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I. SUMÁRIO

Angola retornou ao estado de guerra aberta em Dezembro de 1998, sendo este o quarto período de guerra declarada de que há memória. É impossível determinar com precisão o custo em vidas humanas desde que se reiniciaram as lutas, mas o cálculo das Nações Unidas é de que existe 1,1 milhões de deslocados internos devido à renovação do conflito, ou seja, mais de 10 por cento da população angolana. Este regresso à guerra representava também o fim do apreensivo processo de paz iniciado com o Protocolo de Lusaka, na Zâmbia, em Novembro de 1994. O processo de paz foi orientado por duas missões de paz da ONU, a UNAVEM III e a sua sucessora, a MONUA, sendo o preço pago pela comunidade internacional de U.S.$ 1,5 biliões.

O Protocolo de Lusaka foi assinado num momento em que os rebeldes da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) se encontravam numa posição enfraquecida, querendo interromper as suas perdas territoriais a favor do governo. O Protocolo de Lusaka providenciava um cessar-fogo, a integração de generais da UNITA nas forças armadas do governo (que deviam passar a ser não-partidárias e controladas por civis), a desmobilização (mais tarde emendado para desmilitarização) sob vistoria da ONU, a repatriação de mercenários, a incorporação das tropas da UNITA na Polícia Nacional Angolana, sob o controle do Ministério do Interior, e a proibição de qualquer outra polícia ou organização de vigilância. Como pano de fundo do protocolo, encontrava-se activo desde 1993 um embargo do Conselho de Segurança sobre as transferências de armas e petróleo para a UNITA, e tanto o governo como a UNITA tinham concordado, como parte do acordo, em fazer parar novas aquisições de armas. Mas o embargo à UNITA não foi cumprido, e ambos os lados continuaram a fazer abertamente importantes aquisições de armas durante todo o processo.

As principais questões políticas abrangidas pelo protocolo de Lusaka eram o mandato da ONU (verificação e monitorização do Protocolo de Lusaka), a função dos soldados de paz (vigilância), a realização do processo eleitoral e a reconciliação nacional. Segundo as provisões para a reconciliação dos partidos, os líderes da UNITA receberiam residências particulares, escritórios políticos em cada uma das províncias e também um quartel-general. Membros da UNITA ocupariam também uma série de postos como os de ministros, vice-ministros, embaixadores, governadores e vice-governadores de província, administradores e administradores adjuntos de município e administradores de comuna. O governo reteria todas as outras posições no poder.

O Protocolo de Lusaka incluía questões de direitos humanos em texto secundário, mencionando apenas, nos anexos do protocolo sobre a reconciliação nacional e no mandato da ONU, o compromisso de adoptar os princípios gerais dos direitos humanos. Em relação à amnistia, a posição tanto do governo angolano como da UNITA era clara: o Protocolo de Lusaka estabelecia que "as instituições competentes amnistiarão... os actos ilegais cometidos por qualquer indivíduo no contexto do presente conflito."

Uma comissão conjunta, formada por representantes da ONU, do governo e da UNITA, e incluindo observadores dos EUA, Portugal e Rússia (a chamada Troika), orientou a implementação do Protocolo de Lusaka. Qualquer violação do acordo que fosse verificada pela ONU ou participada por um dos partidos seria discutida na Comissão Conjunta. Na prática a comissão tornou-se depositário de registos de violações militares e de direitos humanos, embora a ONU tivesse pouca vontade de investigar ou publicitar estes incidentes.

Embora a ONU fosse o maior protagonista da paz do mundo, encontrando-se no auge do seu desenvolvimento, só em 1995 é que o Conselho de Segurança aprovou uma operação de paz significativa a qual, devido aos atrasos do seu destacamento, apenas atingiu a sua força total em fins de 1996. O atraso do destacamento das forças de paz da ONU facilitou as violações dos acordos, cometidos pela UNITA e pelo governo, mas o erro fundamental foi a política, advogada por Blondin Beye, Representante Especial da ONU, de fechar os olhos e deixar passar impunes as violações dos acordos. Em 1995 um funcionário da ONU disse à Human Rights Watch que "a situação é sensível demais para se fazer uma monitorização séria dos direitos humanos. Se publicássemos o que sabemos, podíamos debilitar o processo de paz e regressar à guerra".

