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<<precedente | índice | seguinte>> Violações Cometidas Pelas Forças Armadas AngolanasO governo Angolano e suas forças armadas, as FAA, são obrigados a respeitar os direitos humanos internacionais e as leis humanitárias em Cabinda. Angola ratificou, entre outros tratados internacionais de direitos humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP)32 e a Carta Africana dos Direitos Humanos dos Homens e dos Povos (Carta de Banjul) 33 cujas pincipais disposições são também garantidas pela Constituição Angolana.34 Estas normas estabelecem, por exemplo, que as pessoas apreendidas devem ser julgadas imediatamente e acusadas de um delito específico, e que seus processos penais devem atender às normas internacionais de julgamento imparcial. As leis de direitos humanos devem sempre ser aplicadas, excepto quando forem substituídas por disposições específicas do Direito Humanitário Internacional ( Lei da Guerra). As hostilidades entre o governo e as forças rebeldes que resultem em conflito armado estão circunscritas pelo direito humanitário internacional. O Artigo 3, comum às quatro Convenções de Genebra, de 1949, que se aplicam aos conflitos armados não internacionais (internos), é de cumprimento obrigatório tanto pelas FAA como pela FLEC. O Artigo 3 protege os combatentes capturados e os civis detidos contra a sua execução sumária; tortura e tratamento cruel, inclusive a violência sexual; ataques à dignidade humana, em particular humilhações ou tratamento degradante; e a emissão de sentenças que não estão de acordo com as normas de um julgamento imparcial. As leis tradicionais da guerra proíbem ataques dirigidos contra civis e propriedades civis ou aqueles que causem danos desproporcionais ou indiscriminados contra civis. Execuções SumáriasA Human Rights Watch documentou execuções sem julgamento praticadas pelas FAA, inclusive um assassinato em Julho de 2004. As FAA suspeitavam que os mortos eram ex-combatentes da FLEC, ou civis simpatizantes do movimento. Essas mortes ocorreram principalmente em bases militares ou durante operações militares em aldeias e na mata. As execuções sumárias de pessoas presas, sejam elas civis ou combatentes capturados, viola as leis dos direitos humanos e do direito humanitário. Em Dezembro de 2003, soldados das FAA executaram sumariamente três civis do sexo masculino e tentaram executar dois outros homens no distrito municipal de Buco Zau. Um dos sobreviventes, M. M., de 38 anos de idade, ficou gravemente ferido e ainda traz as cicatrizes do incidente. Conforme ele relatou à Human Rights Watch: Na véspera de Natal no ano passado [2003], a FLEC emboscou soldados das FAA nas proximidades de minha aldeia. Ouvimos os tiros e nos escondemos em nossas casas. Quando o ataque cessou, os soldados das FAA se voltaram contra nós. Cerca de trinta soldados cercaram a casa onde eu estava escondido com outros da minha aldeia. Tentamos escapar mas os soldados apontaram suas armas para as portas e janelas e abriram fogo, então saímos todos com nossas mãos para cima. Eles pararam o tiroteio. Eu reconheci dois dos soldados. O comandante da base militar próxima foi avisado pelo rádio de que três soldados das FAA haviam morrido e um havia sido ferido no ataque. O comandante ordenou pelo rádio a um dos soldados, a quem reconheci, que matasse três pessoas, o mesmo número de soldados mortos. Os soldados escolheram cinco homens, inclusive eu, e fizeram com que nos sentássemos em bancos onde se reúnem geralmente os patricarcas de nossa aldeia. Eu era o último à direita. Um dos soldados, a quem reconheci, abriu fogo contra nós usando seu AKM [versão mais leve e moderna do rifle AK-47]. Três dois homens idosos e um jovem morreram imediatamente, mas eu e outro homem conseguimos fugir. Fui ferido mas continuei a correr. O primeiro tiro penetrou o meu ombro direito, o segundo o lado direito do meu torso e o terceiro rompeu os ligamentos do meu pulso direito. Não posso mais usar minha mão direita corretamente porque dois dos meus dedos ficaram permanentemente dobrados. O soldado somente cessou os disparos quando os outros soldados capturaram o outro homem que tentou fugir. Ele não foi morto. Os soldados ordenaram que a população voltasse de seus esconderijos na mata e que providenciassem o enterro dos três homens para o dia seguinte. Inicialmente recebi tratamento