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IV. PROBLEMAS NO RETORNO E REINTEGRAÇÃO
DOS ANGOLANOS DESLOCADOS INTERNOS

Em meados de Abril de 2003, do total de 4,1 milhão de pessoas deslocados internos em Angola,23 mais de 1,8 milhão havia retornado aos seus lugares de origem em várias províncias de Angola.24 Segundo o governo Angolano, até meados de Junho, cerca de 2,3 milhões de deslocados internos já haviam retornado para seus lugares de orígem.25 A maioria havia retornado aos seus lugares de origem espontaneamente. Até o final de 2002, apenas 15 porcento dos Angolanos haviam retornado através de um processo organizado. Além disso, até fins de 2002, segundo o governo Angolano, apenas 30 porcento dos deslocados retornados havia se reassentado em áreas com condições de vida adequadas. Muitos desses deslocados internos foram vítimas de minas terrestres ou enfrentaram sérios riscos que impediam sua produção agrícola ou acesso à ajuda humanitária.26

Apesar dos retornos significativos, até Março de 2003, cerca de 283.068 deslocados internos ainda viviam em cerca de noventa centros de trânsito e acampamentos. Outros 315.981 estavam em centros temporários.27 Até o momento de elaboração deste relatório, cerca de 1,4 minhões de Angolanos permanecem deslocados, fora de campos ou centros de trânsito formais e, consequentemente, sem qualquer assistência oficial do governo ou das agências da ONU.

A Human Rights Watch documentou cinco graves problemas afligindo os deslocados internos Angolanos durante seu retorno aos locais de origem dentro do país. Primeiro, alguns deslocados internos não puderam tomar decisões voluntárias sobre para onde desejam retornar dentro do país. Alguns tem sofrido coerção física, enquanto outros têm sido pressionados para deixar certas áreas ou não retornar a outros lugares tais como a capital, Luanda. Segundo, o status privilegiado dado aos ex-combatentes resultou em retornos apressados para alguns dos civis deslocados internos. Terceiro, as mulheres deslocadas, chefes de família, têm sido tratadas de forma a exacerbar sua vulnerabilidade a novos abusos aos direitos humanos. Quarto, as pessoas deslocadas não têm recebido seus documentos de identidade. Quinto, a assistência humanitária têm sido insuficiente para alguns dos deslocados internos após seu retorno aos lugares de reassentamento.

O Retorno Involuntário dos Angolanos Deslocados Internos

Alguns dos Angolanos deslocados internos sofreram coerção ou foram influenciados de outra forma a retornar a suas regiões de origem dentro de Angola. Embora a Human Rights Watch reconheça os imensos desafios enfrentados por Angola em sua tentativa de reintegrar milhões de pessoas deslocadas e refugiados, o retorno involuntário dos deslocados internos para suas regiões de origem viola as normas internacionais. O Artigo 12 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (do qual Angola é Estado Parte)28 reconhece a liberdade de todos de escolher sua residência, que incorpora o direito de retorno à área de origem, mas também refuta o retorno feito onde não existem condições que garantam a segurança do retorno. Além disso, os Princípios Básicos sobre o Deslocamento Interno (Guiding Principles on Internal Displacement) determina que as autoridades competentes têm “o dever” de permitir que os deslocados internos “retornem voluntariamente, em segurança e com dignidade aos seus lares ou lugares onde residiam, ou para reassentarem-se voluntariamente em outra parte do país”.29

Além disso, as próprias normas Angolanas são transgredidas quando não é permitido aos Angolanos decidir por si mesmos quando e para onde retornar. As Normas para o Reassentamento e o Regulamento de Implementação requerem que o retorno das pessoas deslocadas deve ser voluntário e consensual e que deveria incluir a participação das populações deslocadas nos processo de reassentamento e retorno.30

Nas áreas por nós pesquisadas, em contradição directa a essas normas, as autoridades locais teriam forçado os Angolanos deslocados internos a retornar às suas áreas de origem com violência ou ameaça de violência. A Human Rights Watch documentou um incidente ocorrido no centro de trânsito de Cambabe II, localizado nas proximidade de Caxito, na provincial do Bengo. Os 2.500 Angolanos deslocados internos em Cambabe II esperavam garantias do governo de que as condições seriam seguras o bastante para que eles retornassem às suas terras. Ao invés disso, a administração local e as forças policiais teriam entrado no centro em Setembro e Outubro de 2002, queimado as casas dos deslocados e dez acres de plantação. Com suas casas e plantações destruídas, os deslocados internos não tinham outro lugar para ir a não ser suas áreas de origem, que por sua vez, não estavam em condições para recebê-los. A maior parte, fugiu imediatamente sem parar para apanhar os animais ou outros pertences que escaparam do fogo e partiram para áreas diferentes tais como Pango, Aluqueim, Quibaxe e Nabuangongo. Embora os administradores locais tenham oferecido transporte para os líderes da comunidade, grande parte simplesmente partiu por entre a mata, e talvez tenham se juntado a outros grupos de deslocados internos em outras partes de Angola.

