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© Human Rights Watch

Na manhã do dia 18 de agosto, Ana ouviu fogos de artifício e o eco de alguém falando palavras em português desde um alto-falante que não entendeu. "Será que eles vão fazer uma festa?", ela se perguntou. Ela estava ao lado da lona sob a qual ela e seu marido, Luis, e sua filha de 11 anos, Lucia, dormiam em Pacaraima, uma cidade brasileira de 12 mil habitantes do estado de Roraima na fronteira venezuelana.

Embora morassem nas ruas no Brasil, país onde pediram refúgio, Ana e Luis nos disseram que estavam em melhor situação do que em Cumaná, uma cidade litorânea na Venezuela a 1.200 km de distância. Em Cumaná, eles comiam tão pouco que Lucia tinha desmaiado várias vezes de fome na escola. Eles então venderam tudo o que tinham e deixaram seus empregos em uma empresa do governo. Ana e Luis disseram que na empresa viram agentes do governo colocarem em uma “lista negra” pessoas que, segundo eles, se opunham ao presidente Nicolás Maduro. Eles tinham medo de serem perseguidos, caso voltassem à Venezuela, por terem deixado seus empregos, mas sentiam que não tinham escolha.

O alto-falante que Ana tinha ouvido, três semanas após sua chegada, era um carro que dirigia lentamente pela rua anunciando não uma festa, mas um protesto. Uma multidão o seguia. Na véspera, um grupo de pessoas, supostamente venezuelanos, teria roubado e ferido Raimundo Nonato de Oliveira, um conhecido comerciante local. Uma falsa mensagem de WhatsApp circulava dizendo que o Exército tinha reservado uma ambulância para venezuelanos e por isso havia se recusado a levar Raimundo para um hospital na capital do estado, Boa Vista. O alto-falante do carro aumentou aquela mentira, anunciando que Raimundo tinha morrido em decorrência de seus ferimentos.

Logo veio o caos.

Brasileiros, homens e mulheres, externavam sua fúria contra os precários acampamentos montados por venezuelanos em terrenos baldios e calçadas. A irmã e a tia de Ana correram para avisá-la. “Os brasileiros estão doidos. Corre, corre!"

Os brasileiros sacudiam as lonas fazendo com que os venezuelanos saíssem das barracas e depois espalhavam gasolina e ateavam fogo, disse Luis. Enquanto apanhava os pertences que conseguia reunir, Luis via crianças saindo de baixo das lonas, tossindo.

Ele viu um homem esguichar spray de inseticida, tocar fogo e queimar as costas de uma jovem venezuelana. Luis e sua família correram para um morro próximo, deixando para trás comida, roupas e notas de dinheiro brasileiras e americanas no valor de cerca de 60 dólares - uma fortuna para eles.

Ouvimos depoimentos após depoimentos que corroboraram o que Luis e Ana contaram. Por exemplo, Marina Contreras, uma indígena venezuelana de 26 anos, perdeu uma sacola de remédios e os únicos sapatos de sua filha de um ano de idade. Uma semana depois, quando conversamos com ela, a criança continuava sem sapatos. Outros venezuelanos perderam documentos de identidade, um contratempo muito grave dado o tempo e o esforço necessários para obtê-los na Venezuela.

Vídeos de celulares mostram a multidão gritando contra os venezuelanos, empilhando seus pertences e os incendiando na rua, e um trator derrubando um palco municipal para shows públicos sob o qual venezuelanos montaram suas barracas. Um vídeo também mostra a polícia observando, sem fazer nada.

O procurador de Pacaraima, Lincoln Zaniolo, disse que os policiais militares e civis estavam de fato presentes durante o ataque aos venezuelanos, mas não detiveram ninguém.

A multidão empurrou cerca de 1.200 venezuelanos para o outro lado da fronteira, nos disse Hilel Zanatta, o coronel que comanda a operação das Forças Armadas para receber os venezuelanos. Ele disse que algumas pessoas no lado venezuelano da fronteira apedrejaram carros com placas brasileiras em represália.