médico na aldeia mas depois de quatro semanas as FAA me levaram em um helicóptero para a cidade de Cabinda para tratamento no hospital militar. Tenho muito medo dos soldados da aldeia, por isso não volto para lá.35 Uma testemunha dessas execuções sumárias disse que um soldado das FAA colocou a culpa pelas mortes dos três habitantes da aldeia em seus camaradas da FLEC, que tanta merda criaram próximo à aldeia.36 Até o momento, a Human Rights Watch não tem conhecimento de nenhuma medida tomada pelas FAA para investigar essas mortes.37 A 17 de Junho de 2003, as FAA mataram Teresa Nzita e Sebastião Lelo quando soldados realizavam uma busca de combatentes da FLEC numa aldeia do distrito municipal de Buco Zau.38 Nzita foi baleada no estômago enquanto cuidava de seus filhos na varanda de sua casa e Lelo foi encontrado morto em uma estrada próxima a sua casa com um ferimento de bala na têmpora. Quando os moradores da aldeia lhes perguntaram contra quem atiravam, os soldados das FAA alegaram estar a atirar contra o inimigo. No entanto, os soldados já tinham revistado a casa de Nzita e determinado que não havia combatentes da FLEC no local. Depois, parentes das vítimas foram detidos por uma noite, soltos e detidos novamente por duas semanas presos numa cova da base militar. Depois dessas mortes, a maioria dos habitantes abandonou a aldeia por não se sentirem mais seguros junto aos soldados. As testemunhas entrevistadas disseram que somente voltarão depois que os soldados deixarem o local. Até o momento, a Human Rights Watch não tem informações de que as FAA estejam investigando esse incidente.39 Em um assassinato recente cometido pelas FAA contra um civil, tanto as FAA como autoridades civis tomaram algumas medidas para investigar o crime, embora ainda não se saiba se os supostos responsáveis serão processados e se os julgamentos serão conduzidos segundo as normas internacionais de um julgamento imparcial. Os habitantes de uma aldeia contaram à Human Rights Watch que soldados Angolanos levaram Luís Bundu, de 39 anos, de sua aldeia para uma base militar na manhã de 3 de Julho de 2004.40 Eles relataram terem visto soldados espancarem Bundu e forçá-lo a cavar uma cova próximo à base militar. Na noite do mesmo dia, os soldados fizeram com que as mulheres que viviam com eles deixassem a base militar e os habitantes da aldeia ouviram três tiros. Em 17 de Agosto de 2004, o sub-administrador civil do distrito municipal do Cacongo informou aos moradores da vila que o corpo de Bundu seria exumado de uma cova localizada atrás da base militar e que um funeral seria realizado no dia seguinte. Os familiares de Bundu exumaram o corpo na presença de um promotor civil e identificaram-no. Também estavam presentes os supostos responsáveis: um capitão, um sargento e um soldado que haviam sido presos pelas autoridades civis e detidos até a investigação completa do crime. Representantes das FAA e autoridades civis estiveram presentes ao funeral e explicaram que a morte de Bundu não fora ordenada pelas FAA e que se tratava de um ato isolado do capitão. As FAA substituíram o contingente do capitão na base militar por um outro contingente e o novo comandante supostamente avisou à população que o procurasse se fosse molestada por seus soldados. As FAA também forneceram o caixão, comida e bebidas para o funeral de Bundu. Detenção arbitrária, tortura e outros maus-tratos dos detidosDurante as operações militares contra os rebeldes da FLEC, em 2003, as forças Angolanas frequentemente detinham os civis. Desde o cessar geral de fogo em 2004, o número de casos de detenção arbitrária de civis tem diminuído significativamente. A Human Rights Watch, no entanto, entrevistou várias pessoas que foram arbitrariamente detidas em 2004. Durante as operações militares, as forças armadas talvez pudessem justificar a detenção breve de algumas pessoas as quais, acreditava-se, poderiam causar riscos à segurança. Evidentemente que pessoas detidas por participarem diretamente de hostilidades ou se envolverem de outra forma em atividadedes criminosas podem ser acusadas e processadas. No entanto, as FAA detiveram pessoas por períodos superiores a um mês, sob a mera suspeita de que eram combatentes ou simpatizantes da FLEC, ou que forneciam alimentos, armas ou informações à FLEC. As FAA prenderam pessoas desarmadas, em suas próprias residências, além de outras com que os