Um agente humanitário presente em Cambabe II e que testemunhou o incêndio das casas dos deslocados internos contou à Human Rights Watch,

Eles foram forçados a deixar suas áreas porque o governo queria as terras para o uso em seus próprios projectos de agricultura. Os deslocados internos perderam dez acres de plantio—batata doce e mandioca. Queimar as casas era parte da política do governo.

O mesmo agente explicou que mais tarde a polícia expulsaria até aqueles trabalhadores que haviam conseguido evitar a primeira expulsão. Ele contou a Human Rights Watch que “[aqueles que não haviam sido expulsos] ficavam em um galpão mas agora a polícia expulsou eles também e eles dormem ao relento.31

Outros casos de retorno involuntário envolveram outros factores motivadores mais subtis. Em alguns casos, o governo ameaçou suspender a assistência aos deslocados internos nos centros de trânsito ou nos acampamentos onde os deslocados viviam por vários anos. Outro agente humanitário relatou a Human Rights Watch que:

A administração local determinou que o campo [Bengo II] fosse evacuado. Eles nos disseram que o processo de retorno fora oficialmente aberto e que as pessoas deveriam retornar às suas áreas de origem. No entanto, eles não forneceram transporte ou outra assistência e ameaçaram suspender a assistência existente. Então, em Julho de 2002, houve um grande mal estar quando a distribuição de alimentos do PAM foi temporariamente suspensa em Bengo e Feira [centros de trânsito].32

O retorno forçado dos Angolanos após o incêndio de suas casas e plantações, assim como pressões indirectas como ameaças de suspensão de assistência ou falsas promessas sobre os recursos disponíveis nas áreas de retorno, transgridem normas nacionais e internacionais, que exigem que o retorno dos deslocados internos seja voluntário.

Além disso, o Princípio 28 do Guiding Principles33 e o Artigo 5 da legislação nacional garante que as autoridades tradicionais e pessoas afectadas serão incluídas no planejamento e administração de seu retorno.34 No entanto, a grande maioria dos deslocados internos que a Human Rights Watch entrevistou não havia sido consultada no planejamento de seus retornos. Por exemplo, Marlene V. 28, contou a Human Rights Watch, que as autoridades locais a haviam instruído a deixar Bengo II e ir para Sanza Pombo (sua terra natal) apesar de seu desejo de permanecer em Bengo II. Ela disse:

Eu não tenho ninguém lá. Minha mãe e pai morreram e meus filhos vão para escola aqui [em Negage]. Em Sanza Pombo não tem posto de saúde ou outros serviços. Eu sei porque meu marido foi lá e me contou.35

Em Bengo II havia cerca de doze Famílias de Sanza Pombo que preferiam não retornar. Jorge S. 33 contou a Human Rights Watch suas razões para ficar.

Estamos aqui desde Setembro de 1999. Aqui nós temos uma casa e terra para trabalhar. ’Voltar’ quer dizer ir para um lugar onde não chega nem estrada.36

Um oficial do ACNUR no Uíge reforçou os testemunhos e contou a Human Rights Watch, que um bom número de deslocados internos não queria deixar os acampamentos temporários, porque suas crianças estavam matriculadas nas escolas locais e ou em outros cursos específicos de capacitação.37 Ainda assim, as autoridades locais teriam encorajado essas Famílias a abandonar os campos e retornar às suas terras onde muitas vezes as oportunidades de educação são poucas ou inexistentes.