É possível que dentre os venezuelanos empurrados para fora do Brasil houvesse solicitantes de refúgio, disse o promotor Zaniolo.

A família de Ana acabou encontrando abrigo em uma igreja batista em Pacaraima, junto com outros 26 venezuelanos, incluindo quatro crianças separadas de seus pais. As crianças choraram por horas.

Ao menos mais oito crianças foram inadvertidamente separadas de seus pais naquele dia, disse Zaniolo. No dia seguinte, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) levou a família de Ana e os outros que estavam na igreja a um abrigo em Boa Vista. As crianças foram reunidas com seus pais, disse Zaniolo.

O ataque de Pacaraima não foi o primeiro ataque a venezuelanos no Brasil. Em março, uma multidão expulsou venezuelanos de um abrigo na cidade de Mucajaí e queimou seus pertences. O ataque foi em reação ao assassinato de um homem local durante uma briga em um clube, durante a qual um venezuelano também morreu. Em julho, o Ministério Público denunciou cinco homens por xenofobia e incitação ao crime pelo ataque ao abrigo. No dia 6 de setembro, um grupo de brasileiros espancou até a morte um venezuelano que supostamente matou um brasileiro em Boa Vista. A polícia não prendeu nenhum suspeito até agora.

Mas também houve atos de bondade em outras partes de Roraima. Desesperados de fome, Fran Morales, sua esposa e cinco filhos deixaram a Venezuela em julho e, sem recursos, começaram a caminhar os 200 quilômetros entre a fronteira até Boa Vista. Famílias brasileiras lhes deram abrigo e comida duas vezes ao longo do caminho, e outros lhes ofereceram caronas.

Conversamos com Morales em um dos 10 abrigos que o governo federal e o ACNUR abriram no estado de Roraima, que hoje abrigam 4.600 venezuelanos.

Muitos outros venezuelanos dormem em quartos alugados, cheios de gente, ou pelas ruas de Boa Vista. Mais de 110.000 venezuelanos entraram no Brasil por Roraima este ano, e apenas 30.000 voltaram, segundo a Polícia Federal. Nem todos eles ficam no Brasil, mas dezenas de milhares vivem em Roraima.

O governo federal brasileiro fez um esforço considerável para responder à crise e manteve a fronteira aberta aos venezuelanos que fogem da fome, da falta de cuidados básicos de saúde e da perseguição. Mas o governo tem atuado lentamente para integrá-los na sociedade; até agora, apenas cerca de 1.100 pessoas foram voluntariamente levadas para outras partes do país por meio de um programa financiado pelo governo federal. A maioria das crianças em abrigos não vai à escola, nos disseram militares trabalhando na operação. Os venezuelanos têm pouco acesso a aulas de português. Muitos ainda não têm documentos legais para permanecerem, o que prejudica sua capacidade de conseguir um emprego.

O fluxo maciço de venezuelanos está sobrecarregando o sistema de saúde de Roraima, um estado esparsamente povoado ligado ao resto do Brasil por uma única estrada. As diretoras dos dois principais hospitais de Roraima nos disseram que ficaram sem alguns antibióticos e outros suprimentos devido ao aumento da demanda e tiveram que pedir recursos de emergência para cobrir as necessidades de brasileiros e venezuelanos.

O grande fluxo de imigrantes tem um claro impacto em uma pequena cidade como Pacaraima. Mas, os brasileiros devem dirigir sua indignação ao governo de Maduro,  não a suas vítimas.

E as autoridades brasileiras devem tomar medidas decisivas contra ataques xenófobos. O Ministério Público deve denunciar aqueles que usam da violência contra venezuelanos e devem instar as corregedorias da polícia civil e militar a punir policiais que não cumprem suas obrigações.

Ainda que Ana e Luis nos tenham relatado em prantos o ataque em Pacaraima, eles disseram que não retornariam à Venezuela. “Temos medo de voltar. Eles nos considerariam traidores”, disse Luis. Eles não devem ser forçados a fazê-lo.

Os nomes de Ana e Luis foram alterados para lhes garantir proteção.

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