soldados se depararam na mata. Os presos eram geralmente levados para as bases militares onde ficavam detidos ou a detenção era executada in situ na mata. A maioria dos atos de prisão foi levada a cabo na presença de oficiais, inclusive, às vezes, oficiais de alta patente, ou com o conhecimento dos mesmos. O Comandante das FAA em Cabinda disse que alguns ex-combatentes da FLEC que se juntaram às FAA forneceram listas de combatentes da FLEC. No entanto, a maioria dos casos de detenção investigados pela Human Rights Watch tinha a ver com civis sem nenhuma ligação com o conflito, os quais permaneceram sob custódia militar durante muito tempo mesmo depois de esclarecida sua identidade e situação de civil, o que constitui violação das leis Angolanas e internacionais. Em muitos desses casos, os soldados Angolanos torturaram ou maltrataram de outras formas os detidos para obter informações sobre a FLEC. Além disso, a Human Rights Watch entrevistou várias pessoas que foram detidas mais de uma vez. J. S., homem de 30 anos, foi detido três vezes em um período de seis meses no distrito municipal de Buco Zau. A primeira vez ele e suas duas sobrinhas, que as FAA suspeitavam fossem esposas da FLEC (parceiras sexuais dos soldados da FLEC) ficaram detidos por uma noite em princípios de Agosto de 2003. J.S. acompanhou suas sobrinhas à base militar de Necuto onde ele também foi preso. Ele passou a noite em um fosso, enquanto suas sobrinhas ficaram detidas em uma sala. As sobrinhas teriam sido espancadas por um major que era o sub-comandante da base. J.S. e suas sobrinhas foram soltos no dia seguinte. Em Setembro de 2003, J.S. voltou a ser preso por dezanove dias em uma pequena base militar, sob suspeita de ser membro da FLEC. Antes de ser levado à base militar, passou uma noite preso num acampamento das FAA na mata. Por ter suas mãos e pés amarrados a falta de circulação adequada provocou-lhe inchações nos membros. Quando entrevistado pela Human Rights Watch, J.S ainda tinha dificuldades em segurar objectos com sua mão esquerda. Ao chegar à base militar, foi despido, espancado no peito e ameaçado de morte. Um tenente o espancou e agarrou seu pénis. Ele foi interrogado sobre a FLEC e lhe perguntaram como a FLEC obtinha armas e alimentos. Durante o período em que esteve detido, J.S esteve sob a guarda constante de um soldado. Na terceira vez em que J.S foi detido, deparou-se com uma patrulha de soldados em meados de Dezembro de 2003, ao longo do rio Luali. Foi levado a uma das maiores bases militares das FAA, localizada em Loma, onde ficou detido em um quarto durante 42 dias. Suas mãos ficaram amarradas durante as primeiras 24 horas. Ele ficou preso com outros nove homens. Três desses homens passaram 42 dias em cativeiro. J.S relatou à Human Rights Watch: Nos primeiros 15 dias, fomos todos interrogados separadamente sobre a FLEC, por soldados diferentes. O comandante me batia com um facão enquanto eu estava deitado de bruços no chão. O comandante queria forçar-nos a dizer coisas que não sabíamos. Vi um outro preso a ser esfaqueado no pé duas vezes por um soldado. Ele foi levado de carro para o hospital militar mas retornou para Loma depois de uma semana. Tínhamos que carregar vinte e cinco litros de água em latas de gasolina, cortar o mato com facão, varrer a unidade e limpar as salas dos oficiais. J.S. acrescentou que, mesmo depois de solto, continuou sob a vigilância das FAA e mostrou à Human Rights Watch uma carta assinada por um coronel das FAA onde se declarava que ele era um suposto simpatizante da FLEC.41 A Human Rights Watch entrevistou outras pessoas que haviam sido detidas pelas FAA mais de uma vez e maltratadas enquanto presas. Em Maio de 2004, M.B., homem de 66 anos, e onze habitantes de uma aldeia foram detidos arbitrariamente por soldados das FAA enquanto colhiam produtos agrícolas no distrito municipal de Buco Zau. Oito eram mulheres e os outros três eram homens que acompanhavam as mulheres no campo para protegê-las contra as FAA. Soldados armados das FAA nos apanharam e começaram a espancar os homens com um pau da grossura do meu braço e com um facão. Eu sabia que eles eram do batalhão de Necuto porque reconheci o comandante. Ele nos acusou de dar apoio logístico à FLEC. Me espancaram na coluna. Minha filha foi espancada nos antebraços, que ficaram muito inchados. Outros homens, mais velhos que eu, foram espancados