Alguns Angolanos deslocados internos entrevistados pela Human Rights Watch expressaram seu desejo de retornar para Luanda mas teriam sido impedidos de assim o fazer pelas autoridades locais.38 Embora o governo de Angola possa ter as suas preocupações quanto à capacidade de Luanda integrar deslocados internos, deve ainda equilibrar suas preocupações contra o direito dos deslocados internos de escolher o local de sua residência. Isso é particularmente verdadeiro, quando os deslocados internos tentam retornar para Luanda para se reunir com outros membros da família. Os Angolanos têm o direito à reunificação familiar e a protecção para sua família como previsto no Artigo 10 do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC) e o Artigo 9 da Convenção dos Direitos da Criança (CDC).39

Por exemplo, Helena S., vinte e nove anos de idade, mulher deslocada durante o conflito armado, entrevistada pela Human Rights Watch em Uíge, onde ela morava em um campo para deslocados internos por anos, contou que as autoridades locais teriam impedido que ela fosse para Luanda, onde ela teria cinco de seus filhos e onde viviam outros membros da família. Ela contou a Human Rights Watch que,

Eu não vejo a minha mãe há sete anos. Fomos separadas durante a guerra. Sou de Mbanza Kongo. Aqui [em Negage] não tenho terra. Não tenho nada. Tenho cinco filhos em Luanda e dois aqui comigo. Eu queria ir para Luanda onde tenho família mas eles [as autoridades locais] falaram para a gente esperar. Eu estou esperando há dez meses. Estou esperando desde quando teve paz.40

Preferência Discriminatória

Em pesquisa em Negage, Uíge e Cazombo, a Human Rights Watch documentou repetidos instantes quando autoridades governamentais dão tratamento preferencial a assistência ao retorno de ex-combatentes as suas terras sob os deslocados internos. De muitas formas é compreensível. Ex-combatentes poderiam apresentar sérios riscos de segurança para um governo caso ano sejam prontamente e eficazmente desmobilizados e reintegrados a vida civil. Uma concentração de ex-combatentes insatisfeitos poderia levar ao banditismo e insegurança em uma determinada região. Finalmente, por uma questão de política prática, uma vez que ainda retêm alguma influência sobre seus ex-soldados, que agora vivem como pessoas deslocadas em acampamentos temporários, os comandantes dos campos da UNITA foram capazes de extrair das autoridades locais alguns termos beneficiais para sua desmobilização, residência e reintegração.

De forma semelhante, o governo de Angola tem dado prioridade a reintegração dos ex-combatentes (discutido em mais detalhes a seguir) em sua legislação nacional.41 No dia 4 de Junho de 2002, um Despacho Presidencial estabeleceu a Comissão Nacional para a Reintegração Social e Produtiva dos Militares Desmobilizados e Populações Deslocadas, para impulsionar o processo de retorno. Essa Comissão seguiu o Memorando de Entendimento de Luena de 4 de Abril de 2002 assinado pelas Forcas Armadas Angolanas, FAA e as Forcas Militares da UNITA, FMU, colocando um fim em quase três décadas de conflito. Reflectindo as conclusões contidas no Protocolo de Lusaka, o Memorando de Entendimento prevê a implementação do cessar-fogo através do desligamento, aquartelamento e desmobilização das forças militares da UNITA, a integração dos oficiais da UNITA em postos do exército angolano e na polícia nacional.

De acordo com esses acordos, as tropas têm sido desmobilizadas por toda Angola. No entanto, problemas tem surgido quanto aos dois passos seguintes previstos no processo que são, abrigar os soldados desmobilizados em áreas temporárias (ou de aquartelamento) e depois fornecer habitação nos locais onde poderão retomar suas vidas como civis. Não parece haver locais suficientes identificados ou com casas construídas para oferecer aos soldados desmobilizados e aos civis deslocados internos. Como resultado disso, as autoridades angolanas têm pressionado os civis deslocados internos e evacuar os campos ou centros de trânsito para que esses lugares sirvam de abrigo para os soldados desmobilizados. Acelerar o retorno de civis deslocados internos como forma de obter abrigo para os soldados desmobilizados gera preocupações quanto ao carácter voluntário desses retornos as terras de origem. 42

Muitos angolanos deslocados internos entrevistados pela Human Rights Watch foram pressionados a deixar os centros de trânsito avisados de que deveriam evacuar os centros para possibilitar a assistência aos soldados desmobilizados. As autoridades locais teriam dito a eles que os soldados estariam entrando nos centros como forma de expulsar os civis deslocados internos. Alguns somente conseguiram ficar quando grupos humanitários intervieram a seu favor com as autoridades locais. As autoridades da provincia do Uíge, em Negage, com intenção de usar a estrutura existente no centro de trânsito de Bengo II para acomodar ex-combatentes originários da área de aquartelamento do Uamba, apressaram as pessoas deslocados internos a abandonarem o centro sem oferecer a assistência necessária ou informações sobre as condições das áreas de retorno.43

