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I.  RESUMO

Falam de medidas sócio-educativas, mas isto não tem nada a ver com educação.
—Miguel L., 21 anos, Instituto Padre Severino

Esses lugares [os centros de detenção juvenil] são verdadeiras masmorras.  Qualquer um pode ir ao Educandário Santo Expedito ou ao Padre Severino e ver por si próprio.  Estas instituições não cumprem sua função sócio-educativa, elas perpetuam uma subcultura de prisões que condena diretores e jovens ao sofrimento físico, mental e moral e pode inclusive promover o crime.  Lutar contra esta triste situação é lutar pelo fim da violência e pelo cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente.
—Maria Helena Zamora, em carta ao editor do Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 25 de setembro de 2003.

Os centros de detenção juvenil do Rio de Janeiro estão superlotados, são imundos e violentos e não conseguem garantir, em praticamente nenhum aspecto, a proteção dos direitos humanos dos jovens.  São comuns os espancamentos nas mãos dos monitores.  “Eles nos espancam por qualquer motivo”, disse Dário P., 18 anos, no Centro de Atendimento Intensivo - Belford Roxo (conhecido como CAI-Baixada).  “Eles entram em nossas celas e aí começam a nos bater.”  Ele nos informou que os monitores espancaram-no com tanta força que deixaram-lhe a boca ensangüentada e uma vez, disse ele, bateram-lhe nas partes genitais.  “Eles gritam os números das celas – quatro, cinco seis! – e aí temos que tirar nossas roupas [para ser revistados]; se não obedecermos, eles nos espancam.”1

Com cerca de 15 milhões de habitantes, o Estado do Rio de Janeiro é mais populoso do que 13 países latino-americanos. A cidade do Rio de Janeiro evoca imagens mundialmente famosas que incluem a Praia de Ipanema, o Pão de Açúcar e os braços abertos do Cristo Redentor sobre a parte sul da cidade.  Mas o Rio de Janeiro é também o cenário de massacres brutais de crianças de rua (um dos mais infames ocorreu em 1993, bem ao pé da igreja da Candelária, no centro da cidade), de violência armada entre as facções rivais do tráfico de drogas e a polícia e, como relata este informe, da detenção rotineira de jovens em condições cruéis e degradantes. 

A legislação federal de justiça juvenil do Brasil, contida no Estatuto da Criança e do Adolescente, está entre as mais progressistas da América Latina.  A lei garante aos jovens internados, entre outros, os direitos de receberem um tratamento respeitoso e digno, de serem abrigados em condições adequadas de saúde e higiene, de receberem visitas semanais, e de contarem com instrução e treinamento vocacional.  O Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas (DEGASE) é o órgão responsável por garantir que os centros de detenção juvenil do Rio de Janeiro atendam às exigências da lei e sejam condizentes com as normas internacionais.

Na verdade, o DEGASE controla um sistema de detenção juvenil extremamente deficiente.  Ao observar que muitos estados ainda não cumprem a lei, Nilmário Miranda, Secretário Nacional dos Direitos Humanos, informou à Human Rights Watch: “A implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente ficou no meio do caminho, e o DEGASE é o caso mais grave”.  Ao referir-se à má fama do sistema de detenção juvenil de São Paulo, administrado pela Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM), disse: “Antes era a FEBEM em São Paulo, mas hoje é o DEGASE”.2

A Human Rights Watch visitou cinco centros de detenção do Rio de Janeiro em julho e agosto de 2003.  Um destes centros – o Instituto Padre Severino – é, mais precisamente, um centro de detenção para rapazes em fase de pré-julgamento, mas em sua visita, nossos pesquisadores também viram aí jovens já sentenciados.  Um segundo centro – o Educandário Santos Dumont – recebe jovens do sexo feminino, tanto as que já foram sentenciadas como as que esperam julgamento.  Os três centros restantes – CAI-Baixada, Educandário Santo Expedito e Escola João Luis Alves – destinam-se exclusivamente a jovens já sentenciados.

