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Sumário

A guerra acabou para sempre. Nós estamos cansados e não queremos mais saber de guerra. Sem guerra, nossos filhos podem viver uma vida melhor. Estamos acostumados a uma vida dura mas se tivéssemos um pouco de ajuda, poderíamos aprender alguma coisa e a vida poderia ser melhor. O governo tem que cumprir com suas obrigações. Nós estamos esperando por isso.
– Lino Z., ex-combatente da UNITA, Chicala Cholohanga, 30 de Novembro de 2004.

Quando as Forças Armadas de Angola e as forças rebeldes da UNITA assinaram o Memorando de Entendimento de Luena (Memorandum of Understanding, MOU), em 4 de Abril de 2002, trouxeram a um fim uma das mais longas e brutais guerras do século vinte, uma expressão da Guerra Fria que perdurou o seu fim por mais de uma década. A morte de Jonas Savimbi, líder da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), em Fevereiro de 2002, levou ao colapso das forças militares da UNITA e o fim de trinta anos de luta armada contra o partido do governo, o Movimento Popular de Libertação de Angola, MPLA. No entanto, o Memorando de Luena, a culminação do processo de paz de Lusaka iniciado em 1994, marcou não somente um fim mas também um começo: o início de um processo difícil de reconstrução da infra-estrutura social completamente destruída e a reintegração de milhares de pessoas que abandonaram suas casas durante a guerra e outros milhares de ex-combatentes em uma sociedade pacífica. A Human Rights Watch analisou o processo de paz de Lusaka em Angola Unravels: The Rise and Fall of the Lusaka Peace Process (1999).

Este relatório, que enfoca principalmente os desafios enfrentados por angolanos em seu retorno à casa, actualiza a pesquisa anterior da Human Rights Watch sobre o processo de retorno e reintegração publicado no relatório A Luta em Tempos de Paz: O Retorno e Reassentamento em Angola (2003). À época dessa publicação, em Agosto de 2003, mais de dois milhões de um estimado contingente de 3,8 milhões de pessoas deslocadas (Internally Displaced Persons, IDPs) haviam retornado à suas áreas de origem; a diferença permanecia deslocada, frequentemente em acampamentos temporários ou campos de reassentamento. Aproximadamente 130.000 refugiados vivendo na República Democrática do Congo (RDC), Zâmbia e Namíbia também haviam retornado. Cerca de 53.000 Angolanos ainda permaneciam como refugiados nesses países. A maioria desses refugiados retornaram “espontaneamente”—ou seja, retornaram pelos seus próprios meios e não através de um processo organizado de repatriamento. O governo de Angola, o Alto Comissariado para Refugiados das Nações Unidas (ACNUR) e os países hospedeiros, a RDC e Zâmbia assinaram acordos tripartite regulando o processo apenas em Março de 2003 e nenhum centro receptor para dar assistência aos refugiados retornados havia sido estabelecido. Além disso, o governo havia recém fechado oficialmente as áreas de aquartelamento estabelecidas por um anexo ao Memorando de Luena para a desmobilização dos ex-combatentes da UNITA e seus parentes e dependentes (Anexo I, “Documento sobre o aquartelamento das Forças Militares da UNITA”). 

Desde a publicação do relatório A Luta em Tempos de Paz, quase todos os deslocados ou ex-combatentes e suas respectivas famílias retornaram a suas áreas de origem ou decidiram permanecer em suas comunidades hospedeiras. O ritmo do repatriamento dos refugiados também foi acelerado com o estabelecimento de grandes centros de recepção nas províncias do Moxico e Huambo e outros centros menores no Uíge, Zaire, Cunene, Cuando Cubango e Lunda Norte.  Até o fim de 2004, 281.000 refugiados haviam sido repatriados em Angola, incluindo 94.000 assistidos pelo Programa de Repatriamento Voluntário do ACNUR. O ACNUR espera completar o programa de repatriamento voluntário em 2005 com o retorno de cerca de 53.000 refugiados que permanecem em campos e assentamentos na RDC, Zâmbia e Namíbia.

Com o movimento populacional pós-guerra praticamente completo, Angola encontra-se em uma encruzilhada.  As decisões tomadas hoje determinarão se o enorme contingente populacional de recém-deslocados, exilados e ex-combatentes podem ser reintegrados plenamente em uma sociedade pacífica e ajudar a construir um país estável e próspero.

Grande parte das famílias retornou para localidades com serviços sociais, tais como assistência médica e educação, mínimos e com poucas oportunidades económicas. Alguns ex-combatentes receberam treinamento profissional previsto no Memorando de Luena. Todos os retornados enfrentam desafios no sector da agricultura—embora o acesso à terra seja amplo, muitas dessas terras ficaram abandonadas por anos e são de difícil cultivo produtivo. Mulheres chefe de família e mulheres que vivem sozinhas enfrentam problemas adicionais no acesso e cultivo da terra. Em algumas partes do país, especialmente no Moxico, minas terrestres estão tão espalhadas que as pessoas estão literalmente assentando-se sob campos de minas. Além disso, as minas terrestres, que destruíram pontes e devastaram o sistema rodoviário, deixaram muitas comunidades para onde retornam as pessoas completamente isoladas, as vezes, acessíveis somente via aérea, quando acessíveis.

