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III. CONTEXTO

Ao longo de quase três décadas, os Angolanos lutaram para sobreviver em meio a um dos mais longos conflitos da história moderna.1 Durante esse período, aproximadamente um milhão de pessoas mortas, 4,1 milhões de deslocados e 400.000 levados aos países vizinhos da Zâmbia, Congo Brazzaville, República Democrática do Congo e Namíbia.2

A assinatura do Memorando de Entendimento a 4 de abril de 2002 entre as Forças Armadas Angolanas, FAA e as Forças Militares da UNITA, FMU, após a morte do líder Jonas Savimbi, em fevereiro de 2002, pôs fim a quase três décadas de conflito entre o governo angolano liderado pelo partido do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e a UNITA.

O Memorando de Entendimento de Luena, também conhecido como o Acordo de Luena, cidade onde o acordo foi assinado, reitera os elementos principais do Protocolo de Lusaka de 1994, assinado na capital Zambiana. O Acordo de Luena prevê a implementação do cessar-fogo através do desarmamento, aquartelamento e desmobilização das forças militares da UNITA, a integração dos oficiais de maior patente nas forças armadas e polícia nacional e uma lei de anistia geral para todos os crimes cometidos durante o conflito.3

Segundo dados do governo Angolano, mais de dois milhões dedeslocados internos, aproximadamente 50 por cento do número total dos deslocados, já retornou para suas áreas de origem ou para campos de ressentimento. Além disso, 130.000 refugiados também retornaram para Angola espontaneamente da República Democrática do Congo, Zâmbia e Namíbia.4

Embora as taxas de desnutrição entre os grupos vulneráveis tenham se estabilizado em algumas áreas e a situação humanitária geral, continue melhorando em várias regiões do interior, as condições todavia são precárias. O Programa Alimentar Mundial da ONU, PAM, estima que 1.800.000 pessoas ainda dependem de assistência alimentar para sobreviver em Angola. As expectativas são de que esse número aumente devido as significativas dificuldades logísticas surgidas após o período de chuvas, sobretudo entre Novembro e Março, o qual destruiu pontes e danificou as estradas tornando a distribuição de alimentos mais difícil. Segundo a OCHA, 2,657,000 Angolanos estão em situação vulnerável e precisam ou virão a precisar de assistência alimentar.5

Além disso, um aumento dos acidentes com minas terrestres coloca um risco considerável tanto para as populações de deslocados que tentam retornar quanto para os funcionários de agências humanitárias que trabalham na assistência a essa população. O perigo apresentado pelas minas terrestres e a diminuta possibilidade de viajar tem forçado as organizações humanitárias a reduzir drasticamente, ou mesmo, suspender suas actividades.6 Muitos dos deslocados internos são vítimas de minas terrestres ou enfrentam sérios riscos que limitam sua produção agrícola ou seu acesso à ajuda humanitária.7

Causas Históricas para o Deslocamento em Angola

Durante a guerra civil, os principais grupos armadas cometeram vários abusos contra a população civil.8 Dentre as principais violações estavam os ataques físicos e sexuais, estupro, mutilações, recrutamento forçado, rapto de mulheres e meninas, saques e execuções extra-judiciais.9

Segundo o Escritório de Assuntos Humanitários da ONU (Office for the Coordination of Humanitarian Affairs, OCHA), entre 1992 e 1994, de 1,3 a 2 milhões de Angolanos fugiram de suas casas. A maioria se fixou nas capitais das províncias e em Luanda mas, até fins de 1997, aproximadamente um milhão de Angolanos ainda permanecia deslocados. Durante os últimos quatro anos de conflito, entre 1998 e 2002, tanto as forças do Governo quanto da UNITA, mais uma vez, se valeram de tácticas de terror que geraram um deslocamento em massa da população civil. A OCHA estima que, nesse período, cerca de 3,1 milhões de pessoas tenham sido forçadas a abandonar seus lares, aumentando o número total de deslocados internos em Angola para 4,1 milhão.10 Segundo o ACNUR, o número de refugiados Angolanos (fora do país) durante esse mesmo período quase dobrou, aumentando de 267.700 para 470.600.11

Em suas áreas de controle tropas da UNITA regularmente, forçavam os civis a abandonarem suas casas e a fugir de suas áreas de origem. Muitos foram proibidos de levar seus pertences e viajaram longas distâncias para alcançar um lugar seguro. Como não levavam roupas, alimentos ou medicamentos, muitos padeceram no caminho ou precariamente sobreviveram a desnutrição, ferimentos com minas terrestres e doenças.

