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O Direito a uma Habitação Condigna

Normas internacionais relativas às desocupações forçadas

Angola é Parte no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC)14. O artigo 11.º do Pacto estabelece a obrigação de proteger o direito a uma habitação condigna, o que inclui a protecção contra as desocupações forçadas.

Para os efeitos do direito internacional, uma “desocupação forçada” é definida como “a retirada definitiva ou temporária de indivíduos, famílias e/ou comunidades, contra a sua vontade, das casas e/ou da terra que ocupam, sem a disponibilização de formas adequadas de protecção jurídica ou de outro tipo ou sem o acesso a tais formas de protecção”15.

A expropriação dos terrenos de sujeitos privados, mesmo sem o seu consentimento, ou o despejo coercivo dos moradores, podem ser levados a cabo em conformidade com o direito internacional, que reconhece aos Governos o direito de adoptar tais medidas “nas circunstâncias mais excepcionais”. Porém, cada medida deve ser avaliada individualmente, com uma clara identificação do interesse público e com a aplicação de procedimentos adequados, nomeadamente de indemnização e de acesso a um alojamento alternativo16.

As “desocupações forçadas” ilegais compreendem, não apenas os despejos que envolvam força física ou violência, mas também desocupações “pacíficas” caso a retirada do imóvel seja injustificável, ou o processo não inclua salvaguardas adequadas17.

Está agora claramente estabelecido que a desocupação forçada constitui uma violação fundamental do direito internacional e foi classificada como uma flagrante violação de direitos humanos18. Ela representa uma medida regressiva relativamente às obrigações do Estado em relação ao acesso à habitação ao abrigo do artigo 11.º do PIDESC, uma vez que envolve a destruição arbitrária, pelo Estado, de recursos investidos pelos indivíduos e pelas famílias na construção dos seus lares19.

A desocupação forçada também implica a violação de outros direitos protegidos pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP); em particular, do direito da pessoa de não ser sujeita a ingerências arbitrárias ou ilegais na sua vida privada e no seu domicílio, e do direito à liberdade e à segurança pessoal.20

Para que um despejo coercivo respeite as normas internacionais, os governos têm de garantir que são exploradas alternativas viáveis e que os indivíduos têm direito a indemnização pelos bens móveis e imóveis afectados.21 Têm também de aplicar salvaguardas processuais mínimas, incluindo uma consulta genuína às pessoas afectadas; um aviso prévio adequado e razoável da data da desocupação; informação atempada sobre a desocupação proposta, incluindo, se possível, o fim alternativo para o qual se pretende utilizar o terreno; uma devida identificação do pessoal que leva a cabo o despejo; e a disponibilização de vias legais de recurso para os afectados.22

Angola é também Parte na Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (Carta de Banjul).23 O artigo 14.º da Carta protege o direito à propriedade. A Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos interpretou esta disposição, em conjunto com os artigos 16.º (direito ao gozo do melhor estado de saúde física e mental possível de atingir) e 18.º (direito à protecção da família), de forma a ler na Carta um direito a abrigo ou à habitação. No caso The Social and Economic Rights Action Center/Center for Economic and Social Rights c. Nigéria, a Comissão Africana observou:

No mínimo, o direito a abrigo obriga o […] Governo a não destruir a habitação dos seus cidadãos e a não obstruir os esforços dos indivíduos ou comunidades para reconstruir os lares perdidos. A obrigação do Estado de respeitar os direitos de habitação exige-lhe, e assim a todos os seus órgãos e agentes, que se abstenham de levar a cabo, apoiar ou tolerar qualquer prática, política ou medida legal que viole a integridade dos indivíduos ou infrinja a sua liberdade para utilizar os recursos à sua disposição da forma que considerem mais apropriada à satisfação das necessidades de habitação do indivíduo, da família, do agregado familiar ou da comunidade …24

O Relator Especial das Nações Unidas sobre Alojamento Suficiente enquanto Componente do Direito a um Nível de Vida Suficiente elaborou um conjunto de directrizes de direitos humanos sobre a deslocação baseada no desenvolvimento. Estas directrizes partem das Directrizes Gerais de Direitos Humanos sobre a Deslocação Baseada no Desenvolvimento, das Nações Unidas, elaboradas por peritos sob os auspícios do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos em Junho de 1997.25 As directrizes apresentadas pelo Relator Especial ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em 2006 oferecem diversas novas orientações, que tornam mais claras as obrigações dos Estados relativamente ao respeito das normas de direitos humanos quando procedem à retirada coerciva de uma população devido a projectos de desenvolvimento em grande escala. Elas reflectem e discriminam em detalhe os princípios consagrados nos Comentários Gerais números 4 e 7 do Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU, sobre o direito a um alojamento suficiente, e reflectem a experiência de comunidades que foram sujeitas a violações de direitos humanos em resultado de despejos forçados. Embora não tenham ainda sido formalmente adoptadas pelos Estados, as directrizes recomendadas pelo Relator Especial constituem um importante guia para a protecção dos respectivos cidadãos contra violações de direitos humanos resultantes de desocupações forçadas.

