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Brasil

Carta ao Presidente Eleito Lula da Silva

30 de dezembro de 2002

Luiz Inácio Lula da Silva
Presidente Eleito da República Federativa do Brasil
Ministério das Relações Exteriores
GTP Posse 2003
Palácio Itamaraty, Salas A & B
70170-900 - Brasília -DF
Brazil
Via Fax: (0115561) 323-4730

Excelentíssimo Senhor Presidente Eleito:

Escrevo em nome da organização Human Rights Watch para pedir que seu governo se comprometa a fortalecer o respeito pelos direitos humanos no Brasil. Conhecendo sua luta de longa data pelo bem-estar das populações marginalizadas, confiamos em que o senhor compartilha de nossa convicção de que há muito a ser feito para resolver os problemas crônicos de direitos humanos que afetam a vida de muitos brasileiros.

Como o senhor deve saber, Human Rights Watch fiscaliza o respeito aos direitos humanos em mais de setenta países no mundo todo. A divisão americana da organização, anteriormente conhecida como Americas Watch, foi fundada em 1981 e vem acompanhando as condições dos direitos humanos no Brasil desde 1987, ano em que publicamos Violência Policial no Brasil: Execuções Sumárias e Tortura em São Paulo e Rio de Janeiro.

O presidente Fernando Henrique Cardoso deu passos importantes para identificar e reconhecer os problemas dos direitos humanos no país. Seu governo também fez progressos no sentido de articular políticas que pudessem resolver esses problemas. Os Planos dos Direitos Humanos de 1996 e 2002, por exemplo, continham recomendações detalhadas para melhorar as práticas de direitos humanos em inúmeras áreas. Infelizmente, porém, não se fez muito progresso na implementação dessas recomendações - devido em larga medida ao insucesso do atual presidente em fazer passar a legislação necessária no Congresso. O desafio que seu governo enfrenta agora é o de trabalhar com o Legislativo para levar a política de direitos humanos do Brasil do diagnóstico à prática.

Nesse sentido, gostaríamos de chamar sua atenção para diversas questões graves que acreditamos deveriam ser prioridade do programa de direitos humanos de seu governo: trabalho forçado, condições das prisões, jurisdição federal sobre crimes contra os direitos humanos e acesso a tratamento para pessoas com HIV/aids. Embora esses não sejam certamente os únicos problemas de direitos humanos que requerem atenção, representam áreas nas quais acreditamos que é possível - e se deveria - alcançar progresso significativo no seu primeiro ano como presidente.

O uso de trabalhos forçados na pecuária e na indústria madeireira é um problema deplorável que exige uma resposta agressiva do governo brasileiro. Segundo a Comissão Pastoral da Terra da Igreja Católica, havia pelo menos 25.000 pessoas trabalhando em regime de trabalho forçado no Brasil em 2002, muitas vezes com a tolerância das autoridades locais. No governo do Presidente Cardoso, a Secretaria de Fiscalização do Ministério do Trabalho (Sefit) criou um Grupo Especial de Fiscalização Móvel para investigar e punir casos de trabalhos forçados. No começo deste ano, o Sefit anunciou ter libertado 1.400 trabalhadores em regime de trabalho forçado, muitos deles malnutridos e sofrendo de doenças potencialmente fatais, como malária e hepatite. Apesar das realizações da Sefit, é necessário fazer mais para erradicar a prática do trabalho forçado.

Com esse objetivo em mente, gostaríamos de vê-lo empenhado em apoiar leis que respaldem os esforços de combate a essa prática. Uma delas é a proposta de Reforma do Judiciário perante o Congresso que, entre outras coisas, daria uma definição mais precisa ao crime de trabalhos forçados no Código Penal do país, bem como estabeleceria punição mais severa para os envolvidos nessas práticas. Uma outra é o projeto de lei que autorizaria a expropriação de fazendas em que se comprove o emprego de trabalho forçado.

Outra questão que nos preocupa é a dos maus-tratos de indivíduos dentro do sistema penal. Como documentamos em nosso relatório de 1998, as penitenciárias, prisões e cadeias das delegacias de polícia do Brasil sujeitam os prisioneiros a condições extremamente deploráveis. Para começar, elas estão abarrotadas. Segundo dados oficiais citados pela imprensa brasileira, em abril de 2002 as 903 instituições penais do Brasil abrigavam 235.000 detentos, cifra muito acima da capacidade de 170.000 do sistema. A falta de espaço, combinada com o baixo número de funcionários do sistema carcerário, leva a freqüentes motins e outros distúrbios violentos nas prisões, os quais só em 2002 resultaram em centenas de mortes. Outras formas chocantes de maus-tratos incluem o uso de tortura em suspeitos nas cadeias das delegacias de polícia e a omissão de tratamento médico adequado dentro do sistema penitenciário. Este último problema tem levado, em alguns casos, à morte de detentos e à propagação de doenças contagiosas, como a tuberculose, entre a população carcerária.