Durante o conflito, as Forças Armadas Angolanas, FAA, e a Polícia Nacional Angolana, PNA, frequentemente também cercava os civis de uma área capturada anteriormente controlada pela UNITA e forçavam essas pessoas a abandonarem o local.12

Como as cidades e vilas mais próximas frequentemente não possuíam condições mínimas de vida e saúde, as pessoas deslocadas fugiam, na maioria, para centros nas periferias das capitais das províncias. As autoridades locais raramente consultavam as pessoas deslocadas que chegavam e normalmente encorajavam que elas se mudassem para capitais mais distantes ou para a capital nacional, Luanda. Em decorrência disso, muitos pequenos agricultures que eram auto-suficientes com agricultura de subsistência, tornaram-se dependentes da assistência humanitária internacional.13

Os Programas Angolanos de Retorno e Reintegração

Angola é o único país a incorporar os Princípios Básicos sobre os Deslocados Internos das Nações Unidas (Guiding Principles) em sua legislação nacional.14 Em Janeiro de 2001, o governo Angolano aprovou as Normas para o Reassentamento das Populações Deslocadas, com base nos Guiding Principles; e, em Dezembro de 2002, aprovou o regulamento de implementação das mesmas.15 Embora essas normas apenas se apliquem as pessoas deslocadas e aos refugiados e não inclua explicitamente os ex-combatentes, têm sido aplicadas aos ex-soldados, muitos dos quais foram classificado como pessoas deslocadas. Além disso, aqueles responsáveis pela aplicação das Normas para o Ressentimento das Populações Deslocadas são também responsáveis tanto por ex-soldados desmobilizados, deslocados e refugiados.16

O Memorando de Entendimento de Luena de Abril de 2002 e seguintes negociações determinaram provisões para regular o reassentamento e reintegração dos ex-combatentes.17 Esses ex-soldados deveriam receber benefícios tais como identidade e cartão de desmobilização, cinco meses de salário, um adicional de US$100 para gastos com transporte, kits de reassentamento com produtos não-alimentares e acesso a cursos de capacitação. O governo Angolano determinou que as áreas de aquartelamento fossem fechadas e promoveu uma transferência dos ex-combatentes para os centros de trânsito ou acampamentos temporários. Na medida em que as condições nos lugares de origem fossem seguras e adequadas, eles também seriam encorajados a retornar.

As normas internacionais que guiam o processo de repatriamento oficial para refugiados aparece em acordos tripartite entre os governos de Angola, o ACNUR e o governo da Zâmbia, em um acordo, e o governo da República Democrática do Congo, no outro. Dentre as questões tratadas nos acordos tripartites estão a documentação, registro e transporte dos refugiados e seus pertences assim como a segurança dos retornados em geral e, em particular, grupos vulneráveis. Quando os refugiados retornam espontaneamente, seu tratamento e proteção não se guia pelos acordos de repatriamento formal, e sim pela legislação angolana.18 Além disso, as normas internacionais de direitos humanos e outros princípios do Direito Internacional impõem obrigações às autoridades Angolanas e entidades internacionais envolvidas no processo de reassentamento e repatriamento.

Na prática, os centros de trânsito foram criados em Angola para dar assistência a pessoas deslocadas, refugiados e ex-soldados por períodos que não excedessem setenta e duas horas. No entanto, quando as condições humanitárias, sócio-econômicas e de segurança nas áreas de origem eram inaceitáveis, aqueles deslocados pela guerra poderiam permanecer nos centros de trânsito. Assim, alguns desses centros de trânsito se transformaram de facto em acampamentos temporários.