nas costas e na cabeça com a parte lisa do facão e o cabo de um rifle automático.42 C.L., sua filha de 42 anos, acrescentou que os soldados quebraram seu braço.43 Ela também disse que os soldados pareciam temerosos de que eles denunciassem o incidente às autoridades e, por isso, lhes deram duas caixas de mantimentos do Exército. Em Julho de 2004, o mesmo M.B. foi detido por um grupo de soldados armados das FAA por seis horas, ao sair para colher produtos no campo. Os soldados amarraram seus cotovelos nas costas com o cadarço de suas botas e colocaram um pau entre seus pulsos. O comandante o atingiu na cabeça com a vareta de sua espingarda e o interrogou a perguntar se tinha filhos na FLEC e como encontrá-los. M.B. decidiu abandonar a aldeia por causa desses incidentes.44 As condições de detenção variavam mas as FAA frequentemente prendiam pessoas sem respeitar as normas mínimas internacionais para o tratamento de prisioneiros.45 Alguns presos foram mantidos em abrigos simples onde recebiam água e comida em quantidades mínimas. Os piores locais de detenção eram os fossos cavados no chão. Um comandante das FAA não negou a existência de tais fossos mas sustentou que eram usados somente para deter soldados das FAA como medida disciplinar.46 Presos nesses fossos, os detidos tinham que defecar e urinar no mesmo lugar, o que constitui tratamento cruel, desumano e degradante, em violação ao Direito Internacional. Durante a estação das chuvas, os presos eram mantidos nessas covas que se enchiam parcialmente de água e levavam até dois dias para secar. A maioria dos ex-presos entrevistados pela Human Rights Watch tinham sido espancados e ameaçados de morte durante seus interrogatórios pelas FAA. As FAA também submeteram vários homens presos a outras formas de tortura, inclusive ao amarrar-lhes os cotovelos e as mãos nas costas e provocar perda da circulação sanguínea e lesões temporárias; ao prender suas cabeças entre duas barras de metal, as quais eram apertadas em seguida; e ao amarrar uma corda em volta do peito do preso enquanto cinco soldados puxavam cada ponta da corda.47 Os presos também foram submetidos a tratamentos humilhantes e degradantes, inclusive a ameaça de estupro ou o corte de seus órgãos genitais. Em meados de 2003, B. K., homem de 44 anos, foi capturado pelas FAA quando pescava. As FAA suspeitavam que ele pertencia à FLEC. Ele explicou que primeiro foi amarrado com os cotovelos nas costas e contou: Era muito doloroso porque minhas mãos tinham que se tocar na frente do meu peito. A corda cortava minha pele acima dos cotovelos o que me levou a sangrar. Eles também me golpearam no peito e nas pernas com o cabo de um facão e com um cinto militar. Eles me perguntavam: Quantos soldados da FLEC existem na sua aldeia? Quantos habitantes têm armas em suas casas? Eu dizia que eu não sabia responder a essas perguntas. Eles despejaram água suja sobre mim e me fizeram deitar de cabeça para baixo. Me cobriram com folhas de bananeira e usaram o caule para me golpearem. Ameaçaram me matar porque eu não respondia às suas perguntas. Disse-lhes então que me matassem. Foi aí que viraram meu corpo e o comandante abaixou as minhas calças. Fingiu cortar o meu pénis e testículos, a dizer: Nós deveríamos cortar seu pénis e seu saco porque eles são da FLEC. Ele segurou meu órgão genital nas mãos e exibiu um facão. Fiquei com muito medo e gritei: Jesus Cristo. Um soldado disse que eles deveriam ir embora mas os outros riram. Os soldados me desamarraram e permitiram que eu me lavasse no rio. Quando escureceu, o comandante ordenou que um soldado fizesse sexo comigo. O soldado se recusou a fazer sexo com outro homem. O comandante ordenou que outro soldado fizesse sexo comigo mas ele também se recusou. O comandante então fingiu que iria fazer sexo comigo e me puxou pela mão. Eu disse: Eu preferia morrer Os outros soldados não disseram nada, só riram. O comandante disse: Eu vou deixar você mas vou para sua aldeia dormir com sua mulher. Eu disse que nunca deixaria isso acontecer. O comandante então disse: Quando eu encontrar mulheres na mata, eu as estupro48 Depois de uma noite na mata, B.K. foi levado para uma base militar em Necuto onde foi colocado numa cova de 2,5 metros de largura e 5 metros de profundidade. Foi interrogado novamente pelo comandante da base. Antes de ser solto, foi interrogado também por um policial e pelo chefe