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VI.  CONDIÇÕES DA DETENÇÃO

Agostinho M. passou uma semana no Padre Severino em março de 2002, quando tinha 16 anos.  “Dormíamos vinte ou mais pessoas em um único cômodo.  Nem todos tínhamos cama.  Eram duas pessoas em cada cama e os outros no chão”, disse ele.  “Durante o dia, permanecíamos trancados no dormitório.  Eles nos acordavam às 6 e tomávamos café às 7.  Depois disto, voltávamos às celas.  Ficávamos trancados até a hora do almoço, que era à uma da tarde.  Depois voltávamos às celas e ali ficávamos até as 5, quando era hora de jantar. . . .  De novo voltávamos às celas até a hora de dormir.”  Questionado sobre quanto tempo passava fora da cela a cada dia, retrucou que na maior parte dos dias, passava “um máximo de meia hora no total.  De vez em quando nos deixavam sair para tomar um banho de sol.  Mas não era todo dia, só de vez em quando.”158

As más condições de confinamento não estão limitadas ao Padre Severino.  Um funcionário do centro de detenção CAI-Baixada admitiu abertamente que este centro “não tem nada para oferecer a estes rapazes”.159  O padrasto de um jovem de 16 anos internado no Santo Expedito foi mais sucinto:  “Um cachorro recebe melhor tratamento” do que os jovens nos centros de detenção juvenil do Rio de Janeiro, disse ele à Human Rights Watch.160

Além disso, as condições não mudaram de forma marcante desde a visita da Human Rights Watch em julho e agosto de 2003.  “A situação do DEGASE é a mesma desde agosto de 2003, se não for pior”, relatou em fevereiro de 2004 Simone Moreira de Souza, da defensoria pública.161  Por sua vez, os grupos de jovens correm o risco periódico de sofrer retaliações ao protestar veementemente contra suas condições de detenção.  Em fevereiro de 2004, por exemplo, um grupo de jovens do CAI-Baixada fez uma greve de fome de dois dias para protestar contra as condições de vida e os espancamentos perpetrados pelos monitores.162

As condições dos c entros de detenção juvenil do Rio de Janeiro são tão ruins que supostamente alguns jovens alegam ser adultos para evitar a detenção dentro do sistema juvenil.  Um artigo do Jornal do Brasil assim explicou a situação:

A violência contra menores infratores nos internatos do Rio criou um novo fenômeno:  em cinco meses, a Defensoria Pública Estadual encontrou 18 adolescentes que preferiam cumprir pena entre adultos, em delegacias ou presídios, a serem submetidos às medidas sócio-educativas em unidades do governo estadual.  Ou seja, a cada mês, pelo menos três jovens fingiram ser maiores de idade ao serem presos pela polícia.  Descobertos pelos defensores ou por organizações não governamentais, eles dizem que é melhor estar no sistema penitenciário do Estado, envolvido, nas últimas semanas, em denúncias de torturas, morte e corrupção, do que ficar internado nos institutos do Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas (Degase).163


Um dormitório no CAI-Baixada.  © 2004 Stephen Hanmer/ Human Rights Watch.

Superlotação

Com a exceção do centro João Luis Alves, a superlotação era um problema em todos os centros de detenção que visitamos, como mostra a tabela abaixo.  Um voluntário que trabalha no CAI-Baixada disse-nos que nesse centro, por exemplo, “As condições de habitação são muito ruins.  Os adolescentes vivem em condições desumanas.  Há talvez 200 pessoas numa instituição com capacidade para receber 80.”164  Em outro relato típico, Nelson G. nos disse através das barras do seu dormitório no Santo Expedito que 26 jovens dividiam um único cômodo.  “Alguns de nós temos que dormir no chão”, disse ele.165    Num dormitório próximo, Jimmy D. relatou que entre sete e dez dos 27 jovens tinham colchões.166  Estas condições de superlotação aumentam a ansiedade e o nível de agressão tanto dos monitores como dos internados, declarou um defensor público à Human Rights Watch.167

