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V. PROBLEMAS DURANTE O RETORNO ESPONTÂNEO
DOS REFUGIADOS ANGOLANOS

Na fronteira, os soldados zambianos tentaram me intimidar. Eu fiquei com medo mas consegui passar. Eles me pediram uma lata de sal. Eles me falaram que era para o governo. Não havia polícia, apenas militares próximo a fronteira. Eu tinha algumas dúvidas e medo mas decidi vir para ver as coisas por mim mesmo. Nós temos cabras, alguns têm vacas, porcos, mas não sabemos se podemos trazer essas coisas. Eu perguntei para o Escritório dos Refugiados em Maheba [Zâmbia] mas eles nos disseram que não sabiam. Eu penso em ficar aqui por uma semana mas eu não tenho esperança… Ainda há muita mina, as estradas estão ruins e as pontes estão ruins. Eu não sei se as autoridades vão conseguir alimentar todos que estão agora em Maheba e as pessoas que já estão aqui.

– Victor C., 28, refugiado angolano que retornou a Angola espontaneamente, em entrevista com a Human Rights Watch, 25 de Março de 2003.

Estima-se que cerca de 240.000 de um total de aproximadamente 436.000 refugiados angolanos nos países vizinhos retorne entre 2003 e 2004.66 Como o programa oficial de repatriamento demorou cerca de um ano para ser implementado, um número significativo de “retornados espontâneos” já regressou ao país. Os refugiados retornam à Angola por meios próprios, com seus limitados recursos. Essas situação têm gerado e continua a gerar riscos adicionais para os refugiados que retornam.

A Human Rights Watch documentou alguns dos problemas presentes durante o retorno espontâneo dos refugiados angolanos inclusive a falta de segurança e infra-estrutura básica, extorsão na fronteira, violência contra mulheres e meninas e a falta de fornecimento de documentos de identidade para as crianças filhos de refugiados angolanos.

Angola, o ACNUR, a Zâmbia e a República Democrática do Congo assinaram dois acordos tripartida para regular o processo de repatriamento. Os acordos de Março de 2003 foram resultado de uma segunda rodada de reuniões entre os diferentes governos; o primeiro dos acordos foi assinado em Novembro e Dezembro de 2002.67 Ambos documentos estabelecem que o processo oficial de repatriamento deveria ser implementado a partir de Maio e Junho de 2003.

Embora reconheça que os problemas presentes durante o retorno espontâneo dos refugiados angolanos, provavelmente, serão tratados pelo processo oficial de repatriamento, a Human Rights Watch espera que suas preocupações possam permitir que o Governo Angolano e o ACNUR possam abordar esses assuntos específicos e permitir que o repatriamento oficial garanta as condições humanitárias básicas para o retorno.

Falta de Segurança e Infra-estrutura Insuficiente para Receber os Retornados

Até Abril de 2003, centenas de angolanos haviam retornado para Angola espontaneamente, sem esperar por assistência internacional. Consequentemente, receberam quase nenhuma assistência.68 Embora os Procedimentos Operacionais do Governo para a implementação das “Normas para o Reassentamento das Populações Deslocadas” estabeleceu os quesitos para serem aplicados durante o retorno dos refugiados,69 a Human Rights Watch observou que as autoridades têm falhado na implementação desses procedimentos.

Apesar de sua obrigação de garantir a segurança dos retornados no Artigo 13 dos Procedimentos Operacionais, o governo não tomou as medidas necessárias para proteger os refugiados retornados de sérios e previsíveis perigos.70 Os refugiados que retornam de forma espontânea, enfrentam normalmente extorsão e intimidação ao cruzar fronteiras e pontos de controle.71 Nas áreas de fronteira, especialmente entre Angola e a República Democrática do Congo, angolanos retornados enfrentaram incidentes de violência física. Em Janeiro de 2003, autoridades congolesas esfaquearam e mataram um retornado e em Junho de 2002, atiraram quatro angolanos refugiados que retornavam dentro de um rio. Os retornados morreram afogados.72 Por toda Angola e nas áreas de fronteira, refugiados estão retornando para áreas onde as forças policiais não estão presentes e quando presentes, são precariamente treinados. Ainda pior, um oficial do ACNUR contou a Human Rights Watch que alguns refugiados retornados, haviam reclamando terem sofrido extorsão e espancamentos pela Polícia Nacional. Infelizmente, esses casos não tem sido investigados plenamente devido principalmente à falta de especialização no trabalho de fiscalização da incipiente administração civil.73 Paulo Kaumba, Chefe da Polícia do Alto Zambeze no Moxico explicou a Human Rights Watch suas necessidades da seguinte maneira:

O que nós precisamos é mais pessoal e nós precisamos de computadores. Isso ajudaria o nosso trabalho de registrar as pessoas. Nós temos um gerador eléctrico mas nós não temos viatura. Nós precisamos de viaturas no nosso trabalho também.74

O Regulamento é um tanto vago quanto ao nível necessário de administração das áreas de reassentamento. O documento determina no seu Item 1 do Artigo 10, que o reassentamento deveria ocorrer em uma área na qual a administração civil local esteja “representada”. Como o termo “representada” não é explicado em grandes detalhes, a presença de uma única pessoa pode ser argumentada como cumprimento a esse requerimento. Na prática, portanto, os refugiados retornados podem ser reaplicados em áreas onde autoridades não estão presentes, a criar risco de falta de lei e de impunidade.75

Quando os refugiados retornados finalmente chegam às suas áreas de destino, eles têm encontrado sérias crises humanitárias e têm sido impedidos de receber assistência, devido a inacessibilidade dessas áreas. Esse foi o caso de refugiados retornados que se estabeleceram em Louva, na província do Moxico.

Victor C. 28, refugiado angolano retornado da Zâmbia, contou a Human Rights Watch sobre as condições em Louva.

Algumas pessoas que deixaram Maheba [campo de refugiados na Zâmbia] já estão em Louva. Eu achei o meu irmão lá. Eles não tem comida. Alguns deles estão doentes. As crianças não tem roupas. As estradas estão destruídas e eles não podem receber alimentos. A única coisa para comer lá é um pouco de abóbora. Eu achei algumas melancias também mas não há suficiente para todos.76

Com base em sua pesquisa em Angola em Março e Abril de 2003, a Human Rights Watch está preocupada porque as condições básicas para receber os refugiados angolanos retornados nas províncias de fronteira com a RD do Congo e a Zâmbia não estão prontas. Os centros de trânsito e campos temporários não haviam sido construídos. A infra-estrutura existente estava a ser utilizada para atender aos ex-combatentes e, até certa medida, aos deslocados internos. As áreas de retorno (pontos de entrada) nas províncias de fronteira não eram nem seguras, nem acessíveis às agências humanitárias. Por exemplo, na província do Moxico, até Abril de 2003, nenhum centro de trânsito ou acampamento temporário havia sido construído e o processo de eliminação de minas havia sido iniciado há poucos dias. As autoridades e construtores locais contaram a Human Rights Watch que levaria ao menos três meses para completar os procedimentos de segurança e eliminação de minas e, ainda, construir os estabelecimentos para atender aos refugiados retornados.77 No momento que o ACNUR começa a implementar seu programa de retorno formal, deve tomar as medidas necessárias para tratar dos assuntos aqui dispostos.

Problemas de Violência Contra Mulheres e Meninas Refugiadas que Retornam à Angola

Nas províncias de fronteira através das quais todos os refugiados angolanos em retorno por via terrestre devem passar, as áreas são extremamente militarizadas. Militares têm cometido alguns actos violentos que, as vezes, afectam aos refugiados em retorno.78 Militares têm intimidado autoridades locais e até mesmo oficiais de agências humanitárias.79 No Cazombo, na província do Moxico, três soldados estupraram uma mulher e espancaram pelo menos quatro homens em um mesmo incidente,80 cometido em Janeiro de 2003 e descrito a seguir.

No dia 14 de Janeiro de 2003, J.L. de dezenove anos de idade, refugiada angolana retornava da Zâmbia para Louva, província do Moxico. Como o acesso a Louva estava difícil, J.L e seu marido, assim como outros setenta refugiados retornados, decidiram passar alguns dias no Cazombo. O grupo de retornados dormiu em uma escola abandonada que não tinha portas ou janelas. Segundo o oficial do ACNUR que prestou assistência aos retornados, três soldados uniformizados teriam aparecido e ameaçado o grupo. Eles espancaram alguns homens com paus e carregaram J.L. para a mata. J.L somente foi encontrada as 4:00 da manhã do dia seguinte. O oficial do ACNUR levou J.L para um hospital onde ela recebeu assistência médica. Segundo os médicos que examinaram J.L. , mais de um homem a teria estuprado. O oficial do ACNUR registrou queixa no posto policial, mas desconhecia qualquer progresso nas investigações sobre os responsáveis.81