Os jovens no sistema penal estão também sujeitos a diversos tipos de abusos e maus-tratos. Pesquisa do Human Rights Watch no norte do Brasil em 2002 revelou que é prática comum nas instalações de detenção de jovens punir os detidos mediante restrição imprópria, às vezes por períodos de um mês ou mais. Vários jovens detentos não recebem cuidados de saúde e educação adequados, apesar das exigências da legislação brasileira. São também vulneráveis à violência. Ao responder a um distúrbio num centro de detenção no estado do Pará em abril de 2002, a polícia militar jogou gás lacrimogêneo e atirou com balas de borracha contra os jovens amotinados, espancando-os com cassetetes e galhos de árvores.

Contamos com seu empenho para implementar medidas que remediem as falhas do sistema. A fim de reduzir a superpopulação carcerária, seu governo deveria tentar limitar a duração da detenção antes do julgamento e promover o uso de sentenças alternativas - tais como exigir serviço comunitário em vez de encarceramento - para indivíduos condenados por crimes não violentos que não oferecem risco à sociedade. Para conter a brutalidade da polícia e dos guardas, seu governo deveria promover mecanismos eficazes de investigação e denúncia de práticas abusivas e assegurar-se de que autoridades policiais e carcerárias recebam treinamento completo sobre as normas brasileiras e internacionais que demandam o tratamento humano de prisioneiros. Os encarregados da detenção juvenil, em particular, deveriam receber treinamento especializado sobre os padrões estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como sobre as estratégias apropriadas para lidar com os detentos juvenis. Com o objetivo de melhorar as condições físicas severas, seu governo deveria trabalhar com as autoridades policiais e carcerárias estaduais para garantir a todos os prisioneiros as necessidades básicas, inclusive colchões e cobertas, água suficiente e suprimentos sanitários básicos. Os fundos federais para as novas unidades de detenção e as existentes deveriam ser distribuídos àquelas que visam atender as necessidades especiais das crianças no que diz respeito a privacidade, oportunidades de associação com outros jovens, educação e participação em exercícios físicos e atividades de lazer. Finalmente, para corrigir as graves deficiências no provimento de atenção médica, seu governo deveria trabalhar com autoridades carcerárias e policiais para assegurar aos prisioneiros acesso a médicos e remédios.

Uma terceira área de preocupação é a falha do governo federal em investigar, denunciar e punir crimes graves contra os direitos humanos. Segundo a lei internacional, o governo é o responsável final por violações dos direitos humanos cometidas por agentes do Estado, sejam eles funcionários municipais, estaduais ou federais. Atualmente, porém, a lei brasileira concede jurisdição sobre muitos desses casos somente às autoridades estaduais, freqüentemente suscetíveis à influência indevida de políticos locais e elites econômicas. O resultado é que crimes graves contra os direitos humanos não são punidos.

Em maio de 2002, por exemplo, um tribunal do Pará condenou dois policiais militares graduados pelo massacre de dezenove camponeses em Eldorado dos Carajás em 1996. Mas a seguir o judiciário estadual absolveu nove sargentos da polícia e outros 126 oficiais da polícia militar que serviram sob suas ordens. Os promotores encarregados do caso anunciaram planos de recorrer da absolvição, argumentando que "a condenação dos oficiais de alta patente e não dos que perpetraram o massacre é absurda". O Movimento dos Sem Terra e a Sociedade Paraense de Proteção dos Direitos Humanos já tinham se eximido do caso alegando que os juízes do tribunal estadual estavam sujeitos à pressão dos políticos e donos de terra locais. A consciência da corruptibilidade do judiciário local e, mais ainda, da sua incapacidade de denunciar todos os responsáveis pelo massacre aponta para a necessidade de que os tribunais federais assumam a responsabilidade por casos importantes e politicamente sensíveis como esse.

