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V. O ENFRAQUECIMENTO INSIDIOSO DO PROCESSO DE PAZ DE LUSAKA

As violações dos direitos humanos foram dos factores principais do enfraquecimento dos acordos de paz de Lusaka. Se se tivessem monitorizado, noticiado e denunciado melhor estas violações, poderia ter-se reduzido a capacidade tanto da UNITA como do governo de violar os direitos dos angolanos, tornando mais fácil a tarefa de processar legalmente os responsáveis. A impunidade com que se violaram os direitos corroeu a confiança no processo de paz, criando um círculo vicioso de desrespeito por estes direitos, que foi piorando constantemente.

O Processo de Aquartelamento

Em 1992 uma das maiores falhas do processo de paz foi o facto de a UNITA não ter desmobilizado a maioria dos seus combatentes.1 Durante o processo de Lusaka, o processo de divisão e reintegração foi também lento.2 A operação começou a sério apenas em Fevereiro de 1996, ficando incompleta e envolvendo poucas das tropas essenciais da UNITA; por outro lado, havia muitos civis nos campos.

Aquando da cerimónia de ajuramentação do novo exército combinado, a 10 de Julho de 1997, a UNITA tinha aquartelado 70.660 tropas nos seus quinze campos para guerrilheiros autorizados. Destes, 10.899 militares, incluindo generais e outros oficiais superiores, deveriam juntar-se ao novo exército. Este número era, contudo, inferior ao inicialmente planeado, que previa que 26.300 combatentes da UNITA seriam incorporados nas forças armadas nacionais. Segundo o Protocolo de Lusaka, a UNITA via-se também obrigada a aquartelar 62.500 soldados, mas mais de 22.686 tinham desertado depois de se terem registado. A 11 de Dezembro de 1996, data em que o processo de aquartelamento terminou oficialmente, já a UNITA alegara ter desmobilizado um total de 41.796 soldados das suas tropas.3 Nessa mesma data a UNITA declarou que todas as suas tropas tinham sido aquarteladas, tendo as suas armas sido entregues aos soldados de paz da ONU. Visto haver dúvidas sobre a exactidão desta declaração da UNITA, o partido fez uma segunda e semelhante declaração em Março de 98, após ter recebido pedidos de clarificação.4

Uma grande parte dos indivíduos aquartelados não era constituída por guerrilheiros mas por indivíduos recrutados para perfazer os números estipulados. Os números registados pela ONU indicam que 4.799 destes indivíduos tinham menos de 18 anos de idade, e que 10.728 eram soldados que a guerra tinha deixado deficientes. A UNITA também demorou bastante tempo a aquartelar as forças de polícia por ela nomeadas, apesar da ONU o ter exigido enfaticamente. Em certas áreas, a UNITA parecia ter substituído soldados fardados por pessoas a quem chamava polícias, embora o estabelecimento de forças dessa índole contrariasse as provisões do Protocolo de Lusaka. Os cálculos relativos à dimensão deste exército variam entre 5000 e 15000. O Protocolo de Lusaka continha também uma disposição que previa a incorporação de 4.962 membros da UNITA, incluindo 180 oficiais, na Polícia Nacional, de forma a que esta pudesse funcionar como instituição não partidária. Em Julho de 97 a UNITA forneceu finalmente à ONU os números dos combatentes que formavam a guarda de segurança de Jonas Savimbi e a chamada "polícia das minas", informando que o total de ambas as forças era de 2.963 soldados. Porém o ministro da defesa afirmou que a UNITA ainda tinha cerca de 35.000 guerrilheiros armados sob o seu controle.

O registo e desarmamento do chamado pessoal "residual" da UNITA foi concluído a 22 de Dezembro de 1997. Ao todo tinham-se registado 7.977 soldados da UNITA, tendo-se entregado 7.234 armas e 57 milhões de cartuchos de munições de diferentes calibres.

Paul Hare, enviado especial dos EUA em Angola para acompanhar o processo de paz, escreveu sobre esta situação, explicando que:

Muitos observadores acreditaram que a UNITA manteria uma força militar residual, para garantir a sua segurança contra acções unilaterais do governo ou o colapso do processo de paz. A verdadeira questão dizia respeito às intenções e capacidades das diferentes partes. Seria o propósito da UNITA o de assegurar uma certa capacidade de defesa apenas até que a situação geral política e militar se tornasse mais clara? Ou seria a sua intenção manter uma capacidade militar ofensiva para poder voltar a atacar o governo?

