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I. Introdução

Eu acho que se a polícia prende pessoas, não pode espancá-las.  Você tem que perguntar primeiro se a pessoa é culpada, então prendê-la, e então levá-la  para o tribunal em Díli. Mas como eles [os polícias] têm uma atitude errada, eles apeans prendem e logo espancam as pessoas. Eu penso  que eles mesmos devem ser demitidos e presos.
—Carlito Gusmão, vítima de espancamento policial, Aldeia Tasmasak, Bobonaro1

Carlito Gusmão foi detido pela polícia depois de ter se recusado a participar do recenseamento nacional. Foi acusado de ameaçar os funcionários do recenseamento com uma faca quando visitaram a sua aldeia. Ele  disse à Human Rights Watch como polícias uniformizados chegaram a sua casa  por volta das 9:30 da manhã e  o levaram num carro da polícia para a esquadra de polícia do distrito de Maliana, na zona ocidental de Timor-Leste.2 Ele foi espancado assim que  saiu do carro e então colocado em  uma cela. Ele disse que, enquanto estava na cela, testemunhou polícias espancando severamente outro detento, usando um colete a prova de balas.. Nessa noite outros polícias entraram na sua cela e pulverizaram seus olhos comgás pimenta. Ele  não apresentou queixa dos abusos de que afirma ter sido vítima por receio de retaliação, e também por achar que a queixa não levaria a nada.3

Ao longo dos últimos dois anos o abuso policial tornou-se um dos problemas de direitos humanos mais preocupantes de Timor-Leste. Polícias  regularmente usam  força excessiva durante as detenções, e espancam os detidos quando estes já se encontram sob sua custódia. Este comportamento parce ter-se tornado tão comum que os polícias raramente tentam esconder as suas acções do público. Não faltaram casos para a Human Rights Watch documentar onde quer que fossemos em Timor-Leste.

Um activista de Timor-Leste  trabalhando para uma organização não governamental (ONG) em Díli que tem monitorado a violência policial em Timor-Leste disse a Human Rights Watch:

Espancamentos durante detenções já são disseminados. Por quê? Por causa da atitude dos polícias, de qee são  uma instituição que tem que ser respeitada. Os polícias não aceitam que o seu papel ou autoridade seja questionado. Se eu for um agente da PNTL e disser que você  é culpado, você tem de dizer: “Estou pronto para  ser culpado”. Espancamentos já são rotina.4

Muitos destes abusos, tal como foram descritos a Human Rights Watch, chegam ao nível da tortura. Mário Belo, um homem de vinte e sete anos, relatou o que aconteceu depois que ele foi  preso na aldeia de Mulia, Baucau, por atirar pedras em algumas pessoas que ele desconfiava terem danificado o seu barco de pesca:

Quando cheguei à prisão já eram cerca de 19 horas; acho que era 18 de junho. Estava preparado para responder [uma pergunta], mas antes de poder responder ele [o polícia] logo me bateu, me chutou o queixo. Meu rosto virou com o impacto e ele me atingiu de novo  do lado esquerdo do queixo e maxilar. Ele me chutou  com os pés, deu-me pontapés entre as pernas (kemaluan). Ele estava usando  botas da polícia, uniforme de polícia completo. Ele me chutou  do lado direito do corpo e eu caí. Era dentro da sala de exames  da prisão. Levantei-me e ele  logo me chutou  aqui [na boca]. Cortou  o meu lábio, o superior e  o inferior. Por  cerca de uma semana não pude comer. Levaram-me para o hospital de Baucau. O polícia de Laga levou-me para o hospital. Na sala [em que o espancamento aconteceu] encontrava-se o agente penitenciário, o agressor, dois polícias de Laga e eu. Todos eles se limitaram a observar, sem tentar impedir a agressão. Esta violência durou cerca de trinta minutos. Finalmente, ele sacou sua arma e me ameaçou. Encontrava-se a cerca de um metro de mim. Ele disse: “Mais tarde, eu vou te matar”. Eu respondi: “Não fiz nada de errado. Por que você me bate?” Ele disse: “Você fica quieto, mais tarde eu vou te matar”.5

Muitas das pessoas entrevistadas pela Human Rights Watch também descreveram  sua detenção pela polícia como  ilegal. Muitas afirmaram não lhes ter sido dito quais as alegações contra elas, e muitas foram detidas sem serem acusadas formalmente por  mais que o período de setenta e duas horas permitido pela lei timorense. Aparentemente, os polícias costumam usar a detenção de setenta e duas horas como uma medida punitiva, e não processual.