Legislação angolana em matéria de direitos de habitação e propriedade

A legislação angolana, abaixo enunciada, contém diversas disposições que protegem os indivíduos caso estes sejam involuntariamente despejados pelo Estado da sua terra ou habitação.26 Tais disposições reflectem essencialmente as exigências de informação, notificação e indemnização previstas no PIDESC.

Nos termos da Lei de Terras, o Estado só pode expropriar terrenos se estes forem utilizados para um fim específico de utilidade pública.27 De acordo com as leis e os regulamentos de planeamento urbano, quando o Estado procede à expropriação de terrenos para utilização pública, tem de declarar o destino de tal utilização.28 Nos casos em que o Estado outorga concessões de terrenos para projectos de desenvolvimento urbano, o Governo tem o dever legal de publicitar amplamente o projecto a fim de que as pessoas que crêem que os seus direitos reais previamente estabelecidos ficarão prejudicados possam apresentar queixas para proteger legalmente esses direitos.29 O desenvolvimento de qualquer infra-estrutura que possa ter um impacto ambiental ou social significativo está sujeito a uma avaliação desse impacto que terá de incluir a consulta à população afectada.30 As pessoas cujos terrenos sejam expropriados por motivos de utilidade pública têm direito a uma indemnização justa.31

A Administração Pública de Angola está vinculada por um princípio geral que exige a prestação de informação aos cidadãos e por uma regra geral segundo a qual a instauração de qualquer procedimento administrativo tem de ser comunicada aos cidadãos cujos direitos e interesses legalmente protegidos possam ser afectados.32 Qualquer acto administrativo que negue, extinga, restrinja, ou de qualquer forma afecte direitos ou interesses legalmente protegidos, ou que agrave deveres ou sanções, tem de ser justificado pela administração à luz das leis e políticas em vigor.33

A Administração tem sempre de notificar aos indivíduos as decisões que: (a) constituam resposta a uma petição apresentada por tais indivíduos à Administração; (b) imponham deveres ou sanções aos indivíduos ou lhes causem prejuízos; (c) criem, extingam, aumentem ou diminuam quaisquer direitos ou interesses legalmente protegidos dos indivíduos ou afectem as condições do seu exercício.34 O Estado tem de notificar as pessoas afectadas por tais decisões no prazo de oito dias (a menos que outro prazo seja especificamente fixado por outra lei), directamente ou através um edital afixado num local amplamente acessível.35 A notificação tem de incluir: (a) o texto integral do acto administrativo; (b) a identificação do procedimento administrativo, incluindo o seu autor e a data; (c) o organismo competente para apreciar a impugnação do acto administrativo, bem como o prazo para recorrer.36

Para além disso, o Governo de Angola tem o dever de garantir que os planos do ordenamento do território respeitam direitos ou situações jurídicas validamente constituídas.37




14 Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC), adoptado a 16 de Dezembro de 1966 pela resolução da AGNU 2200A (XXI), 21 UN GAOR Suplemento (N.º 16) à p. 49, Doc. ONU A/6316 (1966), 993 U.N.T.S. 3, que entrou em vigor a 3 de Janeiro de 1976 e ao qual Angola aderiu a 10 de Janeiro de 1992. Segundo o artigo 11.º, os “Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas a um nível de vida adequado para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e habitação condignos, bem como a um melhoramento constante das suas condições de existência.”

15 Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU, “O direito a uma habitação condigna” (artigo 11.º, n.º 1): desocupações forçadas”, Comentário Geral n.º 7, documento das Nações Unidas HRI/GEN/1/Rev.7 (1997), parágrafo 3.

16 Vide também: Alto Comissariado para os Direitos Humanos, “Fact Sheet N.º 25, Forced Evictions and Human Rights”, Maio de 1996, disponível em http://www.ohchr.org/english/about/publications/docs/fs25.htm (acedido a 1 de Março de 2007). Texto em português: Ficha Informativa N.º 25, “A Desocupação Forçada e os Direitos Humanos”, disponível em http://www.gddc.pt/direitos-humanos/Ficha_Informativa25.pdf (acedido a 27 de Abril de 2007).