da segurança, em suas salas. B.K. disse temer que o tratamento recebido na detenção o havia enfraquecido e que não poderia mais aguentar cargas pesadas. Alguns detidos foram forçados a servir como guias para as FAA para ajudar a localizar bases da FLEC na floresta.49 J. T. foi detido e interrogado pelas FAA pela primeira vez em 25 de Julho de 2004, numa base militar em Loma: Três soldados, inclusive o chefe da inteligência chamado Walter, um tenente e um sargento me acusaram de ter ajudado a FLEC e de fornecer a eles apoio logístico e conselhos. Eles me acusaram de receber uma carta da FLEC. Depois de duas horas, fui levado a um quarto onde passei a noite. No dia seguinte, Walter e dois outros soldados me mostraram uma longa lista de nomes de combatentes da FLEC. Meu nome estava escrito em vermelho. Eu acho que as pessoas em Buco Zau devem ter dado nomes dos soldados da FLEC às FAA. Ele também me mostrou uma outra lista com os nomes dos meus pais, esposa e filhos. Os nomes deles estavam escritos em vermelho. Eu fui então levado para a base militar de Cata Buanga. O comandante de Cata Buanga me disse: Se não conseguirmos nenhuma informação de você, vamos nos livrar desse lixo, querendo dizer que me matariam se eu não contasse a eles o que eles queriam saber. Em Cata Buanga eu fiquei preso numa cova antes de ser levado ao sub-comandante, que me disse: Vamos dar-lhe tudo que quiser se mostrar-nos onde a FLEC se esconde na mata. Ou nos mostra onde está a FLEC ou matamos você. Eu concordei em mostrar a eles onde ficavam as bases da FLEC para salvar minha vida, mesmo sem saber onde estavam as bases. O sub-comandante ordenou que alguns soldados das FAA ficassem responsáveis por mim fazendo com que um deles assinasse uma carta aceitando ser morto se eu escapasse. Eu fiquei na base por três noites sob guarda mas fui bem tratado. Então onze soldados e eu fomos para a mata para procurar a FLEC. Eu estava vestido com roupas de civil mas recebi um chapéu e uma jaqueta militar. Os soldados carregavam AKMs e outras armas. Passamos três dias na mata e encontramos vários lugares que a FLEC havia abandonado recentemente. Quando retornamos à base militar em Cata Buanga, Walter, o Brigadeiro [nome mantido em sigilo] e outro tenente tentaram me convencer a colaborar com as FAA ao trazer-lhes informações e entregar cartas à FLEC. Perguntaram se eu bebia e disseram que poderiam trazer bebida para que eu falasse mais livremente. Neguei-me a colaborar com eles. O Brigadeiro me mostrou dinheiro e perguntou se eu tinha aquela quantidade de dinheiro ou se a FLEC tinha aquela quantia. Eu disse: Como vou saber sobre o dinheiro da FLEC? Ofereceram me pagar um salário de Luanda mas eu recusei. Depois fui libertado para voltar à minha família, mas depois disso já fui interrogado outras vezes pelas FAA.50 Violações específicas de géneroA Human Rights Watch documentou uma ampla variedade de violações cometidas pelas FAA contra mulheres e raparigas, inclusive o estupro e a escravidão sexual.51 O estupro e a escravidão sexual infligidos por agentes do governo são violações dos direitos humanos, e durante os conflitos armados são considerados crimes de guerra pelo direito humanitário. As FAA também prenderam arbitrariamente mulheres que eram casadas ou suspeitas de serem casadas com combatentes da FLEC, juntamente com seus filhos. Além disso, a Human Rights Watch recebeu relatos de mulheres que se casaram com soldados das FAA por medo de serem acusadas de serem esposas da FLEC o que poderia resultar em sua detenção, violência sexual ou tortura. A Human Rights Watch foi informada por vários interlocutores de distritos municipais diferentes que mulheres e raparigas nas áreas rurais geralmente evitavam entrar na mata sozinhas com medo de serem estupradas por soldados das FAA e, frequentemente, iam trabalhar nos campos em grupos mistos de homens e mulheres. O comandante regional das FAA negou, no entanto, que os soldados das FAA estuprassem mulheres e raparigas, mas admitiu que ocorreram excessos quando os soldados se embebedaram.52 A situação inferior das mulheres e raparigas em Angola e a discriminação estrutural à qual estão sujeitas reflecte-se no estigma da mulher que foi estuprada. Uma resposta tradicional ao estupro na sociedade Angolana é que o estuprador se case com a vítima que, de outra forma, não conseguirá mais casar-se. A Human Rights