A polícia e outras instituições estatais na maioria das vezes têm sido incapazes de responder de maneira apropriada  a incidentes de abuso policial. As pessoas que investigam as queixas não compreendem que os polícias que cometem um crime como agressão física devem ser processados através do sistema de justiça criminal, bem como através do sistema disciplinar interno. O órgão de supervisão interna da polícia, a Unidade de Ética Profissional e Deontologia (PEDU, até  pouco tempo denominada Gabinete de Ética Profissional – PEO), na maioria das vezes não tem levado  a sério os casos de abuso policial, não tem processado  as queixas nem disciplinado apropriadamente os polícias envolvidos. Treinamento  policial insuficiente em investigações e processos internos, e a ausência de um mecanismo efetivo, externo, independente de supervisão e  responsabilização para o serviço policial fazem com que estas  queixas sejam na maioria das  vezes tratadas de forma inconsistente, ou em alguns casos ignoradas. Quando os casos são investigados, geralmente as vítimas não são informadas do desenvolvimento e dos resultados dos seus casos. Human Rights Watch falou com muitas vítimas e as suas famílias sobre as suas tentativas de procurar responsabilizar  a força policial do Timor-Leste  pelas violações dos direitos humanos  cometidas. Muitas sentiam-se frustradas e perplexas dainte de  procedimentos burocráticos obscuros e muita demora.

No  governo de Timor-Leste, a segurança interna encontra-se nas mãos do Ministério do Interior. A responsabilidade última pelo controle do policiamento  encontra-se, pois, nas mãos do ministro do interior, actualmente Rogério Lobato. No entanto, embora seja institucionalmente subordinada ao Ministério, o serviço policial de Timor-Leste também tem a sua própria lei orgânica e estrutura operacional.6 Isto inclui um comandante-geral e adjuntos, chefes diferentes para cada unidade especializada e treze comandantes de distrito. Juntamente com dois oficiais nomeados pelo Ministério, este grupo constitui o Conselho Superior da Polícia, que se reúne de seis em seis meses para discutir questões disciplinares como as relacionadas com violações de direitos.7

Uma acção disciplinar rápida e apropriada e processoss criminais contra polícias responsáveis por violações dos direitos humanos e abuso da autoridade são indicadores críticos do compromisso do governo de Timor-Leste em criar uma força policial profissional. São também um indicador da seriedade com que o governo encara as suas obrigações para com os direitos humanos estabelecidas na constituição do país e nos muitos tratados de direitos humanos  que Timor-Leste assinou. É digno de nota que os líderes do país falam frequentemente do défice de recursos humanos  e da necessidade de mais treinamento. Isto é certamente necessário, mas só fará diferença se no nível político e administrativo o tipo de violência descrito neste relatório for punido. Do contrário,  a não-penalização dos violadores dos direitos humanos criará um clima de impunidade que por sua vez vai solapar  o treinamento como um instrumento eficaz para diminuir o nível de violência policial.

Com a herança do brutal policiamento indonésio  durante quase vinte e cinco anos de ocupação que terminou em 1999, talvez não seja surpreendente que novos recrutas da polícia do Timor-Leste estejam refletindo experiências passadas de  ignorância de padrões profissionais. Todavia, este  comportamento também reflecte treinamento, responsabilização e supervisão frágeis, e já não pode ser desculpado quase seis anos depois dos primeiros novos polícias  se formarem em julho de 2000. De facto, é agora mais provável que a falta de respostas institucionalizadas à brutalidade policial venha sendo  um factor-chave na emergência do abuso policial como um dos mais prementes e actuais problemas de direitos humanos de Timor-Leste.

Uma das consequências graves deste padrão emergente de abuso e impunidade no Timor-Leste é o potencial de erosão do respeito e apoio do público à polícia no longo prazo, aos polícias individualmente e à instituição. Com a criação de um novo país, o povo de  Timor-Leste esperava que a sua polícia se comportasse de forma diferente das forças controladas pelos indonésios durante a ocupação. Porém, controle  ineficaz, treinamento inadequado, mecanismos de responsabilização frágeis e falta de avaliações  adequadas dos polícias fazem com que o abuso de poderes pela polícia continue a ser  um sério desafio ao estado de direito em Timor-Leste. A incapacidade da  ONU para  lidar com esta questão eficazmente enquanto estava sob seu  poder durante a transição para a independência foi também um fator que contribuiu para esta situação.