17 No Comentário Geral n.º 4, o Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU declara que as desocupações forçadas “são prima facie incompatíveis com as exigências do Pacto e só se podem justificar nas circunstâncias mais excepcionais e em conformidade com os pertinentes princípios de direito internacional”. Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU, “Direito a uma habitação condigna”, Comentário Geral n.º 4, documento das Nações Unidas HRI/GEN/1/Rev.7 (1991), parágrafo 18.

18 Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU, Comentário Geral n.º 7, parágrafo 2.

19 O Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU, no seu Comentário Geral n.º 3, parágrafo 9, observa: “[Q]uaisquer medidas deliberadamente regressivas […] têm de ser ponderadas com o máximo cuidado e necessitam de ser plenamente justificadas por referência à totalidade dos direitos previstos no Pacto e no contexto da utilização plena dos máximos recursos disponíveis.” Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU, “A natureza das obrigações dos Estados Partes (artigo 2.º, n.º 1)”, Comentário Geral n.º 3, documento das Nações Unidas HRI/GEN/1/Rev.7 (1990).

20 Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), adoptado a 16 de Dezembro de 1966 pela resolução da AGNU 2200A (XXI), 21 UN GAOR Suplemento (N.º 16) à p. 52, Doc. da ONU A/6316 (1966), 999 U.N.T.S. 171, que entrou em vigor a 23 de Março de 1976 e ao qual Angola aderiu a 10 de Janeiro de 1992; artigos 9.º e 17.º.

21 Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU, Comentário Geral n.º 7, parágrafo 13.

22 Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU, Comentário Geral n.º 7, parágrafo 15. Estes direitos processuais são enunciados em detalhe nos Comentários Gerais nºs 4 e 7 do Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU (vide o anexo II para o texto completo do Comentário Geral nº7).

23 Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (Carta de Banjul), adoptada a 27 de Junho de 1981, Doc. da OUA CAB/LEG/67/3 rev. 5, 21 I.L.M. 58 (1982), que entrou em vigor a 21 de Outubro de 1986 e à qual Angola aderiu a 2 de Março de 1990.

24 Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, Comunicação N.º 155/96 (2001), parágrafo 61.

25 A Prática das Desocupações Forçadas: Directrizes Gerais de Direitos Humanos sobre a Deslocação Baseada no Desenvolvimento, adoptadas pelo Seminário de Peritos sobre a Prática das Desocupações Forçadas, Genebra, 11-13 de Junho de 1997, http://www1.umn.edu/humanrts/instree/forcedevictions.htm (acedido a 20 de Fevereiro de 2007). Texto em inglês.

26 A adopção de legislação específica em matéria de desocupações forçadas foi recomendada pelo Relator Especial da ONU sobre Habitação Condigna enquanto Componente do Direito a um Nível de Vida Adequado. Contudo, na ausência de tal legislação, a legislação sobre gestão de terras e planeamento urbano, bem como as normas gerais em matéria de procedimento administrativo, podem e devem ser utilizadas a fim de proteger os direitos das pessoas despejadas.

27 Lei de Terras, Lei n.º 9/04, 9 de Novembro de 2004, art. 12.º, n.º 2.

28 Lei do Ordenamento do Território e Urbanismo (Lei do Ordenamento do Território), lei n.º 3/04, de 25 de Junho de 2004, art. 20.º; Regulamento Geral dos Planos Territoriais, Urbanísticos e Rurais (Regulamento dos Planos Urbanísticos), Decreto n.º 2/06, de 23 de Janeiro de 2006, art. 87.º.

29 Regulamento dos Planos Urbanísticos, art. 143.º, n.º 6.

30 Lei de Bases do Ambiente, Lei n.º 5/98, de 19 de Junho de 1998, arts. 15.º e 16º.

31 Lei de Terras, artigos 12.º, n.º 3 e 27.º, n.º 10.

32 Normas do Procedimento e da Actividade Administrativa (Normas do Procedimento), Decreto-Lei n.º 16-A/95, de 15 de Dezembro de 1995, artigos 7.º, 34.º e 30.º; Regulamento dos Planos Urbanísticos, art. 11.º.

33 Normas do Procedimento, art. 67º.

34 Normas do Procedimento, art. 38º.

35 Normas do Procedimento, artigos 41.º e 42º.

36 Normas do Procedimento, art. 40.º.

37 Lei do Ordenamento do Território, art. 24.º.