Laurilinda C., 32, deslocada durante o conflito, conseguiu ficar no centro de trânsito de Bengo II somente após a intervenção de uma organização humanitária. Ela contou a Human Rights Watch:

Alguns de nós [deslocados internos] saímos apressados daqui [Bengo II] quando soubemos que os soldados viriam para o centro. Eu fiquei com medo mas não podia sair. Sair para onde? Minha vila não existe mais. Estamos melhor aqui no centro de trânsito do que em cidades que não existem.44

Como observado anteriormente, embora seja compreensível que, por questões de segurança, o governo angolano tenda a dar prioridade às necessidades dos soldados desmobilizados, ao mesmo tempo, essa prioridade deve ser balanceada com o direito dos deslocados internos de não sofrerem discriminação no acesso aos serviços prestados pelo governo tais como habitação e outros oferecidos nos centros de trânsito.45

Tratamento Inadequado para as Mulheres Chefe de Família entre os Deslocados Internos

As mulheres deslocadas que também são chefe de família têm relutado a voltar as suas áreas de origem, por temerem por sua segurança e por julgarem que as condições de retorno não são suficientes. Muitas mulheres temem que, se regressarem para suas terras, suas crianças não poderão continuar na escola. As mulheres que preferiram não retornar para as suas terras, entram em conflito directo com a preferência do governo angolano de retirar os deslocados internos dos centros de trânsito para oferecer esses estabelecimentos aos soldados desmobilizados. Como resultado, as mulheres, chefes de família que se recusam a evacuar os centros de trânsito, compartilham esses estabelecimentos com ex-combatentes e militares. Essa práctica de abrigar um grupo vulnerável particular (mulheres chefe de família e suas crianças) com um grupo conhecido por cometer no passado actos violentos contra mulheres e crianças (combatentes) gera uma grande preocupação sobre os direitos humanos.46 O Estado tem a obrigação de proteger seus cidadãos de atos de violência, e em particular, tem a obrigação de proteger os grupos vulneráveis inclusive as mulheres e crianças.47 Essa responsabilidade é ainda maior quando os indivíduos estão efetivamente dentro do controle do Estado, como é o caso daqueles em centros de trânsito ou campos de reassentamento temporário.

A Human Rights Watch documentou casos nos quais mulheres chefe de família se recusaram a deixar os centros de trânsito e consequentemente foram acomodadas em localidades juntamente com ex-combatentes. Nesses casos, incidentes de estupro e outras formas de violência sexual, assim como ameaças de violência foram reportadas.48

Rosita D., mãe solteira residente de Bengo II, um centro de trânsito em Negage [que também era usado para abrigar soldados desmobilizados] expressou seus temores sobre sua permanência no centro onde viviam também cerca de vinte Famílias de ex-combatentes.

Os militares bebem muito e eles faltam com o respeito às mulheres e meninas. Eles vêm conversar com as meninas. Uma vez, houve até tiroteio. Foi no início de 2002. Eu sempre aviso para minhas filhas para terem cuidado. Eu temo por elas.49

Apesar da Human Rights Watch não ter identificado que a violência contra mulheres em centros de trânsito como um problema sistemático, ainda assim expressa sua preocupação de que a prolongada cohabitação dos centros de trânsito por mulheres deslocadas e ex-soldados pode vir a expôr as mulheres, principalmente aquelas sem companheiros homens a assêdio ou violência sexual. Tanto as autoridades do governo Angolano quanto os oficiais de proteção do ACNUR deveriam implementar medidas para garantir que as mulheres possam denúnciar casos de assédio e violência sexual e tomar as ações cabíveis contra os responsáveis por tais atos.

Falha na Emissão dos Documentos de Identificação

Muitos dos deslocados internos entrevistados pela Human Rights Watch não possuíam documentos de identidade que os permitiriam registrar seus nomes, status familiar, idade, nacionalidade, lugar de origem e outras informações de identificação.

A falta generalizada de documentos de identidade viola o Princípio 20 dos Guiding Principles que salienta a importância da emissão de novos documentos ou substituição dos documentos das pessoas deslocadas para que elas possam exercitar seu direito de reconhecimento perante a lei. A legislação angolana também reconhece esse direito importante no Artigo 12 dos procedimentos para implementação das Normas para o Reassentamento dos Deslocados Internos.

Documentação de identidade é frequentemente a base sobre a qual os indivíduos podem gozar outros direitos humanos. Essa é a razão pela qual é tão importante que essa falha seja resolvida para os Angolanos deslocados internos. Aqueles sem os documentos de identidade poderão ficar sem acesso a educação, assistência humanitária, médica ou outros serviços. Podem ainda ser impedidos de votar ou participar de outras formas do futuro político de seu país.