As violações dos direitos humanos foram um dos factores principais do enfraquecimento dos acordos de paz de Lusaka. Se se tivessem monitorizado e divulgado melhor os direitos humanos e suas violações, teria sido mais difícil que a UNITA e o governo abusassem dos direitos dos angolanos, e mais fácil fazer os culpados assumirem responsabilidade. A impunidade com que os direitos foram violados corroeu a confiança no processo de paz, criando um círculo vicioso de violação dos direitos, o qual foi piorando gradualmente. Visto o processo de paz estar em desintegração, Beye ordenou uma mudança de estratégia, pouco antes da sua morte, em Maio de 1998, e a sua missão da ONU, esgotada, começou pela primeira vez a fazer investigações mais robustas das violações dos direitos humanos. Tarde demais para manter a paz. A prática, adoptada pela ONU, de ignorar as decepções e depredações de ambos os partidos, assim como a sua própria falta de transparência, tinha encorajado ambos os partidos a considerar processo de paz com desprezo, e tanto o governo angolano como a UNITA haviam decido optar pela guerra.

A divisão de direitos humanos da ONU, que pouco tinha feito durante quase todo o processo de paz de Lusaka, melhorou em 1998, devido em grande parte ao recrutamento de um profissional de direitos humanos para a sua chefia. Contudo o regresso à guerra, em Dezembro, reduziu dramaticamente as suas actividades e, durante os primeiros sete meses de 99 a Divisão de Direitos Humanos não foi capaz de desempenhar a função que pretendia desempenhar, gastando muita energia a tentar delinear um futuro e realizando poucos trabalhos sérios de investigação sobre as violações dos direitos. Não se produziu nenhuma publicação. A comunicação entre a divisão e os jornalistas fora também desencorajada por esta instituição. Actualmente continuamos sem saber o que se pode fazer a não ser que a Divisão de Direitos Humanos obtenha um mandato nítido que inclua trabalhos de investigação e a disseminação das descobertas dos mesmos.

No decorrer de todo o processo de paz de Lusaka, especialmente em 1998, o governo angolano tem sido responsável por grandes violações dos direitos humanos. Estes abusos abalaram a confiança da UNITA no processo de paz de Lusaka, e incluíram:

· torturas, "desaparecimentos" e execuções sumárias, particularmente de partidários da UNITA, em áreas onde o controle do governo tinha acabado de ser estabelecido, em 1998;

· o homicídio indiscriminado de civis e pilhagens durante as operações militares;

· o recrutamento arbitrário para o serviço militar;

· o deslocamento forçado da população civil;

· o uso de armas indiscriminadoras, tais como minas antipessoal, em 1998 e 1999;

· a perseguição e censura dos media;

· a perseguição da oposição política leal.

A UNITA tem também cometido violações sistemáticas e horríveis dos direitos humanos durante a vigência do processo de paz de Lusaka e na nova guerra, incluindo:

· bombardeamentos indiscriminados de cidades sitiadas;

· execuções sumárias;

· torturas;

· mutilações de vivos e mortos;

· raptos de civis, incluindo mulheres e crianças, por vezes tratados como escravos;

· o recrutamento de soldados infantis e outros recrutamentos arbitrários, negando a crianças de menor idade, não acompanhadas, a oportunidade de se reunirem voluntariamente às suas famílias;

· a tomada de estrangeiros como reféns;

· a restrição dos movimentos da população civil em áreas ocupadas pelo partido, confiscando-lhe alimentos e obrigando-a a efectuar trabalhos não remunerados;

· condições cruéis e desumanas nas prisões.

Desde Dezembro de 98 que a UNITA tem sitiado várias cidades e vilas, nomeadamente Malanje e Kuito. Em fins de Dezembro de 98 a UNITA lançou muitas bombas sobre o Kuito, resultando em 150 baixas civis. O bombardeamento de Malanje começou em Janeiro de 99 sem que tenha sido suspenso desde então e resultando na morte de pelo menos 600 civis. O cerco que a UNITA tem estado a fazer a Malanje tem aumentado a fome da população civil, tendo sido necessário suspender, de vez em quando, os voos de assistência humanitária para a cidade.

