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VIII.  EDUCAÇÃO

A lei brasileira exige que os centros de detenção juvenil forneçam “escolarização e profissionalização”,228 porém poucas instituições visitadas pela Human Rights Watch atendem a esta exigência.  Com muita freqüência, os jovens e seus pais identificaram a educação como uma das maiores necessidades do sistema de detenção juvenil do Rio de Janeiro.  A mãe de um jovem internado de 16 anos perguntou: “O que estão fazendo para melhorar estes rapazes?” Enfaticamente, ela mesma respondeu: “Nada”, e continuou:  “No Padre Severino, os jovens erram e voltam, erram e voltam.  Estão criando bandidos.”229

A omissão em dar instrução e treinamento vocacional é particularmente preocupante tendo em vista o alto grau de participação dos jovens no comércio de drogas do Rio de Janeiro.  Mais de um terço dos jovens presos no estado são acusados de delitos ligados às drogas, inclusive o tráfico de drogas, de acordo com dados coletados pelos tribunais juvenis.230  Estudos recentes concluíram que o envolvimento dos jovens com as drogas vem aumentando e começa muito cedo na vida.231  Se os centros de detenção juvenil do Rio de Janeiro estivessem cumprindo sua missão “sócio-educativa”, estariam se esforçando para tratar do envolvimento dos jovens no tráfico de drogas ao melhorar o acesso das crianças à educação, fornecer-lhes treinamento vocacional e cooperar com os empregadores para criar programas de trabalho que lhes dêem alternativas reais ao invés do envolvimento no comércio de drogas.232 

Acesso à instrução escolar

No CAI-Baixada, Padre Severino e Santo Expedito em particular, a maioria dos jovens não recebe nenhuma instrução escolar.  “A educação é um caos”, disse uma voluntária que trabalha nos centros de detenção do Rio de Janeiro.233  “Às vezes temos aulas e às vezes não”, disse Dário P., 18 anos, do CAI-Baixada.234  Alfonso S., um internado do CAI-Baixada que freqüentava as aulas nos disse que somente metade do centro de detenção estava na escola, se bem que disse que os outros também queriam começar em breve.235

Os jovens do Padre Severino fizeram relatos semelhantes.  No Padre Severino, “eles não davam aulas”, disse à Human Rights Watch Agostinho M., jovem de 17 anos.  “Eu estava matriculado na escola antes [de ser detido], mas não havia aulas disponíveis no Padre Severino.”236  Peter da Costa foi diretor do Padre Severino antes de ocupar seu cargo atual como diretor do centro de detenção João Luis Alves em janeiro de 2003.  Pedimos que ele comparasse as duas instituições.  “No primeiro. . . a situação com relação à educação é mais complicada porque os rapazes permanecem ali somente 45 dias”, disse ele.237

No Santo Expedito, os jovens e seus pais relataram experiências diferentes com relação à instrução escolar.  Por exemplo, a mãe de um rapaz em detenção relatou que ele não podia participar das aulas.  “Meu filho sempre esteve na escola até ser detido.  Mas não pôde continuar a escola porque foi detido”, disse ela para explicar por quê seu filho não estava tendo aulas no Santo Expedito.238  Mas Luciano G. nos disse que dos 30 jovens que estavam na sua ala do Santo Expedito, somente ele e outro rapaz não estavam freqüentando a escola.  “Ainda tenho que me matricular”, ele disse, explicando que o orientador tinha que ajudá-lo a fazer isto.  Ele já estava no Santo Expedito há 30 dias à época de nossa entrevista.239  Os representantes do Santo Expedito nos disseram que calculavam que 175 jovens em detenção estariam nas salas quando a escola começasse de novo na segunda-feira após nossa visita,240 o que significa que 60% dos jovens detidos na instituição não estariam freqüentando a escola.

Somente o João Luis Alves oferecia aulas rotineiramente a todos os jovens em detenção.  Por exemplo, Eric T., 15 anos, 5a. série, disse-nos que freqüentava as aulas no João Luis Alves de 8 às 11 da manhã.  Disse que já havia estado na escola naquela manhã.241  Peter da Costa, diretor do João Luis Alves, disse à Human Rights Watch que a instrução em seu centro de detenção é dada por uma escola estadual.  “Temos aulas de alfabetização e educação primária até a oitava série”, disse ele.  Quando perguntamos o que faziam para os jovens que já entravam numa série mais avançada, ele respondeu: “É muito raro ver um jovem aqui que já esteja no curso secundário.”242


Treinamento vocacional

Além da educação formal, os centros de detenção juvenil do Brasil também estão obrigados a fornecer treinamento vocacional aos jovens sob sua custódia.243  Os pais e jovens freqüentemente identificaram este treinamento como uma de suas prioridades máximas.  Quando perguntamos a Alfonso S. se havia algo que ele gostaria de mudar no centro de detenção, por exemplo, ele nos disse: “Eu criaria atividades diferentes para todos nós: cozinha, computadores, fiação elétrica, coisas deste tipo.”244  De forma semelhante, Carlos A., 18 anos, do Cai Baixada, recomendou: “Eu teria mais cursos de computação, mecânica, padaria, para não sairmos daqui sem saber nada.”245

Para muitos pais, a falha do estado em dar um treinamento vocacional é muito decepcionante.  “Eu tinha uma visão de que o centro de detenção daria ao meu filho uma habilidade qualquer”, disse uma mãe.246  A avó de um jovem internado, referindo-se às medidas “sócio-educativas” adotadas pelo sistema de detenção juvenil, disse: “Sócio-educativo—como é isto?  Não é.  Isto não é verdade.”247