Rosita D. e Marcelina B., ambas mulheres deslocadas vivendo no centro de trânsito do Bengo II, no Uíge, contaram a Human Rights Watch porque consideravam a documentação de identidade tão importantes:

Nossos filhos receberam cartão de identidade.50 Eles foram registrados. Nós mesmas não temos registro. Nós não temos nenhum documento oficial. Durante a guerra, para chegar a Bengo [o centro de trânsito e não a província] tínhamos que passar por três pontos de controle. O único documento que tínhamos era um cartão do JRS, sem fotografia. Se os controles voltarem, nós não teremos como nos identificar. Vamos precisar de identidade. Vamos precisar de identidade para várias coisas. Não podemos votar sem identidade.51

Geraldo F., 19, explicou para Human Rights Watch as dificuldades em obter uma nova identidade.

Eu não tenho identidade. Para conseguir uma identidade, precisamos pagar. Custa como 300 Kwanzas [aproximadamente US$4,60] e mais 100 Kwanzas [aproximadamente US$1,53] para tirar a fotografia e ter o registro civil. Se eu tivesse dinheiro pagaria para ter uma identidade.52

No passado, a Human Rights Watch encontrou que a falta de documentos de identidade facilita o abuso por parte das autoridades, especialmente da polícia nacional. Espancamentos arbitrários e prisão podem ocorrer quando os deslocados não são capazes de apresentar documentos de identidade pessoal aos policiais ou não tem condições de pagar pelas extorsões impostas. Mulheres e meninas são especialmente vulneráveis a esses tipos de abuso mas também a violência sexual cometida por policiais tanto em postos de controle quanto em áreas agrícolas isoladas ou quando recolhem água.53

Assistência Humanitária Inadequada

Angola enfrenta sérios desafios para garantir que todos os deslocados internos recebam alimentos, água, abrigo e outra assistência humanitária, tais como sementes e ferramentas para facilitar sua reintegração.

Em múltiplas ocasiões, prazos irreais e a evacuação da população civil deslocada para poder aproveitar as estruturas existentes com os ex-combatentes, significa que muitas pessoas retornaram antes que fossem viabilizados nos lugares de retorno, alimento, água, sementes, ferramentas e outras necessidades humanitárias.

A comunidade internacional tem oferecido significativa assistência financeira a Angola para permitir a distribuição da ajuda necessária as pessoas deslocados interno.54 No entanto, os governos doadores e o governo angolano não conseguiriam cumprir com esses prazos, gerando sérios problemas para alguns dos deslocados internos. Fundos adequados e de logística não haviam sido acertados para a distribuição das necessárias sementes e ferramentas para os soldados desmobilizados antes da estacão das chuvas que iniciou-se em Setembro e Outubro. Consequentemente, o governo optou por redireccionar alguns itens de ajuda humanitária previstos para distribuição entre a população de deslocados, para atender aos soldados desmobilizados, aumentando assim a preocupação quanto a discriminação dos deslocados internos civis.55

A pressa do Governo para que os deslocados internos regressassem para suas terras colocou milhares de pessoas em grande risco de escassez de alimentos e as expôs a condições de saúde deterioradas.56 Durante o último estágio da guerra, tanto as forças do Governo quanto as da UNITA destruíram plantações, saquearam as lavouras e deixaram as áreas rurais sem as mínimas condições de garantir a alimentação dos retornados.57 Além disso, as organizações humanitárias não foram capazes de fornecer a necessária assistência em áreas que ficaram inacessíveis devido à estação das chuvas. Uma vez que novas distribuições foram às vezes, insuficientes ou seriamente proteladas, os deslocados que retornavam, lutavam para sobreviver em suas vilas previamente devastadas.

A Responsabilidade pela Protecção e Assistência dos Angolanos Deslocados Internos

Todos os governos, inclusive o de Angola, “tem a responsabilidade primária e principal de cuidar das vítimas de desastres naturais e outras situações de emergência que ocorram em seu território.”58 Sendo assim, o governo angolano tem a responsabilidade primordial de considerar os cinco problemas enfrentados pelos angolanos deslocados internos identificados pela Human Rights Watch neste relatório. No entanto, o governo não é responsável sozinho. Dada a grandiosidade dos desafios enfrentados pelo governo angolano, tem solicitado e recebido significativo apoio da comunidade internacional para assistir as necessidades dos angolanos deslocados internos.