Após o cessar-fogo, centenas de refugiados Angolanos já retornaram para Angola espontaneamente, isto é, sem esperar por assistência internacional do ACNUR.19 Por terem retornado por conta própria, sua assistência não se baseia nas normas dos acordos de repatriamento e sim nas leis Angolanas. Especificamente, os Procedimentos Operacionais para a implementação das Normas para o Reassentamento das Populações Deslocadas em seu Artigo 2 determina que suas provisões se aplicam às pessoas deslocadas e refugiados Angolanos a retornar ao país.20 No programa de repatriamento oficial, os refugiados em retorno deveriam receber assistência antes em centros de trânsito próximos as fronteiras de Angola com os países que abrigam os refugiados. Ali deveriam receber seus documentos de identificação entre outros, assim como assistência médica e humanitária. Em seguida, eles deveriam ser conduzidos a acampamentos temporários onde esperariam por transporte e outra assistência necessária para retornar aos seus lugares de origem ou localidades onde desejarem ser reassentados. Apesar de serem menores as responsabilidades da ACNUR em um contexto de retorno espontâneo, a agência reconhece que “ainda precisa se posicionar para oferecer assistência e protecção oportuna e eficaz, na medida do possível no país de origem [Angola]”.21 No entanto, a agência também deveria notar que “a falta de notificação, planejamento prévios e uma agenda judicial torna isso mais difícil”.22 O repatriamento organizado pelo ACNUR teve início em 20 de Junho de 2003. O retorno e reassentamento dos refugiados Angolanos e das populações de deslocados internos deve continuar até 2006.

Um outro grupo deslocado durante o conflito é formado pelos ex-combatentes da UNITA desmobilizados. Os ex-combatentes foram agrupados em áreas de aquartelamento estabelecidas pelo governo Angolano entre Abril e Maio de 2002. Inicialmente, as agências humanitárias não tiveram acesso a essas áreas para prestar assistência e suas condições de vida eram terríveis. Muitas áreas de aquartelamento eram remotas, em locais não acessíveis, distantes das rodovias e pistas de avião. O governo Angolano anunciou que essas áreas seriam fechadas até Outubro de 2002; mais tarde adiou essa data para Dezembro de 2002 e, novamente, para Abril de 2003. Em fins de Março, quando a Human Rights Watch visitou as províncias de Uíge e Moxico, a maior parte das áreas de aquartelamento nessas províncias havia sido fechada recentemente.




1 Embora o conflito armado tenha cessado na maior parte do país, na provícia enclave de Cabinda o conflito continua. Cabinda é a única região onde os conflitos entre as forças do governo e grupos separatistas persiste.

2 Segundo o ACNUR, 1.000.000 de pessoas foram mortas em Angola desde 1975. Os outros números citados são do Governo Angolano, ONU, OCHA e ACNUR respectivamente.

3 Ver, Memorandum de Entendimento de Luena Complementar ao Protocolo de Lusaka, Luena, 4 de Abril, 2002. Para uma análise sobre o Processo de Paz de Lusaka ver, Human Rights Watch, Angola Unravels: The Rise and Fall of the Lusaka Peace Process, (New York: Human Rights Watch, 1999).

4 Ver OCHA, Angola Humanitarian Coordination Update, 15 de Abril de 2003.

5 Ver OCHA, Angola Humanitarian Coordination Update, 10 de Julho de 2003 (Vulnerability Assessment).

6 Ver, Landmine Monitor 2002, http://www.icbl.org/ sobre minas terrestres em Angola e também, Instituto Nacional de Remoção de Obstáculos e Engenhos Explosivos, INAROEE, Density of accidents by provinces (report-map) (Densidade de acidentes por província – relatório-mapa), 2 de Dezembro de 2002.