Há atualmente uma emenda constitucional pendente no Congresso que poderia resolver esse problema garantindo ao governo federal jurisdição sobre "graves violações dos direitos humanos". Infelizmente, esse projeto de lei (que se arrasta pelo Congresso há dez anos) não contém uma definição suficientemente clara do que sejam "graves violações dos direitos humanos", o que poderia resultar em interpretações errôneas que solapariam sua eficácia. Human Rights Watch solicita ao seu governo que promova a aprovação de uma legislação que proponha pelo menos a jurisdição federal como último recurso em casos de violações sérias dos direitos humanos e defina claramente os tipos de crimes enquadrados.

Uma quarta questão que merece a atenção de seu governo é a necessidade de expandir o acesso aos medicamentos para tratamento do HIV/aids no Brasil e em toda a região. Hoje, cerca de 1,8 milhão de adultos e crianças são soropositivos na América Latina e no Caribe. Felizmente, ainda é possível evitar na região uma epidemia de aids com a natureza e na escala da que sofre a África sub-saariana - e o Brasil pode desempenhar um importante papel para que isso ocorra.

Como o senhor sabe, o Brasil reduziu em mais de 50% a mortalidade causada pela aids desde 1996, mediante uma combinação de programas de prevenção e tratamento antiretroviral custeados pelo Estado. A pedra angular desse programa de tratamento tem sido a produção nacional de equivalentes genéricos das drogas contra o HIV/aids, o que significou a redução do custo do tratamento antiretroviral. Infelizmente, porém, os países que estão tentando imitar o relativo êxito do Brasil enfrentam um sistema internacional de patentes que restringe a produção de equivalentes genéricos de drogas patenteadas contra o HIV/aids.

Na conferência em Doha, Qatar, em 2001, 142 países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) concordaram em que as proteções mínimas às patentes requeridas pelo acordo sobre os aspectos da propriedade intelectual relacionados a comércio (TRIPS) "não podem e não devem" ser implementadas de forma a limitar os direitos dos Estados em adotar medidas de proteção da saúde pública. A Declaração de Doha reafirmou o que já era reconhecido por numerosos especialistas e pelo próprio TRIPS, isto é, que é preciso permitir aos Estados a flexibilidade para relaxar a proteção de patentes, e assim reduzir os preços, em casos de emergência em saúde pública. No entanto, a minuta do texto do tratado que cria a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), a ser negociada, contém propostas do Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR) que excedem o TRIPS em sua proteção das patentes farmacêuticas, reduzindo o espaço de manobra para intervenções de saúde pública e solapando o consenso global alcançado em Doha. Isso representa um perigo significativo para os países em desenvolvimento que estão enfrentando situações de emergência na área de saúde pública, tais como a que o HIV/aids representa.

O Brasil já demonstrou sua determinação de fazer frente ao USTR para proteger seu direito de produzir medicamentos genéricos para os soropositivos do país. Esperamos que, sob sua liderança, o Brasil continue a ser o campeão do princípio que a vida humana tem prioridade sobre a propriedade intelectual. Seu governo deve insistir em que a ALCA e outros tratados comerciais na região sejam consistentes com os princípios estabelecidos pela Declaração de Doha. Isso deveria significar não apenas a garantia do direito de países como o Brasil de produzir genéricos de baixo custo para consumo interno, como também o direito de outros países de importar esses genéricos quando forem incapazes de produzi-los independentemente. Por fim, esperamos que, sob sua liderança, o Brasil assuma um papel ainda mais ativo na promoção do acesso a drogas genéricas em todos os países da região - bem como o acesso entre as populações marginalizadas dentro do Brasil que ainda não se beneficiaram desse bem-sucedido programa de combate à aids.

Há sem dúvida muitas outras questões de direitos humanos que merecem a atenção de seu governo. Entre elas estão uso de tortura contra suspeitos de crime; discriminação com base em raça, etnia, idade, gênero e orientação sexual; violência doméstica; e leis de difamação excessivamente severas que infringem a liberdade de imprensa. Dada a ênfase histórica do Partido dos Trabalhadores na promoção do bem-estar da classe trabalhadora, esperamos que seu governo encontre a partir de agora meios inovadores e eficazes de promover os direitos sociais e econômicos - entre eles o direito a alimentação, abrigo e cuidados básicos de saúde. Estamos seguindo com particular interesse seu projeto Fome Zero, que visa garantir que todos os brasileiros possam comer três refeições por dia. Por fim, esperamos que o senhor tenha o cumprimento às obrigações internacionais com os direitos humanos entre as mais altas prioridades de seu governo.

Com votos sinceros de êxito, subscrevo-me atenciosamente,

José Miguel Vivanco
Diretor Executivo
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