Timor-Leste encontra-se agora numa encruzilhada. Embora se reconheça que os recursos em Timor-Leste sejam escassos, a importância de estabelecer uma força policial profissional e responsável é crucial para a futura estabilidade do país. A falta de responsabilização por abusos vai solapar a confiança na polícia e, consequentemente, a sua eficácia e capacidade de manter o estado de direito. Abusos policiais tolerados  farão com que as pessoas se sintam relutantes em relatar crimes à polícia ou em cooperar com ela em investigações criminais, como testemunhas ou vítimas. Isto poderá levar por sua vez a um círculo vicioso no qual uma força policial cada vez mais criticada pela sua incapacidade de realizar seu trabalho eficazmente  utiliza tácticas cada vez mais duras e recorre crescentemente à violência para obter resultados. Se as actuais violações não forem tratadas como um problema institucional, há o risco de que se tornem  parte de uma cultura endémica de abuso e impunidade na força policial nacional mais recente do mundo, uma cultura que será difícil de eliminar uma vez que esteja enraizada.

Recomendações-chave

Human Rights Watch encontrou evidências de que  violações dos direitos humanos por polícias são disseminadas, embora ainda não sejam endémicas,  em Timor-Leste. Agora é a hora para tratar este problema, antes que se torne endémico.

Human Rights Watch insta o governo de Timor-Leste a:

  • Assegurar através de medidas e declarações públicas que haja um sinal  claro, inequívoco e consistente que o uso de tortura, detenções arbitrárias e força excessiva pela polícia não será tolerado.
  • Assegurar a existência de legislação, políticas e procedimentos de forma a que a polícia trabalhe sob uma estrutura legal coerente e clara que especifique os poderes da polícia e os seus limites. Isto deve incluir normas para responsabilizar publicamente a polícia de forma transparente e credível.
  • Apoiar o gabinete do Provedor na criação de uma unidade dedicada à supervisão da polícia.
  • Encarregar o ministro do interior e o comissário da polícia de fortalecerem a Unidade de Ética Profissional e Deontologia da força policial oferecendo forte apoio  à autoridade da unidade na imposição das suas decisões e penalizando os polícias que não cumprem as suas directivas.
  • Assegurar que todos os mecanismos de supervisão estejam coordenados entre si e trabalhem em conjunto.

Também instamos a Polícia Nacional de  Timor-Leste (PNTL) a:

  • Adotar  uma acção rápida e significativa contra os polícias que torturam, fazem detenções arbitrárias ou usam força excessiva contra membros da população. Isto deve incluir medidas administrativas até e incluindo a demissão  e, onde apropriado, processo criminal.
  • Adotar  uma acção disciplinar apropriada contra oficiais de comando que tenham ou devam ter conhecimento destes actos  e não tomem medidas para os prevenir e punir. O comissário da polícia deve publicar uma directiva para cada comandante distrital informando-os de que serão considerados pessoalmente responsáveis por  assegurar  que os polícias  sob o seu comando cumpram o regulamento disciplinar existente e as Regras de Procedimentos da Organização (ROPs).

Doadores deverão:

  • Transmitir ao governo de Timor-Leste em todas as reuniões oficiais, e no mais alto nível, as preocupações relativas à violência policial, incluindo tortura. Apelar ao governo de Timor-Leste que assegure de que o tratamento  de todas as pessoas pela polícia obedeça os padrões internacionais de direitos humanos.
  • Aumentar substancialmente o apoio ao monitoramento eficaz dos direitos humanos emo Timor-Leste através de mecanismos existentes, como a sociedade civil. Como parte integral desta estratégia, oferecer assistência  para o desenvolvimento de grupos locais de direitos humanos com capacidade de monitoramento  independente da violência policial, e a agências que possam prestar serviços a vítimas.
  • Iniciar e apoiar reuniões conjuntas entre o governo de Timor-Leste, ONGs e a PNTL para coordenar, patrocinar e planear estratégias de longo prazo para a criação de capabilidades, treinamento e outros apoios à PNTL.



[1] Entrevista da Human Rights Watch com Carlito Gusmão, vítima de trinta e cinco anos, Aldeia Tasmasak, distrito de Bobonaro, Timor-Leste, 24 de maio de 2005.

[2] O nome oficial de Timor-Leste é República Democrática de Timor-Leste (RDTL).

[3] Entrevista da Human Rights Watch com Carlito Gusmão, Aldeia Tasmasak, distrito de Bobonaro, 24 de maio de 2005.

[4] Entrevista da Human Rights Watch com Mericio Akara, Investigador, La’o Hamutuk, East Timor Institute for Reconstruction Monitoring and Analysis, Díli, Timor-Leste, 30 de maio de 2005.

[5] Entrevista da Human Rights Watch com Mário Belo, vítima de vinte e sete anos, Desa Mulia, Aldeia de Karano, Baucau, Timor-Leste, 17 de maio de 2005.

[6] Estrutura Orgânica do Ministério do Interior, Decreto-Lei No. 3/2004, 14 de abril de 2004, artigo 5º.

[7] Lei Orgânica da Polícia Nacional de Timor-Leste, Decreto-Lei No. 8/2004, 5 de maio de 2004, artigo 28º.


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