideradas pelas autoridades da prisão, e somente após dezessete horas de cativeiro eles receberam uma garrafa de dois litros de água para dividir entre vinte e três pessoas. Como nos contou Eunísia, uma diabética de sessenta e sete anos, os efeitos para a saúde da ausência de água e comida foram graves, "para mim a falta de água foi horrível. Eu podia sentir meus rins e meu sangue endurecendo. Para impedir que eu desmaiasse de calor, os prisioneiro tiveram que umedecer meus lábios com o suor de suas camisas". (246)

Em uma tentativa de assegurar água e comida, alguns dos prisioneiros buscaram entrar no prédio da administração da prisão. Eder Gil e Eunísia reportaram à Human Rights Watch que na medida em que os prisioneiros alcançavam a porta da frente do prédio da administração, a polícia militar disparava das guaritas em direção a eles, acabando por ferir o prisioneiro Francisco Kelly Costa.(247) O Secretário de Justiça Paulo Duarte falou à Human Rights Watch que a Polícia Militar abriu fogo porque eles acreditavam que Francisco estava armado e planejando invadir o prédio.(248)

A polícia removeu os membros da imprensa do recinto durante o incidente e não permitiu que os familiares dos reféns ou representantes das ONGs locais participassem das negociações, dificultando identificar quais autoridades conduziam as negociações. Versões jornalísticas divergentes reportam que o Delegado de Investigações e Capturas, Luís Carlos Dantas, o Diretor do IPPS, Cel. Henrique Amaral Brasileiro Neto, Cel. Adaílton Magalhães, do Comando de Policiamento da Capital da Polícia Militar, e o Secretário de Justiça, Paulo Duarte, estavam entre os principais negociadores. Independentemente de quem dirigiu as negociações, as autoridades mostraram dar prioridade à libertação do Tenente Tomaz, o qual, como agente da lei, deveria ter sido o último refém resgatado pela polícia. Como o Cel. Magalhães falou aos membros da imprensa durante as negociações: "nós damos preferência ao resgate inicial do tenente porque acreditamos que as mulheres, Maria Nilva e Eunísia Barroso, têm maior controle emocional sobre a situação. Elas já foram capazes de conversar com os prisioneiros e acalmá-los".(249) Em entrevista concedida à Human Rights Watch, Traumaturgo Barroso, filho de Eunísia Barroso, que estava aguardando do lado de fora da prisão durante as negociações, afirmou que ele ouviu um policial dizer, em termos mais diretos, o equivalente comentário: "depois que libertarem o tenente, o resto que se dane".(250)

Aproximadamente às 10:00 do dia seguinte, 25 de dezembro, os prisioneiros e a polícia chegaram a um acordo. Nele, em troca da libertação do Ten. Tomaz e da promessa dos prisioneiros de deixarem o presídio durante o dia ao invés de esperarem até a noite, a polícia concordava em providenciar aos presos quatro carros, oito revólveres calibre 38, duas caixas de munição, lençóis (para ocultar os presos e os reféns enquanto dirigiam-se aos carros), jornais (para ocultar os presos e os reféns uma vez dentro dos carros), fita de pintor e a garantia de não perseguir os fugitivos por pelo menos meia hora após sua saída do IPPS. Durante este período, a polícia começara a juntar tropas, incluindo mais de 150 policiais militares, civis e federais, em torno da prisão e a montar uma série de obstruções na estrada incluindo um ônibus da Polícia Militar, caminhonetes da Polícia Rodoviária Federal e um caminhão de bombeiros do local, dispostos ao longo da rodovia BR-116 para frustar a fuga dos prisioneiros.(251)

Próximo às 15:00 daquele dia, prisioneiros e reféns, ocultados sob lençóis providenciados pela polícia, deixaram o local e dirigiram-se aos carros que estavam à sua espera no pátio da prisão. Antes de deixar o IPPS, os prisioneiros, cumprindo seu acordo com a polícia, liberaram o Ten. Tomaz. Após cobrirem as janelas dos quatro carros com folhas de jornal (com exceção de uma pequena brecha de aproximadamente 30cm x 40 cm no parabrisa do motorista), vinte presos e os três reféns restantes partiram das instalações da prisão em veículos recentemente adquiridos. Os presos sobreviventes e reféns contaram à Human Rights Watch que seis presos e um refém (Eder Gil) estavam no primeiro carro, cinco presos e nenhum refém no segundo carro, cinco presos e um refém (Maria Nilva) no terceiro carro, e quatro presos e um refém (Eunísia) no quarto carro. Durante a fuga, ocupantes do segundo carro tomaram um quarto refém, Waldir Bezerra Alencar, em um posto de gasolina ao longo da estrada.