Watch investigou vários casos de raparigas que se casaram com soldados das FAA, uma delas de apenas 14 anos. Estes casamentos precoces ocorreram provavelmente depois que as raparigas tinham sido violadas pelos soldados das FAA.53 A. T. descreveu como foi estuprada por quinze soldados das FAA e um oficial, em Novembro de 2002, quando tinha 14 anos: Estava a conversar com uma amiga quando fui chamada por um coronel das FAA cujo apelido é Decídio. Ele e dois soldados armados me levaram para a base militar. O coronel colocou uma pistola na minha cabeça e disse que me mataria se eu tentasse fugir. Levaram-me para uma sala onde Decídio me golpeou no rosto e nos seios com sua pistola. Ele então tirou a minha roupa de baixo e colocou dois dedos na minha vagina. Ele falou para os outros soldados: Vocês sabem quem é esta mulher? Ela é uma mulher da FLEC. Espancou-me novamente e me estuprou. Não sei se os outros dois soldados permaneceram na sala quando ele me estuprava porque estava escuro. Depois de me estuprar, ele disse: vou mandar quinze soldados da tropa usarem você. Você quer dormir na lama ou quer dormir punida? Eu fui estuprada por quinze soldados, um depois do outro. Depois que terminaram de me estuprar, ele mandou que dois soldados me levassem para fora. Eu estava com muita dor e sangrando. Decídio ainda me ameaçou: Se você reclamar com os sobas, eu mato você. Ele então ordenou que os dois soldados me levassem para casa. Por duas semanas eu não pude andar normalmente. Recebi tratamento médico na clínica por alguns dias e depois fui para a cidade de Cabinda para obter mais tratamento, inclusive tratamento psicológico.54 J.M., uma mulher de 25 anos, foi raptada por soldados das FAA em Novembro de 2003 e levada para sua base na mata onde foi estuprada e mantida por seis semanas durante as quais era estuprada repetidamente pelos seis soldados que a raptaram e outros soldados da mesma unidade. Eu estava a viajar de carro, de volta à Cidade de Cabinda. Havia outras pessoas no carro: o motorista e um casal que eu não conhecia. Fomos parados por seis soldados armados das FAA por volta das sete horas da noite. Os soldados ordenaram que eu e o casal saíssemos do carro e nos levaram para a mata. Por volta das 11:00 da noite, a outra mulher começou a reclamar que ela não queria andar mais. Um dos soldados colocou uma AK na sua cabeça e disparou. A bala atravessou sua cabeça fazendo com que seu cérebro se espalhasse por toda a parte. Caminhamos até chegarmos na base militar dos soldados. Os soldados dormiram em abrigos feitos de lona verde. Os soldados levaram o marido da mulher que fora morta para outra parte da base e eu nunca mais o vi. Eu fui levada para um abrigo de lona onde fiquei por cerca de seis semanas. Eu era estuprada dia e noite por muitos soldados. Eles usavam de força para me estuprar. Os soldados diziam: Vocês Cabindenses falam demais e agora vamos ensinar-lhes uma lição. Eu estava com medo e por isso fazia o que me mandavam. Fiquei muito traumatizada, a ponto de não lembrar quantos soldados me estupraram. Os soldados me disseram que eu estava lá para ser a esposa deles. Os soldados me ameaçavam e diziam que me matariam como mataram a outra mulher se eu me recusasse a fazer sexo. Eu me sentia perdida e não sabia se iria sobreviver.55 Depois de seis semanas de detenção e de estupros repetidos por muitos soldados, um deles ajudou J.M. a fugir, depois de estuprá-la. Levou-a para uma estrada principal onde J.M. conseguiu que um motorista de caminhão a levasse. J.M. estava muito traumatizada e com muitas dores. Quando saí da mata, parecia uma louca com o cabelo desfeito e muito suja, porque não havia me lavado todo o tempo em que estive na mata. Meu estômago doía. Doía quando eu urinava. Eu tinha vergonha da minha aparência e não podia ouvir as pessoas na rua falando que eu parecia uma louca. Minha mente estava toda confusa.56 Depois de fugir, J.M. foi tratada contra infecções e recebeu tratamento psicológico, providenciado pela Igreja Católica. A transmissão de doenças sexualmente transmissíveis, inclusive o HIV, tem aumentado consideravelmente devido a práticas de sexo violento com muitos parceiros. Um relatório sobre seu caso foi enviado para as FAA e para a polícia mas até a data da preparação deste relatório nenhuma medida ainda fora tomada pelas autoridades sobre o incidente. As FAA também detiveram arbitrariamente