Muitos dos retornados também não têm os direitos de cidadania básicos, inclusive o direito ao trabalho, o direito à educação pública e o direito ao voto nas eleições planejadas temporariamente para 2006, porque não conseguem obter os documentos de identidade necessários para tal.  A Polícia e oficiais militares molestam os retornados que não possuem documentos de identidade, até mesmo prendendo indivíduos até que eles paguem um suborno. Alguns refugiados Angolanos que retornam da RDC sem provas suficientes da cidadania Angolana são acusados de serem imigrantes congoleses ilegais ou contrabandistas de diamantes ficando sujeitos a violência e abuso sexual. Activistas da UNITA também têm sido atacados em comunidades onde tentaram estabelecer escritórios ou fazer reuniões políticas. 

Além da transição da guerra para paz, Angola enfrenta outra dificuldade—a transição de um país receptor de assistência emergencial e humanitária da comunidade internacional para a de receptor de assistência desenvolvimentista de longo prazo. Esse ínterim cria sérios problemas para os retornados que tentam reconstruir suas vidas. Por exemplo, a assistência alimentar e a distribuição de sementes e ferramentas talvez seja terminada antes mesmo que as pessoas estejam aptas a cultivar suas terras, ou antes que estradas sejam construídas permitindo o acesso aos mercados. Por outro lado, projectos de desenvolvimento serão adiados até que os doadores e as instituições financeiras internacionais estejam satisfeitas com o nível de responsabilidade e transparência do governo Angolano. A Human Rights Watch analisou a grave falha no gerenciamento das massivas receitas oriundas da venda de petróleo em um relatório intitulado, Some Transparency, No Accountability: The Use of Oil Revenue in Angola and Its Impact on Human Rights (2004).

Além disso, o período de transição tem sido marcado pela diminuição da fiscalização à protecção feita por uma presença internacional.  O Escritório da ONU para a Coordenação dos Assuntos Humanitários (OCHA), a agência de coordenação líder da ONU em Angola (agora conhecida como OCHA/UCT, ou Unidade de Coordenação de Transição) tem reduzido drasticamente sua presença e actividades de fiscalização. Um financiamento decrescente tem levado o ACNUR a eliminar cargos e posições e reduzir sua actuação no monitoramento do retorno dos  refugiados, um componente chave do mandato do ACNUR. Ao mesmo tempo, ONGs internacionais enfrentam uma redução em seus financiamentos e poucas ONGs e agências governamentais possuem os recursos financeiros e humanos para assumir os papéis de fiscalização e assistência.

O governo de Angola deve cumprir com suas obrigações sob a legislação internacional e doméstica de assistir e proteger os retornados. Por sua vez, a comunidade internacional deve manter uma presença adequada em Angola para garantir que os direitos humanos dos retornados e ex-combatentes sejam respeitados. A população de retornados—de fato, todos Angolanos—sofreu durante anos de instabilidade, violência e privação, e esses retornados entrevistados pela Human Rights Watch estão cautelosos mas optimistas sobre o futuro. Sua paciência não deve ser tomada como dada—eles, devidamente, esperam melhorar suas vidas, e a menos que o governo cumpra com suas responsabilidades para com a reintegração socio-econômica de todos os retornados e ex-combatentes, sua paciência pode tornar-se frustração, ressentimento e, eventualmente, conflito.

Este relatório se baseia em pesquisa conduzida pela Human Rights Watch em Angola em Novembro e Dezembro de 2004.  Nossos pesquisadores entrevistaram refugiados retornados, ex-combatentes e pessoas deslocadas que se reassentaram em centros de recepção e em suas vilas e cidades de retorno nas províncias do Moxico e Huambo.  Os pesquisadores optaram por enfocar nas províncias do Moxico e Huambo porque essas duas províncias possuem os maiores números de retornados refugiados e também deslocados internos (IDPs). Essas duas províncias também abrigaram algumas das maiores concentrações de ex-combatentes e outros retornados associados à UNITA. Os pesquisadores da Human Rights Watch também entrevistaram as agências da ONU relacionadas ao tema, representantes dos governos doadores à Angola, ONGs e outras organizações, inclusive o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), o Escritório de Assuntos Humanitários da ONU (OCHA), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP), o Escritório de Direitos Humanos da ONU em Angola (parte do Escritório do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos), a Organização Internacional para as Migrações (IOM), o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas (PAM), representantes das embaixadas dos Estados Unidos, Holanda, Suécia e Alemanha, a agência Alemã de Cooperação Desenvolvimentista (GTZ), a Delegação da União Europeia para Angola, o Norwegian Refugee Council, GOAL, Lutheran World Foundation, Development Workshop, World Vision, Oxfam, Médecins Sans Frontières (MSF)-Bélgica, Center for Common Ground, Save the Children-US, Forum for Non-Governmental Organizations in Angola (FONGA), Longa e ADRA-Angola.  Além disso, os pesquisadores da Human Rights Watch entrevistaram também autoridades Angolanas, inclusive representantes da polícia e autoridades locais do Ministério da Justiça e do Ministério da Assistência Social e Reintegração (MINARS), representantes do governo central e membros do partido da UNITA em nível nacional e local. Quando necessário, os nomes dos entrevistados foram mantidos em sigilo ou modificados para proteger sua confidencialidade. 


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