Quando o quarto carro partia do IPPS, a polícia começou imediatamente a perseguir os fugitivos, servindo-se de um grupo de carros previamente estacionados em frente ao portão principal. A polícia perseguiu os veículos dos fugitivos em uma velocidade de quase cento e cinqüenta quilômetros horários e atirou nos quatro veículos, apesar dos reféns estarem indistintamente em cada um destes carros. A polícia sustenta que a perseguição foi marcada por uma constante troca de tiros entre os presos e a polícia. Contrário a esta afirmação, os reféns sobreviventes Eder Gil e Eunísia disseram à Human Rights Watch que nenhum dos prisioneiros, nos dois carros em que eles estavam, atirou na polícia. Nenhum policial foi ferido por tiro ao final da perseguição.(252)

Aproximadamente dez minutos após iniciada a perseguição, o primeiro dos quatro carros desviou-se e bateu em uma árvore, ocasionando a morte de um prisioneiro e ferindo o refém Eder Gil, que sofreu graves danos em suas pernas, pescoço, tórax e coluna. Um fugitivo sobrevivente do primeiro carro contou à Human Rights Watch que imediatamente após o acidente, um policial encapuzado atirou diversas vezes em sua direção de uma distância de mais ou menos seis ou sete metros, ferindo-o duas vezes no braço. De acordo com este prisioneiro, o oficial encapuzado então aproximou-se dele, apontou o cano do revólver em sua cabeça e engatilhou a arma, mas foi alertado por um companheiro da polícia que não atirasse, pois a imprensa e o Delegado Dantas estavam chegando.(253)

Os sobreviventes alegam que a polícia sabotou no mínimo dois carros antes de entregá-los aos prisioneiros e esvaziaram os pneus do terceiro carro com tiros. O motorista do segundo carro, o prisioneiro Sílvio Martins Alves ("Goiano"), falou à imprensa que as rodas dos carros estavam extremamente desalinhadas e que os freios estavam mal regulados; ao atingir um dos obstáculos colocados no caminho pela polícia, Goiano bateu o carro em um poste ao largo da estrada.(254) Eunísia, que estava sendo mantido como refém no quarto carro, disse à Human Rights Watch que logo após o início da perseguição seu carro começou repentinamente a produzir fumaça e enguiçou.(255)

Vários dos prisioneiros sobreviventes e dois dos reféns sustentam que durante a perseguição, e mesmo após o segundo, terceiro e quarto carros terem sido inutilizados, a polícia disparou repetidamente contra os veículos. Maria Nilva, Eunísia e os detentos fugitivos sobreviventes disseram à Human Rights Watch que embora os prisioneiros tenham saído dos carros com as mãos para cima, gritando que estavam rendidos, policiais encapuzados assim dispararam repetidamente nos veículos imobilizados.

Um prisioneiro sobrevivente do segundo carro contou à Human Rights Watch que após seu veículo ter batido, um policial encapuzado aproximou-se dele, disparou em suas costas e, não fosse a intervenção do Cap. Marques, da Polícia Militar, ele teria sido executado. O prisioneiro nos disse que o Cap. Marques insistiu em levá-lo de volta ao IPPS, para que os outros vissem "quão bravo ele era"; depois disto, o preso foi algemado por ele e socado várias vezes nas costas e na cabeça. O prisioneiro afirmou que após ter sido espancado foi levado de volta ao IPPS, onde a polícia amarrou uma toalha ao redor de sua cabeça e chutaram-lhe o estômago até que ele começou a cuspir sangue e desmaiou.

Eunísia e um preso sobrevivente falaram à Human Rights Watch que os policiais encapuzados, ao aproximarem-se do carro inoperante em que estavam, abriram fogo. De acordo com Barroso e com o prisioneiro, os passageiros gritaram para a polícia que eles tinham sido atingidos e que havia um refém no carro. Ambas as testemunhas nos disseram que os policiais então aproximaram-se do carro e puxaram o interno Antônio Calixto de Souza e dois outros prisioneiros para fora do veículo, ordenando que eles deitassem no chão com a cabeça de frente para o asfalto.(256) Ao tomarem consciência que um quarto prisioneiro ainda estava vivo e escondido sob o porta luvas, no lado do passageiro, a polícia teria novamente aberto fogo contra o carro, atingindo Eunísia uma segunda vez.(257) O prisioneiro sobrevivente contou à Human Rights Watch que a polícia então o empurrou para fora do carro, ordenando-o que deitasse de rosto para baixo junto aos outros prisioneiros, e chutaram-lhe repetidamente as costas e as costelas.