Além dos espancamentos e dos freqüentes abusos verbais, os jovens em muitos destes centros de detenção são trancafiados em suas celas por períodos de uma a duas semanas como punição por delitos considerados graves pelos diretores dos centros, entre eles a posse de contrabando.  Esta determinação é feita exclusivamente a critério dos monitores: não há nenhuma audiência, nenhum direito de recurso e, aparentemente, nenhuma orientação que os monitores devem seguir para aplicar a punição.  “O processo devido inexiste”, disse à Human Rights Watch o padrasto de um rapaz detido de 16 anos.3  No caso de delitos menores – entre eles, participar de desordens, retirar alimentos do refeitório ou conversar durante as refeições – é freqüente colocarem os jovens de pé ou sentados em posições desconfortáveis por um longo período de cada vez.

Apesar da natureza rotineira do abuso físico, particularmente nos centros de detenção de rapazes Padre Severino, CAI-Baixada e Santo Expedito, a maioria das queixas nunca são investigadas pelo DEGASE.  Nunca um monitor foi punido por conduta abusiva.  O pai de um jovem detido salientou a disparidade que existe entre o tratamento dado aos jovens que recorrem à violência e aquele dado aos monitores que assumem um comportamento semelhante, ao perguntar: “Quando os jovens agridem um monitor, eles os levam para a delegacia.  Por que não fazem o mesmo com os monitores que espancam nossos filhos?”4

Mais de um terço dos jovens presos no Estado do Rio de Janeiro são acusados de delitos relacionados a drogas, inclusive o tráfico de drogas.  Estudos recentes concluíram que os jovens vêm se envolvendo cada vez mais no comércio ilícito de drogas e que este envolvimento começa em idades cada vez menores.  O uso de jovens com menos de 18 anos “para a produção e tráfico de drogas” e outras atividades ilícitas é reconhecido inequivocamente como uma das piores formas de trabalho infantil, o que significa que o envolvimento dos jovens no tráfico de drogas é tanto um problema da justiça juvenil como uma questão trabalhista.  As estratégias para reduzir o envolvimento dos jovens no tráfico de drogas incluem melhorar o acesso de crianças e jovens à educação, oferecer treinamento vocacional e criar com os empregadores programas especiais para dar aos jovens outras alternativas viáveis além do envolvimento com o comércio de drogas.  Se os centros de detenção juvenil do Rio de Janeiro cumprissem sua missão “sócio-educativa”, eles se esforçariam para tratar do problema do envolvimento dos jovens no tráfico de drogas por meio de programas de reabilitação, de forma consoante a um dos principais objetivos do sistema de justiça juvenil.

No entanto, muitos dos jovens dos centros CAI-Baixada, Padre Severino e Santo Expedito não recebiam nenhum tipo de instrução, em patente violação de seus direitos sob a Constituição Brasileira e as leis internacionais.  Também não recebiam treinamento vocacional, que é o serviço de reabilitação identificado mais freqüentemente como prioritário pelos jovens e seus pais. Como nos disse a mãe de um internado de 17 anos em Santo Expedito, ao referir-se ao treinamento profissional: “Eu criaria mais cursos profissionais para eles lá dentro, algo que lhes abra outras oportunidades ao sair dali.  No mundo externo, eles vão precisar de muito mais.  Que oportunidades de emprego existem lá fora?  Eles necessitam de alguns serviços lá dentro, algum tipo de curso”.5

Os centros de detenção juvenil do estado não atendem aos requisitos básicos de saúde e higiene.  Os jovens às vezes usam as mesmas roupas durante três semanas antes de serem lavadas.  Muitos têm que dividir colchões de espuma esfarrapados; outros dormem no chão.  À noite, têm que defecar e urinar em sacos de plástico porque os monitores não os deixam sair das celas para ir ao banheiro.  Podem passar dias sem tomar banho, porque os monitores não os deixam usar os chuveiros ou porque falta água.  Na maioria dos centros, os jovens dependem das suas famílias para lhes trazerem sabão, pasta de dente e papel higiênico; os que não recebem visitas têm que viver sem estes artigos de primeira necessidade.