O caso de J.L. é um dos poucos incidentes de abuso sexual durante o processo de reassentamento que foram documentados, devido à presença do ACNUR. No entanto, como um representante da organização contou-nos, “nós pensamos que outros casos semelhantes de abuso sexual podem ter acontecido em outros centros e passados sem registro.”82 Dado o estigma atrelado ao estupro e a escassez de representantes do ACNUR, apenas uma pequena percentagem de casos como esses são reportados. 83

Apesar da limitada infra-estrutura, a polícia angolana e as autoridades judiciais têm obrigações previstas nos instrumentos internacionais de direitos humanos (PIDCP, Artigo 2 (1) e 7) de investigar vigorosamente e processar àqueles responsáveis por graves abusos contra o direito da mulher, a integridade física e sexual.

Crianças Angolanas Sem Documentos de Identidade

Grande parte dos refugiados mais recentes não chegaram aos campos de refugiados nos países vizinhos. Ao invés disso, eles ficaram ao redor das fronteiras, as vezes instalando-se em outros países porém em regiões do mesmo grupo étnico. Como consequência de não fazerem parte de um campo de refugiados, eles não têm documentos que comprovem sua nacionalidade angolana.84 Essas famílias não receberam assistência formal em seu retorno à Angola e seus filhos, nascidos nos países de abrigo, são frequentemente vistos como não-angolanos, embora sejam filhos de pais angolanos.85

O direito a uma nacionalidade é um direito fundamental. O Artigo 15 da Declaração Universal de Direitos Humanos, a qual todos os Estados Membro das Nações Unidas fazem parte supostamente aderem, determina que “todos têm direito a uma nacionalidade”. O CRC garante o direito de toda criança de obter uma nacionalidade,86 e demanda que “responsabiliza-se pelo respeito ao direito da criança de preservar sua identidade, inclusive nacionalidade”.87 Além disso, “quando uma criança é ilegalmente impedida a alguns ou todos os elementos de sua identidade, os Estados Parte devem prestar assistência e protecção apropriada, como vias a acelerar o restabelecimento de sua identidade.88 No entanto, as autoridades governamentais angolanas têm falhando nesse aspecto não fornecendo documentos as crianças angolanas refugiadas que retornam à Angola espontaneamente com seus pais ou desacompanhadas.

Além disso, as autoridades angolanas frequentemente, segundo as políticas nacionais, demandam documentos de identificação das crianças como requisito para o ingresso nas escolas. Ao não dar prioridade a identificação das crianças refugiadas, essas autoridades estão de fato violando o direito dessas crianças a educação sem distinção ou discriminação.89

Responsabilidade de Proteger e Dar Assistência aos Refugiados Retornados

De acordo aos Procedimentos Operacionais para a Implementação das Normas para o Reassentamento das Populações Deslocadas, o governo angolano aumentou as provisões inicialmente concedidas para incluir os refugiados angolanos a retornar ao país. Dentre essas provisões está a responsabilidade por tratar dos problemas de segurança e estruturais enfrentados pelos refugiados angolanos em retorno espontâneo abordados neste relatório. Sob as normas internacionais para o repatriamento espontâneo, o governo angolano é responsável por garantir o retorno de seus cidadãos “em segurança e com dignidade sem qualquer medo de abuso, discriminação, detenção arbitrária, ameaça física ou perseguição por ter deixado ou permanecido em exílio, e deveria fornecer garantias e/ou amnistias nesse sentido. [O governo] também deveria tomar todas as medidas para garantir a restauração de plena protecção nacional.”90

Como observado anteriormente, embora o repatriamento espontâneo, por natureza, não seja organizado pelo ACNUR, a agência ainda assim, é responsável por exercer seu mandato de protecção “na medida do possível” mesmo para refugiados em retorno espontâneo.91 A agência tem limitações de recursos e funcionários e tem uma presença insuficiente nos locais de fronteira onde têm ocorrido incidentes de violência e extorsão. No entanto, onde os funcionários do ACNUR estão presentes, por exemplo, no caso da jovem que foi estuprada, discutido anteriormente, algumas medidas de assistência adequadas tenham sido tomadas.

O início do processo de repatriamento oficial dos angolanos retornados da Zâmbia e da República Democrática do Congo sob as provisões dos acordos Tripartida torna possível a colaboração de duas partes importantes: o governo do país de asilo (Zâmbia e RD do Congo) e o ACNUR. Como parte do processo de repatriamento, o ACNUR deve exercitar suas funções internacionais de protecção e garantir que os refugiados angolanos possam retornar com tranquilidade, segurança e dignidade, principalmente no que se refere aos problemas que a Human Rights Watch documentou neste relatório para os refugiados retornados espontaneamente.