Várias agências operacionais da ONU tais como o Escritório de Assuntos Humanitários da ONU (Office for the Coordination of Humanitarian Affairs, OCHA), o Programa Alimentar das Nações Unidas (PAM) e o ACNUR, frequentemente em parcerias com ONGs, têm apoiado o esforço do governo angolano de prestar assistência àqueles vivendo em áreas de trânsito, através do fornecimento da maior parte da ajuda humanitária distribuída às pessoas deslocadas em retorno. O disperçamento apressado e desorganizado desses grupos por todo o país, o crescente número de acidentes com minas terrestres, a falta de infra-estrutura e vários retrocessos financeiros ameaçam prejudicar o trabalho dessas agencies, que já enfrentam o problema de um número crescente de pessoas com necessidade humanitária.

Como observado anteriormente, a protecção das populações deslocadas é de responsabilidade do governo angolano. No entanto, o país actualmente empenha-se para estabelecer estruturas adequadas nas áreas rurais com um número limitado de funcionários treinados na protecção dos deslocados internos. À luz dessa falha na protecção, o Conselho de Segurança da ONU em Agosto de 2002 transfere a responsabilidade de protecção dos direitos humanos dos deslocados internos para a Divisão de Direitos Humanos da Missão da ONU em Angola (UNMA).59 O novo mandato da Divisão de Direitos Humanos da UNMA, criou uma oportunidade importante ao empregar oficiais dos direitos humanos para as províncias. No entanto, depois de encerrado o mandato da UNMA em 15 de Fevereiro de 2003, a ONU decidiu não renovar sua missão em Angola, o que na prática significa que os desenvolvimentos e progressos sobre a implementação do processo de paz não mais serão apresentados perante o Conselho de Segurança da ONU.60

A Human Rights Watch se preocupa uma vez que, embora seja do objectivo da ONU auxiliar a consolidar o processo de paz em Angola, até Abril de 2003 a ONU não havia estabelecido ainda um plano que especificasse o número de técnicos e quantos recursos dedicaria à protecção de direitos humanos em Angola.61 Até Julho de 2003, o Escritório do Alto Comissáriado de Direitos Humanos das Nações Unidas não havia recebido nenhum fundo do montante de U.S.$ 1.178.969 pedido originalmente.62 Várias outras agências responsáveis por programas de segurança também aguardavam recursos até o momento de elaboração deste relatório. Das agencies da ONU atuantes em Angola, o ACNUR, havia recebido o maior percentual de seu pedido original— 78,1 porcento de U.S.$ 25.125.793.63

Por fim, as pessoas deslocadas que vivem ou retornam para as mesmas áreas dos refugiados angolanos, deveriam beneficiar-se também dos esforços do ACNUR.64 Facilitar a reintegração de toda as categorias de populações deslocadas65 é parte da missão institucional da agência em Angola. Limitações de recursos, no entanto, têm comprometido a possibilidade do ACNUR de proteger os deslocados internos e monitorar o respeito aos direitos humanos.



23 Global IDP Project, Norwegian Refugee Council, Earthscan, Internally Displaced People: A Global Survey, 2002, p. 32.

24 Ver, OCHA/Angola, “Population Return” 1 April [2002] – 28 February 2003 (relatório-mapa), 15 de Março de 2003.

25 See OCHA, Angola Humanitarian Coordination Update, 10 July, 2003.

26 Segundo o Angola Peace Monitor No. 6, Vol. IX, Action for Southern Africa, 6 de Março de 2003, “três quartos dos acidentes com minas terrestres envolviam Deslocados Internos transitando por áreas desconhecidas”. (Tradução nossa).

27 OCHA/Angola, Internally displaced persons in Camps and Transit Centers, Internally displaced persons Resettled in Temporary Locations (relatório-mapa), 15 de March de 2003.