Tabela 1.  Média de Ocupação dos Centros de Detenção do Rio de Janeiro

Centro de Detenção

Semana de 21 de julho de 2003

Semana de 26 de janeiro de 2004

Semana de 5 de abril de 2004

Capacidade

Porcentage da capacidade ocupada

CAI-Baixada

189

181

161

120

147,5%

Santos Dumont

57

45

60

40

135,0%

Santo Expedito

181

134

133

166*

90,0%*

Padre Severino

242

175

189

160

126,3%

João Luis Alves

70**

75

79

120

62,2%**

Centro de Recepção

49

42

38

42

102,4%

TOTAL

788

652

660

648

108,0%

*A capacidade normal do Santo Expedito não reflete o fato de que três dos sete blocos de celas do centro não estavam em uso, por ocasião da visita da Human Rights Watch em julho de 2003, porque suas paredes e tetos corriam o risco de desabar.
**Os dados de julho de 2003 do João Luis Alves não incluem 19 jovens abrigados temporariamente naquele centro depois de uma tentativa de fuga do Padre Severino.
Fonte:  Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Justiça do Cidadão, Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas, “Efetivo Totalizador de Atendimentos – Média Semanal,” 27 de julho de 2003, 1 de fevereiro e 11 de abril de 2004.



Lixo, água empoçada e mato cobrem uma quadra de basquete no Santo Expedito.
© 2004 Stephen Hanmer/Human Rights Watch.

Recreação, exercícios e inatividade

A falta de atividades era um problema grave no CAI-Baixada e no Padre Severino; em outros centros ouvimos menos queixas quanto a este aspecto.  “Um dia normal aqui é ficar trancafiado, sem nada para fazer.  Eu preciso me distrair”, disse Alfonso S., um internado de 15 anos do Cai Baixada.168  “Temos que poder passar algum tempo fora da cela”, disse Carlos A.169  “Nos deixam aqui sem nem tomar um banho de sol”, disse-nos Dário P., 18 anos.170

Ouvimos o mesmo comentário de jovens do centro Padre Severino.  “Não tinha nenhuma atividade no lugar”, disse Jorge N., 17 anos.  “Não havia missa ou culto.  Não havia escola.  Nenhuma atividade deste tipo.  A única coisa a fazer era dormir nos quartos.”171

Mas no Santo Expedito, Luciano G. nos disse que os jovens tinham freqüentemente a oportunidade de alguma recreação ao ar livre, mesmo que não fosse todo dia.  “Tem futebol quase todo dia, de meia a uma hora”, disse ele.  Mais tarde em sua entrevista, explicou-nos que um grupo de monitores sempre lhes negava permissão para a recreação ao ar livre, enquanto que o resto deles geralmente a permitia.  Falando do primeiro grupo de monitores, ele declarou: “Raramente nos deixam jogar futebol ou tomar um pouco de sol.  Mas é só o pessoal do plantão D, os outros são mais legais.”172  Alex C., um rapaz de 17 anos preso em uma ala diferente do mesmo centro de detenção, nos disse que na sua ala eles podiam jogar futebol umas três vezes por semana.  “Os dias de futebol são terças, quintas e sábados, quando nos dão uma hora ou hora e meia”, disse ele.173

“Temos atividades todo dia”, disse Eric T., 15 anos, do João Luis Alves.  “Jogamos futebol e usamos a piscina.”  Ele nos disse que os jovens do João Luis Alves passam duas horas ao ar livre na maioria dos dias, uma hora no campo de futebol e outra na piscina.174

Em alguns casos, os oficiais nos consultaram sobre como lidar com as restrições à recreação dos jovens em detenção.  No Santo Expedito, um monitor nos mostrou uma quadra de basquete sem uso, cheia de entulho.  “Aqui está a parte mais crítica”, disse ele, mostrando-nos que o espaço seria uma boa área de recreação e exercício se fosse limpa.  “Isto resolveria o problema de inatividade”, sugeriu.175

As normas internacionais recomendam que todo jovem em detenção disponha de “um período adequado de tempo para fazer exercícios, por sua própria conta, ao ar livre, desde que o tempo permita”, e “um período adicional de tempo para atividades diárias de lazer.”176  Para se conformar a estas normas, o Estatuto da Criança e do Adolescente  garante aos jovens em detenção o direito a atividades culturais, esportes e recreação.177 