Eunísia e o prisioneiro sobrevivente contaram à Human Rights Watch, aos investigadores da polícia e aos membros da imprensa que após dispararem contra o veículo e forçarem os presos a deitar no chão, os policiais encapuzados executaram sumariamente ao menos dois dos fugitivos. Eunísia nos disse que ela testemunhou um policial ir ao lado do carro, chutar um prisioneiro desarmado, e então atirar em Calixto. Após o policial ter desferido três tiros, ele foi detido por um companheiro que teria gritado: "tá bom, tá bom, já chega". O prisioneiro nos disse que enquanto ele permanecia no chão, testemunhou um policial encapuzado atirar e matar outros prisioneiros de uma distância de aproximadamente dois a três metros. De acordo com ele, um policial sugeriu que eles matassem o resto dos passageiros, rolassem o carro e fingissem que este tinha sofrido um acidente. O prisioneiro nos disse ainda que este mesmo policial então atirou em seu pescoço. Ele sustenta que conseguiu sobreviver apenas porque fingiu estar morto até a chegada da imprensa, instantes depois. Testemunhos subseqüentes de Maria Nilva Alves e de três outros presos que foram testemunhas oculares confirmaram a versão do sobreviventes sobre estas execuções.(258) Tendo a polícia removido os veículos da cena logo após o incidente, não foi possível aos peritos de balística realizar os exames requeridos pela legislação brasileira para determinar o ângulo e a distância de onde os tiros foram disparados.(259)

No total, sete prisioneiros fugitivos -- Daniel de Oliveira dos Santos ("Pirambu"), Francisco Ferreira de Moraes ("Pernambuco"), Assis, Robério Fátima da Silva ("Melão"), Antônio Calixto de Sousa, Maranhão e Marcelo -- foram mortos. As autópsias conduzidas pelo Dr. Eduardo Callado, legista do Instituto de Medicina Legal, em Fortaleza, sustentam a caracterização dos eventos, tal como descrita pelos sobreviventes. Em declaração concedida à imprensa em 28 de dezembro, Dr. Callado afirmou que dos sete prisioneiros mortos durante a perseguição, somente um não sofreu ferimento de bala.(260) De acordo com Callado, a maioria dos corpos foi atingida por uma média de quatro a cinco balas. Um prisioneiro chegou a ser atingido num total de dez vezes. Dr. Callado disse à imprensa que, embora alguns ferimentos de bala fossem resultado de disparos realizados de uma distância igual ou superior a trinta metros, outros eram resultado de tiros disparados de uma distância de um metro. Em uma entrevista à Human Rights Watch, Callado ressaltou que muitas das balas entraram no corpo dos prisioneiros através da cabeça ou das costas.(261) Dados os múltiplos ferimentos sofridos, Dr. Callado falou à Human Rights Watch que ele não poderia excluir a possibilidade de que os fugitivos tenham sido sumariamente executados.

Na ocasião do encontro da Human Rights Watch com as autoridades no Ceará, doze dias após a operação, a polícia tinha interrogado apenas sete pessoas, sendo que nenhuma delas era sobrevivente da fuga. Além disto, as autoridades falharam ao não submeterem as armas utilizadas na perseguição para análise no Instituto de Criminalística. Nicéforo Fernandes de Oliveira, o Procurador Geral da Justiça, recusou invocar sua autoridade constitucional para conduzir uma investigação independente da tentativa de fuga, delegando, ao invés disto, a responsabilidade aos próprios policiais.

Após uma investigação detalhada da tentativa de fuga, o delegado Pedro de Sá Roriz Neto recomendou que os oficiais da polícia responsáveis pelo caso fossem indiciados por violação aos artigos 129 (lesão corporal) e 121 (homicídio) do Código Penal, por atirarem contra os presos e seus reféns.(262) Apesar das conclusões do inquérito oficial, o promotor Francisco de Assis Oliveira Marinho, responsável por denunciar os policiais envolvidos na perseguição, não tinha ainda, até o momento de elaboração deste relatório, apresentado uma acusação formal contra qualquer policial envolvido na operação.(263)


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