28 Angola ratificou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) em 10 de Janeiro de 1992.

29 Princípio 28 do Guiding Principles on Internal Displacement. As normas desenvolvidas no contexto dos retornos voluntários de refugiados podem servir para informar o que o retorno voluntário de deslocados internos exige. O Manual sobre o Repatriamento Voluntário do ACNUR (Handbook on Voluntary Repatriation, (1996)) determina que retornos voluntários dependem de “os factores (pull-factors) positivos no país de origem, são o motor na decisão dos refugiados de retornar ao invés de possíveis fatores no país de abrigo ou factores negativos tais como ameaças à propriedade no país de orígem”. Além disso, os retornos deveriam “dar-se em condições de cuidado, dignidade e segurança.” Essa norma prevê o retorno “que acontece em condições de segurança legal… física e material… [Os retornados deveriam] ser tratados com respeito e plena aceitação por suas autoridades nacionais, inclusive a restauração de seus direitos.” O Handbook contém princípios derivados do Direito Internacional pelo qual a atuação do ACNUR e governos durante o repatriamento pode ser avaliada. Também se baseia em várias Conclusões do Comitê Ex, tais como as Conclusões No. 18 (1980), Conclusão No. 40 (1985) e Conclusão No. 74 (1994), que refletem as normas de direitos humanos assim como as interpretações da Convenção sobre os Refugiados.

30 O Artigo 9 dos Procedimentos Operacionais para a Implementação das Normas para o Reassentamento das Populações Deslocadas, determina que é responsabilidade dos Governos das Províncias através do grupo Ad-hoc para o Apoio Técnico e Administrativo, garantir o respeito pela natureza voluntária e consensual do processo de reassentamento e retorno. Conselho de Ministros, Decreto No. 79/02, 6 de Dezembro de 2002. Capítulo 4, Artigo 9 (d).

31 Entrevista da Human Rights Watch com um agente humanitário que pediu para não ser identificado, Angola, Novembro de 2002.

32 Entrevista da Human Rights Watch com um agente de assistência humanitária que pediu para não ser identificado. Negage, 20 de Marco de 2003.

33 Os Angolanos deslocados internos deveriam poder “retornar voluntariamente, em segurança e com dignidade, para suas casas ou lugares de residência habitual, ou reassentar-se voluntariamente em outra parte do país. . . Atenção especial deveria garantir a plena participação dos deslocados internos no planejamento e administração de seu retorno ou reassentamento e reintegração”. Guiding Principles, Princípio 28 (Tradução nossa).

34 Ver Artigo 5 que determina 1. a natureza voluntária do processo de reassentamento pois o Sub-Grupo sobre Deslocados Internos e Refugiados das províncias deve chegar a um entendimento com as autoridades tradicionais que representam os deslocados internos que serão reassentados assim como as autoridades tradicionais das comunidades receptoras. 2. O Sub-Grupo sobre Deslocados Internos e Refugiados deve incluir as pessoas envolvidas no planejamento e administração de sua relocação. Ver, Normas para o Reassentamento das Populações Deslocadas, Decreto No. 1/01, 5 de Janeiro de 2001.

35 Entrevista da Human Rights Watch com Marlene V., 28, em Negage, Uíge, 20 de Marco de 2003.

36 Entrevista da Human Rights Watch com Jorge S., 33, em Negage, Uíge, 20 de Marco de 2003.

37 Entrevista da Human Rights Watch com um agente do ACNUR que pediu para não ser identificado, Uíge, 19 de Marco de 2003.

38 A viagem por terra para Luanda implica em riscos intoleráveis e exposição a minas terrestres. Como o único meio razoavelmente seguro de alcançar a capital Angolana é por via aérea– meio controlado pelo governo– o não its fornecimento de transporte acessível a essas pessoas elimina de a sua possibilidade de viagem e retorno. Entrevista da Human Rights Watch com Helena S., 29, Bengo II, Uíge, 20 de Marco de 2003.

39 Angola ratificou o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC) em 10 de Janeiro de 1992. Tornou-se Parte da Convenção dos Direitos da Crianca em 6 de Dezembro de 1990. A norma de reunificação familiar para pessoas deslocadas está especificamente citada no Princípio 17 do Guiding Principles.

40 Entrevista da Human Rights Watch com Helena S. 29, Bengo II, Uíge, 20 de Marco de 2003.

41 Em várias ocasiões, o governo demonstrou seu interesse em dispensar as forcas militares da UNITA o mais rápido possível como forma de avancar o processo de paz em Angola ver, African Security Review, 12 (1) 2003.

42 Ver nota de rodapé no. 23 e subsequentes textos para discurssão sobre as normas de retorno voluntário.

43 Entrevista da Human Rights Watch com Fuxy dya Manda, Jesuit Refugee Service, Negage, Uíge, 20 de Marco de 2003.

44 Entrevista da Human Rights Watch com Laurilinda C., 32, Bengo II, Uíge, 20 de Marco de 2003.

45 Ver por exemplo, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), Artigo 26 (proibindo a “discriminação com base na raça, cor, sexo, idioma, religião, posição política ou outra opinião, nacionalidade, orígem social, naturalidade, nascimento ou outro status”) (ênfase nossa). Ver também, Guiding Principles, Princípio 23 (“as autoridades competentes devem garantir que… as crianças delocadas recebam educação gratuita e obrigatória de primeiro grau”) (Tradução nossa).