Estes problemas são agravados pela atitude desdenhosa de muitos diretores dos centros de detenção, a começar do diretor do sistema geral.  “Estes jovens têm muito menos em suas casas do que têm aqui”, disse o diretor geral do DEGASE, Dr. Sérgio Novo, contando-nos que os centros de detenção do Rio eram mais limpos do que as casas de muitos dos internados.6

Como demonstração patente da falta de condições higiênicas nos centros de detenção do Rio de Janeiro, tanto os jovens como o pessoal que aí trabalha têm que enfrentar epidemias periódicas de sarna, uma doença parasítica contagiosa facilmente transmissível nas condições superlotadas e sem higiene que prevalecem na maioria dos centros de detenção.  Os centros de detenção não oferecem tratamento aos jovens que contraem a sarna, o que aumenta as chances da doença ser transmitida ao resto da população de internados.  A Human Rights Watch escreveu à Governadora do Estado do Rio de Janeiro em agosto de 2003, instando-lhe a instruir ao DEGASE e à Secretaria de Saúde que tomem providências imediatas para dar um tratamento médico adequado aos jovens internados acometidos de sarna.7  Até hoje, data de preparação deste informe, não recebemos uma resposta da Governadora.  A conseqüência das condições não higiênicas nos centros de detenção do Rio de Janeiro e da omissão das autoridades públicas é que “a sarna tornou-se um problema em todas as instalações do sistema”, como disse à Human Rights Watch um defensor público.8

*    *    *

Este informe se baseia numa missão de duas semanas de investigação no Rio de Janeiro em julho e agosto de 2003, bem como em informações adicionais coletadas por nossos pesquisadores entre agosto de 2003 e novembro de 2004.  Durante essa missão de investigação dos fatos, nossos pesquisadores visitaram cinco centros de detenção juvenil do estado, inclusive o único centro estadual de detenção de jovens do sexo feminino, e realizaram entrevistas privadas de 53 jovens, sendo seis do sexo feminino.  Nossos pesquisadores puderam tirar fotografias em todas as instalações visitadas.

Este é o décimo-sétimo relatório da Human Rights Watch sobre justiça juvenil e condições de confinamento de crianças e adolescentes.  No continente americano, a Human Rights Watch já investigou e divulgou relatórios sobre questões de justiça juvenil no Brasil, Guatemala, Jamaica e nos estados norte-americanos do Colorado, Louisiana, Georgia e Maryland.  Em outras partes do mundo, a Human Rights Watch documentou condições de detenção de crianças na Bulgária, Egito, Índia, Quênia, Irlanda do Norte, Paquistão e Turquia.  Além disso, a Human Rights Watch já publicou um livro relatório sobre as condições das prisões de adultos no Brasil, um de pelo menos trinta relatórios de uma série que descreve as condições de encarceramento em países do mundo inteiro.9

As prisões, cárceres, cadeias policiais e outros locais de detenção apresentam problemas especiais à pesquisa porque os internados, sobretudo quanto são crianças, são vulneráveis aos atos de intimidação e represália.  Para garantir exatidão e objetividade, a Human Rights Watch baseia seus relatórios na observação direta das condições de detenção e em entrevistas com os internados e oficiais prisionais.  Seguindo um conjunto de regras auto-impostas para a condução de investigações, a Human Rights Watch faz visitas somente se nossos pesquisadores, e não as autoridades, puderem escolher as instituições a visitar; se tiverem certeza de que poderão conversar a sós com os internados de sua escolha; e se tiverem acesso a qualquer parte da instituição a inspecionar.  Com estas regras, garante-se que não serão mostrados aos nossos pesquisadores apenas os centros de internação e os internados “modelos”, ou apenas as áreas mais “apresentáveis” das instituições sendo investigadas.  Nos raros casos em que se nega o acesso nestes termos, a Human Rights Watch poderá realizar suas investigações com base em entrevistas com ex-internados ou seus familiares, advogados, peritos prisionais e funcionários de centros de internação, além de analisar documentos de evidência.