A guerra de minas tem-se intensificado desde que as hostilidades foram reatadas, e o governo colocou novas minas antipessoal em redor de cidades sitiadas, em cintas de minas e ao longo de estradas, a fim de obstruir o acesso à UNITA. Esta situação é duplamente deplorável porque o governo angolano assinou em Dezembro de 1997, no Canadá, a Convenção sobre a Proibição do Emprego, Acumulação, Produção e Transferência de Minas Antipessoal e sobre a sua Destruição (Tratado de Otava). Também a UNITA tem colocado novas minas nas estradas e nos campos, e criado campos de minas, com o objectivo de abrandar o ritmo das ofensivas militares do governo. As minas colocadas pelo governo e pela UNITA têm resultado em vítimas civis.

A UNITA usou o acordo de paz de Lusaka para impedir mais perdas territoriais e para fortalecer as suas forças militares. Em 1996 e 1997 adquiriu grandes quantidades de armamentos e combustível, enquanto ia cumprindo, sem pressa, vários dos compromissos que assumira através do Protocolo de Lusaka. Pela segunda vez nesta década, a UNITA não cumpriu a sua promessa de desmobilizar, entregando apenas uma fracção dos seus armamentos à ONU e não aquartelando muitas das suas tropas elite. A UNITA também não transferiu para o controle do governo todos os territórios que prometera transferir segundo as disposições do Protocolo de Lusaka. Na realidade, a UNITA cumpriu apenas as obrigações que achou não serem estrategicamente essenciais para a sua segurança, e que não impossibilitavam o retorno à guerra, processando lentamente até as concessões mínimas, a fim de ganhar mais tempo. Em meados de 98 já o governo perdera a paciência com a UNITA, começando a fazer preparativos sérios para o retorno à guerra.

O regresso ao conflito, e as concomitantes violações dos direitos humanos, foram alimentados por novas entradas de armamentos no país, apesar do embargo que a ONU impusera à UNITA em 93. Esta adquiriu a fornecedores estrangeiros grandes quantidades de armamentos. A Human Rights Watch crê que algumas destas armas sejam provenientes de fornecedores privados da Albânia e da Bulgária. A UNITA conseguiu "quebrar" efectivamente a barreira das sanções através dos países vizinhos, especialmente a África do Sul, o Congo, a Zâmbia, o Zaire (agora denominado República Democrática do Congo), assim como a Rwanda, a Uganda, o Togo e o Burkina Faso. O Zaire foi o portal mais importante na infracção das sanções a Angola até à queda do Presidente Mobutu, em meados de 97; a entrada passou então a ser o Congo-Brazzaville até fins de 97, altura em que o governo angolano ajudou a derrubar o governo democraticamente eleito de Pascal Lissouba. Em 1998 a frequência dos voos em infracção das sanções para os territórios da UNITA começou a declinar, em parte devido ao aumento das restrições regionais, mas também devido ao facto de a UNITA ter devolvido o vale do Cuango, rico em diamantes, ao governo, que passou a controlá-lo. Uma grande percentagem das violações das sanções cometidas pela UNITA em 98 foi para obtenção de abastecimentos logísticos, de equipamento para minas, e do combustível essencial para os esforços bélicos da UNITA. O cerco da UNITA à cidade do Kuito terminou em Janeiro de 1999 porque as suas forças tinham esgotado todo o seu combustível e tiveram de se retirar.

A ONU não conseguiu resolver o problema do não cumprimento das sanções pela UNITA em 1995 e 1996, fingindo muitas vezes não ter conhecimento das transgressões relacionadas com o embargo de petróleo e armas, que tinha declarado em 93. As suas interdições, decretadas de boa fé, foram dificultadas pelos lentos destacamentos dos soldados da paz que tinham sido prometidos como parte do Acordo de Lusaka. Em Outubro de 97 a ONU impôs mais uma série de restrições à UNITA, proibindo que os seus oficiais visitassem outros países e fechando os seus escritórios no estrangeiro. Espantosamente, só em Junho de 98 é que a acção da ONU incidiu sobre a exportação directa e indirecta de diamantes provenientes de zonas da UNITA, congelando também as suas contas bancárias, apesar de serem estas as fontes principais de rendimento para as aquisições de combustível e de armamentos que a UNITA fazia.