46 O governo de Angola tem a obrigação primária sobre a prevenção de discriminação e violência contra mulheres e crianças. Ver. Artigo 3 (mas também Artigos 2 (1) e 26) do PIDCP.

47 PIDCP, Artigo 7 e Artigos do 32 ao 36 da Convenção dos Dieitos da Criança. Casos de violência especifica contra a mulher, ou um ato de violência que resulta em danos físicos, sexuais ou psicológicos de um sexo são expressamente proibidos pelo Artigo 1 da Declaração das Nações Unidas de 1993 pela Eliminação da Violência contra a Mulher.

48 No campo de Bengo II, província do Uíge, ao menos dois incidentes de violência contra mulheres—um rapto e um estupro— foram relatados as agências humanitárias atuando na região. Nenhuma ação formal foi tomada nesses casos. Entrevista da Human Rights Watch com Salvador Jorge, Jesuit Refugee Service, 20 de Março de 2003. A Human Rights Watch tentou falar com as vítimas mas elas haviam deixado a região alguns dias antes da nossa chegada.

49 Entrevista da Human Rights Watch com Rosita D. no Negage, Uíge, 20 de Marco de 2003.

50 UNICEF e o governo angolano lançaram uma campanha nacional de registro de nascimento que atendeu mais de 1,9 milhões de crianças desde o final da Guerra. UN Integrated Regional Information Networks, Rehabilitation of Child Soldiers Critical, UNICEF, 10 de Marco de 2003. Ver, http://allafrica.com/stories/200303100824.html

51 Entrevista da Human Rights Watch com Rosita D. e Marcelina B., Negage, Uíge, 20 de Marco de 2003.

52 Entrevista da Human Rights Watch com Geraldo F., 19, Negage, Uíge, 20 de Março de 2003.

53 “The War Is Over: The Crisis of Angola’s Internally Displaced Continues,” Human Rights Watch Briefing Paper, Julho de 2002.

54 As pessoas deslocadas são as maiores beneficiárias do Plano de Acão da Comissão Européia de EU125 milhões para Angola. Ver, Global IDP, Profile of Internal Displacement in Angola, Database do Norwegian Refugee Service, 19 de Fevereiro de 2003.

55 O desvio do foco de atenção também gera preocupação, na medida em que o Princípio 24 do Guiding Principles, requer que a “assistência humanitária para pessoas deslocadas não deve ser desviada, em particular, por razões políticas ou militares.” (Tradução nossa).

56 Entrevistas da Human Rightw Watch com oficiais do PAM, Angola, 19 de Marco de 2003.

57 Ver, Human Rights Watch, Angola Unravels: The Rise and Fall of the Lusaka Peace Process, (New York: Human Rights Watch, 1999).

58 Ver, Anexo a Resolução da Assembléia Geral da ONU No.46/182, Strengthening of Coordination of Humanitarian Emergency Assistance of the United Nations.

59 Ver, SC/Res/1433 (2002).

60 Ver, Angola Peace Monitor Issue No. 6, Vol. IX, Action for Southern Africa, 16 de Março de 2003.

61 Entrevista da Human Rights Watch com representates da OCHA em Uíge e Luanda, 19 de Março e 4 de Abril de 2003.

62 O Escritório do Alto Comissáriado de Direitos Humanos da ONU originalmente solicitou U.S.$ 1.800.000. Mais tarde, revisou seu pedido para U.S.$1.178.969. Ver, U.N. Consolidated Inter-Agency Appeal for Angola 2003. Summary of Requirements and Contributions – By Appealing Organization, 29 de Julho de 2003. http//www.reliefweb.int/fts.

63 No total, as contribuições somam apenas 32,7 porcento do orçado pelas agências da ONU para 2003.Ver, U.N. Consolidated Inter-Agency Appeal for Angola 2003. Summary of Requirements and Contributions – By Appealing Organization. 29 de Julho de 2003. http//www.reliefweb.int/fts

64 Ver, ACNUR, Internally Displaced Persons: The Role of the United Nations High Commissioner for Refugees, 6 de Março de 2000.

65 ACNUR, Global Appeal 2003 – Angola, Dezembro de 2002.


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Agosto 2003
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