Dado o número de jovens envolvidos no comércio de drogas do Rio de Janeiro – mais de um terço dos jovens presos no estado são acusados de delitos ligados a drogas, inclusive tráfico de drogas248 – a falha dos centros de detenção em dar treinamento vocacional e outros programas especializados é uma oportunidade perdida.   O uso de jovens com menos de 18 anos “para a produção e tráfico de drogas” e outras atividades ilícitas é definitivamente reconhecido como umas das piores formas de trabalho infantil,249 o que significa que o envolvimento dos jovens no tráfico de drogas é tanto uma questão da justiça juvenil como uma preocupação trabalhista.  As estratégias para reduzir o envolvimento dos jovens no tráfico de drogas incluem a melhoria do acesso das crianças à educação, fornecendo-lhes treinamento vocacional, e ajudando os empregadores a criar programas no trabalho que dêem a eles outras alternativas reais ao invés de envolver-se no comércio de drogas.250  Iniciativas como esta se encaixam muito bem no objetivo de reabilitação e na missão “sócio-educativa” do sistema de justiça juvenil.

O direito à educação

O direito à educa ção está previsto no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, na Convenção sobre os Direitos da Criança e no Protocolo de San Salvador.  Cada um destes tratados especifica que a educação primária deve ser “obrigatória e disponível gratuitamente a todos”.  A educação secundária, inclusive educação vocacional, deve estar “disponível e ser acessível a toda criança”, com a progressiva introdução de educação secundária gratuita.251   

As normas internacionais esclarecem que a condição de detenção não constitui base permissível de negação da educação às crianças.  Como reafirmado nas Regras da ONU para a Proteção dos Jovens, estes não perdem o direito à educação pelo fato de estarem confinados.  “Todo jovem em idade escolar obrigatória” que seja privado de sua liberdade “tem o direito a uma educação adequada às suas necessidades e habilidades”, educação esta que deve ser “concebida de forma a prepará-lo para seu retorno à sociedade”.252  As Regras de Beijing recomendam às autoridades governamentais garantirem que as crianças privadas de liberdade “não saiam da instituição com desvantagens educacionais.”253




[228] Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 124(XI).

[229] Entrevista da Human Rights Watch com a mãe de um jovem internado, Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[230] Ver De Souza e Silva e Urani, Crianças no tráfico de drogas, pág. 20 (citando dados da 2a. Vara da Infância e Juventude).

[231] Ver, por exemplo, Dowdney, Crianças do tráfico, p. 118-38.

[232] Ver De Souza e Silva e Urani, Crianças no tráfico de drogas, págs. 43-47.

[233] Entrevista da Human Rights Watch com voluntária do centro de detenção, Rio de Janeiro, 28 de julho de 2003.

[234] Entrevista da Human Rights Watch com Dário P., CAI-Baixada, 28 de julho de 2003.

[235] Entrevista da Human Rights Watch com Alfonso S., CAI-Baixada, 28 de julho de 2003.

[236] Entrevista da Human Rights Watch com Agostinho M., Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[237] Entrevista da Human Rights Watch com Peter da Costa, 29 de julho de 2003.

[238] Entrevista da Human Rights Watch com a mãe de um jovem internado, Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[239] Entrevista da Human Rights Watch com Luciano G., Educandário Santo Expedito, 30 de julho de 2003.

[240] Entrevista da Human Rights Watch com funcionários de detenção do Educandário Santo Expedito, 30 de julho de 2003.

[241] Entrevista da Human Rights Watch com Eric T., Escola João Luis Alves, 29 de julho de 2003.

[242] Entrevista da Human Rights Watch com Peter da Costa, 29 de julho de 2003.

[243] O Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe explicitamente que os jovens privados de sua liberdade, inclusive aqueles em detenção provisória, têm o direito de “receber instrução escolar e treinamento vocacional.”  Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 124 (XI) (“São direitos do adolescente privado da libertade, entre outros, os seguintes: . . . .  receber escolarização e profissionalização . . . .”).

[244] Entrevista da Human Rights Watch com Alfonso S., CAI-Baixada, 28 de julho de 2003.

[245] Entrevista da Human Rights Watch com Carlos A., CAI-Baixada, 28 de julho de 2003.

[246] Entrevista da Human Rights Watch com a mãe de um jovem internado, Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[247] Entrevista da Human Rights Watch com a avó de um jovem internado, Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[248] Ver De Souza e Silva e Urani, Crianças no tráfico de drogas, pág. 20 (citando dados da 2a. Vara da Infância e Juventude).

[249] Ver Convenção 182 da Organização Mundial do Trabalho, relativa à Proibição e Ação Imediata para a Eliminação das Piores Formas de Trabalho Infantil (“Convenção sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil”), adotada em 17 de junho de 1999, 38 I.L.M. 1207 (entrada em vigor em 19 de novembro de 2000), art. 3(c).  O Brasil ratificou a Convenção sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil em 2 de fevereiro de 2002.

[250] Ver De Souza e Silva e Urani, Crianças no tráfico de drogas, págs. 43-47.

[251] O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais dispõe que a educação primária “deverá estar disponível a todos” e que a educação secundária “deverá ser colocada à disposição e ser acessível por todos os meios apropriados”.  Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, art. 13.  O artigo 28 da Convenção sobre os Direitos da Criança reconhece “o direito da criança à educação”; os estados partes se comprometem a tornar a educação secundária “disponível e acessível a todas as crianças”.  O Protocolo de San Salvador contém disposições semelhantes.  Ver o Protocolo de San Salvador, art. 13(3).

[252] Regras da ONU para a Proteção de Jovens, art. 38.

[253] Regras de Beijing, art. 26.6.


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