A UNITA financiou a reconstrução das suas forças militares através do seu controle dos diamantes angolanos. A maior parte dos diamantes foi contrabandeada para a Europa através do Zaire (RDC) e do Congo Brazzaville, embora tenham também saído pela África do Sul, Namíbia, Rwanda e Zâmbia. As exportações de diamantes que a UNITA fez durante o processo de Lusaka proporcionaram aos rebeldes um lucro líquido de cerca de U.S.$1,72 biliões. Em 1993, os lucros do comércio de diamantes tinham já substituído os fundos de assistência que a UNITA tinha recebido, até à altura, dos Estados Unidos e África do Sul. Segundo consta, a assistência monetária dissimulada que os Estados Unidos forneceram à UNITA entre 1986 e 1991 atingiu um total de U.S.$250 milhões.

Também o governo recebeu carregamentos de armas durante o processo de Lusaka. Esta situação não era ilegal, mas debilitou o espírito do Protocolo de Lusaka e contribuiu para o enfraquecimento da confiança no processo de paz. As armas foram adquiridas de uma série de países, incluindo a Bielorússia, o Brasil, a Bulgária, a China, a Eslovaquia, a Ucrânia e a África do Sul. A Rússia, que faz parte da Troika (um dos três governos que desempenham a função de observadores/mediadores no processo de paz) debilitou a sua posição oficial pois vendeu ao governo grandes quantidades de armas, que corresponderam a uma série de carregamentos enviados para Angola. Durante o processo de paz Portugal, que também é membro da Troika, fez acordos militares com o governo. As aquisições de armas feitas pelo governo atingiram novamente níveis máximos em 1999, idênticos aos grandes níveis de aquisições de 1994; a Rússia volta agora a surgir como principal fornecedor de armas para Angola. Durante o processo de paz de Lusaka, nenhum país forneceu ao Registo de Armas Convencionais da ONU informação detalhada sobre as suas transferências de armas para Angola.

O governo pagou as aquisições de armas através de empréstimos bancários, remessas de lucros do petróleo, das minas e de outras concessões. O governo, que tem pouca liquidez, usou cerca de U.S.$870 milhões de fundos provenientes de pagamentos de bónus assinados por conta da concessão dos blocos trinta e um, trinta e dois e trinta e três da exploração petrolífera, para pagar as suas aquisições de armas. As companhias petrolíferas multinacionais BP-Amoco, Exxon e Elf desempenham um papel preponderante nestes blocos.

O insucesso do Processo de Paz de Lusaka não se deve apenas à má fé da UNITA. A estratégia, adoptada pela ONU, de não revelar as acções públicas contra as violações dos acordos, a sua falta de transparência e a sua incapacidade de implementar os embargos minaram o respeito que a UNITA ou o governo poderiam ter para com o Protocolo, e a sua consequente adesão. Com o colapso do processo de paz de Lusaka, esta estratégia de "não ver nem falar no mal" parece ter funcionado como um tiro saindo pela culatra. Por duas vezes se empregou a estratégia, e por duas vezes fracassaram os acordos de paz, regressando o país à guerra. Esta situação poderia ter sido evitada se a ONU tivesse destacado imediatamente os seus soldados de paz, dando-lhes poderes para efectuarem uma monitorização "sensível" e para registarem as violações do cessar-fogo e do embargo, assim como as grandes violações dos direitos humanos. Devia também ter-se imposto inicialmente um embargo de armas a ambas as partes, e um embargo à venda de diamantes da UNITA, logo que se tornou claro que os rebeldes estavam a usar este recurso para se armarem. Há também necessidade de cortar completamente os laços com o passado e, para que tal aconteça, é preciso responsabilizar os líderes angolanos pelos seus actos, e consciencializá-los das penalidades potenciais que os esperam se endossarem conscientemente as violações dos direitos humanos.

Os Estados Unidos apoiaram uma série de iniciativas de defesa dos direitos humanos durante o processo de paz de Lusaka embora, em 1998, estivessem a perder cada vez mais a influência política que poderiam ter exercido sobre o governo angolano, pois que eram considerados culpados, por terem sido dos arquitectos principais do processo de paz. A Suécia desempenhou uma função particularmente importante no apoio a uma série de programas de direitos humanos, tendo também sido um dos principais países que os apresentaram na ONU, durante o período em que foram responsáveis pelo Conselho de Segurança (1997-1998). Os outros países da União Europeia mantiveram um silêncio espantoso em relação às questões dos direitos, pouco mais fazendo, na maioria dos casos, do que escrever declarações fortes para os discursos dos seus presidentes.

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