mulheres suspeitas de serem esposas de combatentes da FLEC. Em princípios de 2003, um grande grupo de mulheres casadas com combatentes da FLEC foi detido pelas FAA na base militar de Loma, depois de ataques das FAA às bases da FLEC na mata.57 As mulheres e seus filhos permaneceram detidas na base por cerca de um mês. Foram interrogadas pelas FAA sobre a FLEC e depois enviadas a viver num armazém velho sob a guarda constante das FAA, o que durou mais dois meses. Nesse período, as mulheres e crianças tiveram muito pouca liberdade de circulação. Podiam ir ao mercado, mas as FAA ameaçavam cortar suas mãos se fossem aos campos.58 Outra mulher, casada com um combatente da FLEC, foi capturada pelas FAA em um incidente separado, quando levava comida para seu marido. Os soldados das FAA amarraram suas mãos nas costas com tanta força que a corda cortou a pele acima de seus cotovelos causando uma cicatriz.59 O oficial da unidade que a capturou ameaçou matá-la. Ela também foi filmada pela Televisão Pública Angolana e forçada a dizer para as câmaras: Fomos para a mata para encontrar nossos maridos que são da FLEC e pedir a eles que saiam da mata. Algumas mulheres se casaram com soldados das FAA por medo de serem acusadas como mulheres da FLEC, o que poderia resultar em detenção ou violência sexual.60 Segundo uma mulher deslocada de sua área de origem e entrevistada pela Human Rights Watch, os soldados das FAA avisavam às mulheres de sua aldeia: Ou você vem como minha esposa ou a consideramos como mulher da FLEC.61 A Human Rights Watch ouviu relatos sobre famílias e comunidades que se recusaram a permitir que suas filhas se casassem com soldados das FAA e, por isso, temiam sofrer as consequências. Em alguns casos, as raparigas foram enviadas para a capital para evitar serem estupradas e, depois, serem obrigadas a se casar com os soldados que as estupraram. Em um caso, uma família enviou sua filha para longe, mas ao voltar à aldeia, acabou sendo forçada a se casar com um oficial das FAA.62 Negação da liberdade de circulaçãoO abuso mais comum cometido pelas FAA é a negação contínua da liberdade de circulação dos civis nas áreas rurais, que se viam assim impedidos de cuidar de seus cultivos agrícolas. Além disso, as FAA continuam a proibir que civis entrem na floresta para caçar ou pescar, inclusive com o confisco de armas de caça. A lei internacional dos direitos humanos estabelece que todos devem ter liberdade de circulação. Esse direito pode ser restrito por razões de segurança nacional, por exemplo, ao proibir o acesso a zonas de segurança militar, mas somente dentro do necessário.63 No seu Comentário Geral 27, o Comité de Direitos Humanos da ONU declara que as medidas restritivas da liberdade de circulação têm que ser apropriadas para realizar sua função de protecção, ser o instrumento menos intrusivo entre os que podem gerar os resultados desejados e, finalmente, ser condizentes com o interesse de receber proteção.64 O Protocolo Adicional II às Convenções de Genebra, que se considera um reflexo da lei humanitária comum, proibe especificamente forçar civis a passar fome como forma de combate. Também proíbe actos que destruam ou inutilizem objectos indispensáveis à sobrevivência da população civil, tais como áreas agrícolas de produção de alimentos, lavouras e pecuária.65 Em Cabinda, os civis têm proibido seu acesso à terra e às lavouras que cultivaram; alguns vêem seu acesso impedido por várias semanas, enquanto que outros têm seu acesso ao campo permanentemente negado. Uma mulher deslocada de seu local de origem explicou à Human Rights Watch: As FAA não permitem que as mulheres cultivem o campo, então como nós mães podemos dar de comer aos nossos filhos? Espero que haja paz para que possamos retornar às nossas aldeias e campos.66 Nas palavras de um pai de quatro filhos entrevistado pela Human Rights Watch: As FAA estão em toda a parte. Nós não temos liberdade de circulação e não podemos enviar nossos filhos à escola porque não podem estudar com fome.67 Outro homem comentou: Nas aldeias, vivemos da agricultura e agora a mata está cheia de soldados que nos impedem de chegar aos campos. Como podemos viver?68 Os habitantes das aldeias que se aventuram em áreas declaradas fora dos limites das FAA são rotineira e arbitrariamente detidos sob suspeita de serem simpatizantes da FLEC. [32] Angola ratificou o PIDCP em 10 de