7 Ver, Angola Peace Monitor Issue No. 6, Vol. IX, Action for Southern Africa, 6 de Março de 2003, “três quartos dos acidentes com minas terrestres em Angola envolvem deslocados internos caminhando em áreas desconhecidas.” (Tradução nossa).

8 Apesar das violações sistemáticas e generalizadas dos direitos humanos durante esse período, nenhum desses grupos foi processado por seus crimes. Além disso, a Anistia Geral de Angola de 2002 inclui os crimes incorridos durante o conflito civil.

9 Ver também, Human Rights Watch, Angola Unravels: The Rise and Fall of the Lusaka Peace Process, (New York: Human Rights Watch, 1999), http://www.hrw.org/reports/1999/angola/ e Human Rights Watch World Report 2002, http://www.hrw.org/wr2k2/africa1.html/

10 Ver, U.N. OCHA Consolidated Inter-Appeal 2002 para Angola (não disponível em versão eletrônica). Ver também, Human Rights Watch The War Is Over: The crises of Angola’s Internally Displaced Continues, Human Rights Watch Briefing Paper, Julho de 2002. Ver ainda,Médecins sans Frontières, Angola: Sacrifice of a People, Outubro de 2002.

11 ACNUR, Statistical Yearbook 2001 (Genebra, Outubro de 2002), Anexo A.6.

12 Esse método de deslocamento forçado era conhecido como “operações de limpeza”.

13 Durante a Guerra, Angola também experimentou um processo de urbanização. A falta de serviços básicos tais como escolas, centros de saúde, mercados e a degradação do meio ambiente nas áreas rurais foram intensificadas com o conflito levando muitos angolanos a fugir para cidades e vilas. Para maiores informações e o deslocamento forçado dos angolanos provocado tanto pelas forças do governo quanto pela UNITA ver, Medecins Sans Frontiers (MSF) briefing to UN Security Council on the Humanitarian Situation in Angola, 5 de Março de 2002.

14 The Guiding Principles on Internal Displacement (the Guiding Principles), adotado em Setembro de 1998 pela Assembléia Geral da ONU, reflete o direito humanitária internacional assim como os direitos humanos e fornece um conjunto de normas concretas que guiam o tratamento dos deslocados internos. Embora não estabeleça obrigações diretas, os Guiding Principles se baseiam na normativa internacional que obriga os Estados assim como alguns grupos insurgents, e têm conseguido respaldo na comunidade internacional.

15 Em 5 de Janeiro de 2001 e 6 de Dezembro de 2002, o Governo Angolano aprovou, respectivamente, as Normas para o Reassentamento das Populações Deslocadas e o Regulamento para implementação das mesmas.

16 Conselho Ministerial, Decretos No. 1/01 e 79/02, República de Angola, 5 de Janeiro de 2001 e 6 de Dezembro de 2002 (respectivamente).

17 Ver Capítulo II da Agenda do Memorando de Entendimento de Luena e o Anexo I sobre a localização, administração e assistência as áreas de aquartelamento (1) (2) e (3), Memorando de Entendimento de Luena, Luena, 4 de Abril de 2002.

18 Artigo 2 dos Procedimentos Operacionais para a Implementação das Normas para o Reassentamento das Populações Deslocadas, Decreto No. 79/02, 6 de Dezembro de 2002, determina que suas provisos sejam aplicadas as populações deslocadas e refugiados Angolanos em retorno ao país.

19 A maioria das entrevistas da Human Rights Watch com refugiados que retornaram espontaneamente ao país revelou seu desejo de voltar à patria imediatamente. Eles não quiseram esperar pelo processo oficial de repatriamento organizado.

20 Procedimentos Operacionais para a Implementação das “Normas para o Reassentamento das Populações Deslocadas”, Decreto No. 79/02, 6 de Dezembro de 2002.

21 ACNUR, Handbook on Voluntary Repatriation, 1996, P.23.

22 ACNUR, Handbook on Voluntary Repatriation, 1996, P.23.


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