Contato com o mundo externo

A lei brasileira garante às crianças detentas o direito de receber visitas semanalmente.  O direito somente pode ser suspendido por um juiz e, mesmo assim, apenas temporariamente “se existirem motivos sérios e fundados de sua prejudicialidade aos interesses do adolescente”.178  Estas disposições atendem às normas internacionais, que recomendam aos estados garantirem às crianças “o direito de receber visitas regulares e freqüentes, em princípio uma vez por semana e nunca menos do que uma vez por mês, em circunstâncias que respeitem a necessidade do jovem de dispor de privacidade, contato e comunicação irrestrita com a família e o advogado de defesa.”179

Mas, na prática, ouvimos de jovens e dos pais que muitas vezes os visitantes eram incomodados pelos monitores.  O padrasto de um jovem de 16 anos do Santo Expedito relatou que durante uma visita ao centro de detenção, “os monitores tomaram tudo que trazíamos e jogaram tudo no chão”.180  Outros visitantes foram submetidos a buscas extremamente invasivas e humilhantes que não eram realmente totalmente necessárias para garantir a segurança do centro.  Por exemplo, Luciano G. relatou que sua mãe foi obrigada a tirar suas roupas para poder visitá-lo no Santo Expedito.181  E alguns jovens, tais como Daniel C., detido no CAI-Baixada, tiveram totalmente negadas suas visitas, como medida disciplinar.182

Alguns centros de detenção colocam obstáculos adicionais às visitas, limitando-as a parentes consangüíneos, sem atentar para a situação familiar particular de cada jovem.  Por exemplo, o padrasto de um jovem de 16 anos nos disse que não podia visitar seu enteado quando este estava no Padre Severino.  “Somente sua mãe podia ir.  Sou padrasto dele desde os três anos de idade, mas não me deixam entrar.  Estou junto com a mãe dele há 13 anos”, disse-nos o homem.  Depois de 45 dias no Padre Severino, o rapaz foi transferido ao Santo Expedito, onde finalmente seu padrasto pôde visitá-lo.183

Alimentação

Os jovens da maioria dos centros de detenção tinham queixas quanto à qualidade e quantidade da alimentação.  “A comida é muito ruim”, disse Carlos A., do Cai Baixada.  “E não é suficiente.”184  Agostinho M., internado no Padre Severino quando tinha 16 anos, disse da comida: “Era um nojo, muito ruim.  E não há comida suficiente.”185

O padrasto de um jovem de 16 anos do centro Santo Expedito disse à Human Rights Watch que os jovens fizeram uma greve de fome para exigir uma melhor alimentação.186  Talvez como resultado, alguns jovens relataram que a comida tinha melhorado recentemente.  “É boa; melhorou”, disse Alex C., 17 anos.  “Acaba de melhorar.  Agora, a comida é servida ainda quente.”187

Uma queixa relacionada foi a de que a última refeição do dia era dada ao final da tarde e, portanto, os jovens ficavam com fome de novo antes de deitar.  Luciano G., jovem de 18 anos do Santo Expedito, relatou: “O jantar é muito cedo.  Às 10 da noite, estamos com fome de novo.”188  Por isso, o padrasto de um garoto de 16 anos nos disse que ele e sua mulher traziam biscoitos para o filho dele quando o visitavam.  “O jantar é às 5 da tarde e não dão mais nenhum alimento até o café do dia seguinte, então os garotos ficam com fome.  E também pasta de dente.  Ele pediu dois tubos dizendo que um era para comer quando ele ficasse com fome à noite.”189

Também ouvimos outros pais comentarem sobre este uso da pasta de dente.  Por exemplo, a mãe de um rapaz de 17 anos do Santo Expedito, disse: “Eles comem pasta de dente.  Estão com fome.  Comem porque estão com fome.”190

Uma razão de comer pasta de dente é que os jovens nem sempre conseguem monitorr a comida que seus familiares lhes trazem.  Luciano G. nos disse que tinha que comer os biscoitos que sua mãe lhe trazia na sala de visitas.  “Tínhamos que consumir tudo ali mesmo na área de visita”, disse ele.  “Você não pode levá-los para a área de convívio.  Esta é a ordem do diretor.”191



Um jovem do Santo Expedito exibe uma ferida aberta.
© 2004 Michael Bochenek/Human Rights Watch.