Abril de 1992. http://www.unhchr.ch/pdf/report.pdf. [33] Angola ratificou a Carta de Banjul em 2 de Março de 1990. [35] Entrevista da Human Rights Watch, Distrito municipal de Cabinda, 5 de Agosto, 2004. [36] Entrevista da Human Rights Watch, Distrito municipal de Buco Zau, 15 de Agosto, 2004. [37] Entrevistas da Human Rights Watch, Distritos muncipais de Cabinda e Buco Zau, 5 e 16 de Agosto, 2004. [38] Entrevistas da Human Rights Watch, Distritos municipais de Cabinda e Buco Zau, 14, 21 e 22 de Agosto, 2004. [39] Ibid. [40] Entrevistas da Human Rights Watch, Distrito municipal de Cacongo, 18 de Agosto, 2004. [41] Entrevista da Human Rights Watch, Distrito municipal de Buco Zau, 14 de Agosto, 2004. [42] Ibid. [43] Entrevista da Human Rights Watch, distrito municipal de Cabinda, 3 de Agosto, 2004. [44] Entrevista da Human Rights Watch, distrito municipal de Cabinda, 3 de Agosto, 2004. [45] Nações Unidas, Normas Mínimas para o Tratamento de Presos, Adotado em 30 de Agosto, 1955 pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes, U.N. Doc. A/CONF/611, annex I, E.S.C. res. 663C, 24 U.N. ESCOR Supp. (no. 1) at 11, U.N. Doc. E/3048 (1957), amended E.S.C. res. 2076, 62 U.N. ESCOR Supp. (no. 1) at 35, U.N. Doc. E/5988 (1977). [46] Entrevista da Human Rights Watch com General Marques Correia Banza (Comandante regional das FAA em Cabinda), cidade de Cabinda, 16 de Agosto, 2004. [47] Entrevista da Human Rights Watch, distrito municipal de Buco Zau, 15 de Agosto, 2004. [48] Entrevista da Human Rights Watch, distrito municipal de Buco Zau, 14 de Agosto, 2004. [49] Entrevistas da Human Rights Watch, distritos municipais de Cabinda e Buco Zau, 5, 8 e 12 de Agosto, 2004. [50] Entrevista da Human Rights Watch, distrito municipal de Buco Zau, 8 de Agosto, 2004. [51] Segundo o Artigo 7(2)(c) do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI), por escravidão entende-se o exercício, relativamente a uma pessoa, de um poder ou de um conjunto de poderes que traduzam um direito de propriedade sobre uma pessoa, incluindo o exercício desse poder no âmbito do tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças. [52] Entrevista da Human Rights Watch com General Marques Correia Banza (Comandante regional das FAA em Cabinda), cidade de Cabinda, 16 de Agosto, 2004. [53] Casamentos prematuros forçados são casamentos quando o consentimento de uma das partes, ou o consentimento da rapariga não é levado em consideração, ou, como no caso de Cabinda, um ou ambos os cônjuges têm idade inferior à idade de consentimento que, segundo o direito internacional, não deve ser inferior a quinze anos. [54] Entrevista da Human Rights Watch, distrito municipal de Belize, 20 de Agosto, 2004. O tratamento médico da vítima foi providenciado pela Igreja Católica. [55] Entrevista da Human Rights Watch, distrito municipal de Cabinda, 3 de Agosto, 2004. [56] Ibid. [57] Entrevista da Human Rights Watch, distrito municipal de Buco Zau, 8 de Agosto, 2004. [58] Ibid. [59] Ibid. [60] Entrevista da Human Rights Watch com vítima cujas sobrinhas haviam sido presas sob suspeita de serem casadas com membros da FLEC, distrito municipal de Buco Zau, 14 de Agosto, 2004. [61] Entrevista da Human Rights Watch, distrito municipal de Buco Zau, 14 de Agosto, 2004. [62] Entrevista da Human Rights Watch, distrito municipal de Buco Zau, 8 de Agosto, 2004. [63] PIDCP, Artigo 12. Ver, Manfred Nowak, U.N. Covenant on Civil and Political Rights: CCPR Commentary, Engel, 1993, pp. 211-212. [64] Comité de Direitos Humanos, Comentário Geral 27, Liberdade de circulação (Art. 12), (67a. Sessão, 1999), U.N. Doc. CCPR/C/21/Rev.1/Add.9 (1999), re-impressa em Compilation of General Comments and General Recommendations Adopted by Human Rights Treaty Bodies, O.N.U Doc. HRI/GEN/1/Rev.6 at 174 (2003). [65] Ver, Protocolo Adicional II às Convenções de Genebra de 1949, Artigo 14. Angola não ratificou este Protocolo que especificamente vislumbra conflitos armados internos. No entanto, a maioria de suas disposições são consideradas reflectidas no Direito Comum Internacional. [66] Entrevista da Human Rights Watch, distrito municipal de Buco Zau, 14 de Agosto, 2004. [67] Entrevista da Human Rights Watch, distrito municipal de Buco Zau, 14 de Agosto, 2004. [68] Entrevista da Human Rights Watch, distrito municipal de Cabinda, 2 de Agosto, 2004.
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