66 ACNUR, Refugiados angolanos em países vizinhos – Estimativa do número de refugiados a retornar em 2003/2004 (relatório-mapa) 18 de Dezembro de 2002.

67 O ACNUR, os governos de Angola e da Zâmbia assinaram um acordo Tripartide em 15 de Março de 2003. O ACNUR, e os governos de Angola e da República Democrática do Congo assinaram acordo semelhante em 29 de Março de 2003.

68 No Moxico, alguns refugiados retornados contaram a Human Rights Watch que eles receberam produtos alimentares ou outra assistência do ACNUR e suas organizacões parceiras tais como Jesuit Refugee Service (JRS), Medecins Sans Frontier (MSF) e a Lutheran World Federation (LWF).

69 Procedimentos Operacionais para a Implementacao das “Normas para o Reassentamento das Populacoes Deslocadas”, Decreto Nr. 79/02, 6 de Dezembro de 2002.

70 O termo “segurança” como utilizado no Procedimento Operacional para a Implementação das Normas para o Reassentamento das Populações Deslocadas” é mais amplo que a protecção contra minas terrestres, uma vez que o mesmo documento se refere frequentemente a “acção de desmontagem de minas”, “áreas minadas” e“limpeza de minas e UXO” no mesmo artigo. Segurança deveria também incluir todos os estágios durante e depois do retorno dos refugiados, inclusive quando em trânsito, nos pontos de recepção e nas áreas de destino. Ver, ACNUR Handbook, Voluntary Repatriation: International Protection, Genebra, 1996. P.12.

71 Entrevista da Human Rights Watch com agentes humanitários, Cazombo, Moxico, Março de 2003.

72 Entrevista com oficial do ACNUR, Nilo Dantas, Uíge, 19 de Marco de 2003.

73 Entrevista da Human Rights Watch com Ronaldo Samwanji, ACNUR Cazombo, Moxico, 26 de Marco de 2003.

74 Entrevista da Human Rights Watch com Paulo Kaumba, Chefe da Polícia do Alto Zambeze, Cazombo, Moxico, 26 de Marco de 2003.

75 Ver o Regulamento de Implementação das Normas para o Reassentamento das Populações de Deslocados Internos, Decreto 79/02, 6 de Dezembro de 2003.

76 Entrevista da Human Rights Watch com Victor C., 28, Cazombo, Moxico, 25 de Marco de 2003.

77 Entrevista da Human Rights Watch com agentes humanitários, Cazombo, Moxico, Março de 2003.

78 Entrevista da Human Rights Watch com Dr. Joli Beto, African Humanitarian Aid (AHA), Cazombo, Moxico, 25 de Marco de 2003.

79 Entrevista da Human Rights Watch com Francisco Chiwende, Vice Administrador do Cazombo, 27 de Marco de 2003 e com Tiago Cristóvão Muti, Lutheran World Federation, Cazombo, Moxico, 28 de Marco de 2003.

80 Entrevista da Human Rights Watch com Ronaldo Samwanji, UNHCR, Cazombo, Moxico province, 26 de Março de 2003. Ver também, correspondência ACNUR-Cazombo sobre o caso de estupro que vitimou uma refugiada Angolana em 14 de Janeiro de 2003.

81 Ibid.

82 Entrevista da Human Rights Watch com Ronaldo Samwanji, ACNUR, Cazombo, Moxico, 26 de Marco de 2003.

83 Até Abril de 2003, a Human Rights Watch desconhecia qualquer fiscalização sistemática realizada por organizações humanitárias sobre violência contra mulheres refugiadas em seu retorno espontâneo à Angola.

84 Durante a Guerra, muitos angolanos perderam ou foram forçados a destruir seus documentos angolanos.

85 Entrevista da Human Rights Watch com agentes humanitários, Cazombo, Moxico, Março de 2003.

86 Declaração dos Direitos da Criança, Art 7 (1).

87 Ibid, Art. 8 (1).

88 Ibid, Art. 8(2).

89 PIDESC, Artigos 13; CDC, Artigo 28.

90 Ver, ACNUR, Handbook, Voluntary Repatriation: International Protection, Genebra, 1996. P.14

91 Ibid. P.23.


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Agosto 2003
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