[158] Entrevista da Human Rights Watch com Agostinho M., Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[159] Entrevista da Human Rights Watch com oficial do centro de detenção CAI-Baixada, 28 de julho de 2003.

[160] Entrevista da Human Rights Watch com o padrasto de um jovem internado, Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[161] Entrevista da Human Rights Watch pelo telefone com a Dra. Souza, 18 de fevereiro de 2004.

[162] “Os adolescentes da unidade CAI-Baixada fizeram greve de fome terça-feira e quarta-feira (17 e 18/02) por falta de condições e por espancamento por parte de dois plantões (agentes).”  Ibid.

[163] Martins, “Território livre da tortura.”

[164] Entrevista da Human Rights Watch com ativista que pediu para permanecer anônimo, Rio de Janeiro, 28 de julho de 2003.

[165] Entrevista da Human Rights Watch com Nelson G., Educandário Santo Expedito, 30 de julho de 2003.

[166] Entrevista da Human Rights Watch com Jimmy D., Educandário Santo Expedito, 30 de julho de 2003.

[167] Entrevista da Human Rights Watch com defensor público, CAI-Baixada, 28 de julho de 2003.

[168] Entrevista da Human Rights Watch com Alfonso S., CAI-Baixada, 28 de julho de 2003.

[169] Entrevista da Human Rights Watch com Carlos A., CAI-Baixada, 28 de julho de 2003.

[170] Entrevista da Human Rights Watch com Dário P., CAI-Baixada, 28 de julho de 2003.

[171] Entrevista da Human Rights Watch com Jorge N., Escola João Luis Alves, 29 de julho de 2003.

[172] Entrevista da Human Rights Watch com Luciano G., Educandário Santo Expedito, 30 de julho de 2003.

[173] Entrevista da Human Rights Watch com Alex C., Educandário Santo Expedito, 30 de julho de 2003.

[174] Entrevista da Human Rights Watch com Eric T., Escola João Luis Alves, 29 de julho de 2003.

[175] Entrevista da Human Rights Watch com monitor, Educandário Santo Expedito, 30 de julho de 2003.

[176] Regras da ONU para a Proteção de Jovens, art. 47.

[177] Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 124(XII).

[178] Ibid., art. 124, para. 2.  O direito de receber visitas pelo menos semanalmente é garantido no artigo 124(VII) do estatuto.  As crianças também têm o direito de se corresponder com familiares e amigos.  Ibid., art. 124(VIII).

[179] Regras de Beijing, art. 60.

[180] Entrevista da Human Rights Watch com o padrasto de um jovem internado, Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[181] Entrevista da Human Rights Watch com Luciano G., Educandário Santo Expedito, 30 de julho de 2003.  Ver também Paulo de Mesquita e Beatriz S. Azevedo, Segundo relatório nacional sobre os direitos humanos no Brasil (São Paulo:  Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos, 2002), pág. 224 (relatando que os jovens do Padre Severino e seus familiares eram sujeitos a “humilhações” e “maus tratos”).

[182] Entrevista da Human Rights Watch com Daniel C., CAI-Baixada, 28 de julho de 2003.

[183] Entrevista da Human Rights Watch com padrasto de jovem internado, Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[184] Entrevista da Human Rights Watch com Carlos A., CAI-Baixada, 28 de julho de 2003.

[185] Entrevista da Human Rights Watch com Agostinho M., Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[186] Entrevista da Human Rights Watch com padrasto de jovem internado, Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[187] Entrevista da Human Rights Watch com Alex C., Educandário Santo Expedito, 30 de julho de 2003.

[188] Entrevista da Human Rights Watch com Luciano G., Educandário Santo Expedito, 30 de julho de 2003.

[189] Entrevista da Human Rights Watch com o padrasto de um jovem internado, Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[190] Entrevista da Human Rights Watch com a mãe de um jovem internado, Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[191] Entrevista da Human Rights Watch com Luciano G., Educandário Santo Expedito, 30 de julho de 2003.


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