A Human Rights Watch toma todo o cuidado para garantir que as entrevistas das crianças sejam feitas de forma confidencial e atenciosa, sem influências ou pressões externas reais ou aparentes.  Não são impressos os nomes e outras informações que permitam a identificação das crianças detentas entrevistadas pelos pesquisadores.  Neste relatório, todas as crianças receberam um nome fictício, para proteger sua privacidade e segurança.

A Human Rights Watch avalia o tratamento das crianças à luz das normas internacionais, as quais estão especificadas na Convenção sobre os Direitos da Criança; no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; e em outros instrumentos internacionais de direitos humanos.  As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil, as Regras das Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados de Liberdade, e as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Prisioneiros dão uma orientação confiável sobre o conteúdo das obrigações internacionais no contexto da detenção de jovens.

Neste relatório, a palavra “criança” refere-se a qualquer pessoa com menos de 18 anos de idade.  A Convenção sobre os Direitos da Criança define criança como “qualquer ser humano com menos de 18 anos de idade exceto se, nos termos da lei aplicável à criança, a maioridade puder ser alcançada mais cedo”.10  Este uso difere da definição de “criança” na legislação de justiça juvenil do Brasil, a qual distingue entre pessoas com menos de 12 anos de idade (as quais são consideradas “crianças”) e pessoas de 12 a 17 anos de idade (“adolescentes”).  Por esta razão e devido ao fato de que um centro de detenção do Brasil pode receber tanto adolescentes como adultos jovens até a idade de 21 anos, este relatório usa o termo “jovem” para referir-se a qualquer pessoa de 12 a 21 anos de idade.11




[1] Entrevista da Human Rights Watch com Dário P., Centro de Atendimento Intensivo-Belford Roxo (CAI-Baixada), Rio de Janeiro, 28 de julho de 2003.

[2] Entrevista da Human Rights Watch pelo telefone com Nilmário Miranda, secretário especial dos direitos humanos, 27 de abril de 2004.

[3] Entrevista da Human Rights Watch com o padrasto de um jovem internado, Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[4] Entrevista da Human Rights Watch com o pai de um jovem internado, Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[5] Entrevista da Human Rights Watch com a mãe de um jovem internado, Rio de Janeiro, 1 de agosto de 2003.

[6] Entrevista da Human Rights Watch com o Dr. Sérgio Novo, Diretor Geral do Departamento de Ações Sócio-Educativas, Rio de Janeiro, 31 de julho de 2003.

[7] Ver carta de Michael Bochenek, advogado da Divisão dos Direitos da Criança da Human Rights Watch, à Exma. Sra. Rosângela Rosinha Garotinho Barros Assed Matheus de Oliveira, Governadora do Estado do Rio de Janeiro, datada de 11 de agosto de 2003 (reproduzida no Apêndice B).

[8] Entrevista da Human Rights Watch com o defensor público, Rio de Janeiro, 28 de julho de 2003.

[9] Ver Human Rights Watch, 0 Brasil atrás das grades (New York:  Human Rights Watch, 1998).

[10] Convenção sobre os Direitos da Criança, art. 1, adotada em 20 de novembro de 1989, 1577 U.N.T.S. 3 (entrada em vigor em 2 de setembro de 1990).  O Brasil ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança em 24 de setembro de 1990.

[11] Ver o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei No. 8.069 de 13 de julho de 1990, arts. 2, 121.  Ver, de modo geral, o capítulo III deste relatório, na seção sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente.


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