Ninguém sabia as respostas a estas perguntas. Dada a escassez e natureza conflituosa da informação acessível às Nações Unidas e aos observadores, só podíamos especular. Muitas coisas dependiam dos cálculos e decisões de um homem: Jonas Savimbi. A única proposição que parecia credível era que à medida que o processo de paz ia progredindo aos solavancos, e à medida que o poder militar do governo se ia fortalecendo, o espaço de manobra da UNITA ia regularmente diminuindo .5

Mas certas investigações locais feitas pela Human Rights Watch em 1998 provaram que muitos oficiais da ONU nas zonas de aquartelamento sabiam que a UNITA não estava a desmobilizar as suas tropas, e que as mesmas não tinham sido desarmadas.

Danielle Faure era um dos oficiais superiores da ONU na zona de aquartelamento de guerrilheiros da UNITA de Lumége, registando os soldados que se iam desmobilizando e organizando os seus apetrechos e alimentos, o que lhe valeu o título de "Dama de Ferro", concedido pelas tropas da UNITA. Faure disse à Human Rights Watch:

Era óbvio, para quem estava na zona de aquartelamento, que a UNITA andava a exercer um grande controle sobre os seus combatentes. A zona de aquartelamento era uma mistura de verdadeiros soldados da UNITA, civis que tinham sido apanhados e outros azarentos. Até encontrei uns poucos soldados do governo que tinham sido feitos prisioneiros em áreas da UNITA e que a UNITA tinha registado como sendo tropas suas, a fim de atingir a sua cota. A maioria dos soldados da UNITA queria desmobilizar-se e de vez em quando, num momento de privacidade, um deles conseguia ser mais franco nas suas declarações sobre o assunto. Mas a maioria das vezes os oficiais tinham grande controle sobre os soldados rasos, ditando até o sítio para o qual os mesmos pediam para ir quando desmobilizados-que era sempre uma área sob controle da UNITA. Numa ocasião um soldado pediu-me ajuda, num sussurro. Queria ir para casa, para Luanda. Portanto eu arranjei maneira de trocar as listas à última da hora, pouco antes de ele partir, e ele foi para o sítio que tinha pedido, enquanto o Coronel Alaleuha, que não podia acreditar no que estava a acontecer, lhe lançava olhares ferozes.

No que diz respeito a armamentos, tínhamos uma grande mistura-havia até uma Mauser e coisas feitas à mão. Ninguém acreditava que a UNITA estivesse mesmo a entregar as armas.6

A UNITA estava também a acumular as suas armas e a consertá-las. Relatórios provenientes de áreas da UNITA em 1996, 1997 e 1998 mencionam o reabastecimento e manutenção de arsenais. JC trabalhou numa destas bases e ainda hoje é soldado da UNITA. JC explicou:

Embora em 1995 tivéssemos descansado muito, em 1996 e 1997 passámos muito tempo a reabastecermo-nos de equipamentos e a certificarmo-nos da nossa força em situações futuras. Temos instalações para armazenar combustível e armas em muitos locais secretos. Pouca gente sabe onde elas estão. Este ano [1998]estamos a treinar-com o que temos. Estamos à espera de ordens porque sabemos que vem aí uma guerra. Nunca entregámos as nossas melhores armas. Porquê? Porque precisávamos delas, e, se não precisássemos, podíamos vendê-las a comerciantes e ganhar dinheiro. Há mercados para as nossas armas nos Congos e África do Sul.7

Em 1998 a UNITA começou também a fornecer treino militar intensivo a homens e rapazes. Várias fontes de informação disseram à Human Rights Watch que, a partir de 1997 mas de forma cada vez mais intensa em 1998, os indivíduos eram chamados às bases da UNITA, onde iam "dançar."8 Isto queria realmente dizer que iam trabalhar em suporte logístico ou receber treino militar. VL tem vinte e sete anos de idade, e fugiu para a Zâmbia em 1998, com medo que a UNITA o recrutasse à força. VL tinha visto muitos dos seus amigos serem agarrados pela UNITA, que se servia de indivíduos até de catorze anos de idade como carregadores. Em Junho, na área de Cazombo, a UNITA pegara em pessoas e colocara-as em camiões, levando-as consigo. VL explicou:

Até Junho as coisas não estavam muito más. O que a UNITA fez de mais importante foi dizer-nos, em reuniões, que não falássemos neles. Sabíamos que eles tinham armas, até grandes espingardas montadas em rodas e escondidas no mato, mas não queríamos problemas. Portanto, não dissemos a ninguém. De vez em quando a UNITA testava-nos. Éramos obrigados a dançar e cantar nas festas deles, e a carregar os seus abastecimentos até longas distâncias. A UNITA veio às aldeias e apontou os nomes dos jovens, para dançarem e cantarem em festas e, se eles chamassem por algum nome e a pessoa não se apresentasse na dança, ou era castigada ou a família dela sofria. Estas danças são treinos, temos de fazer exercícios com as armas.9

Aquartelamento e Desmobilização Feitos pelo Governo

Em Março de 1997 tornava-se também cada vez mais evidente que a Polícia de Rápida Intervenção do governo (os "Ninjas") estava também a ser novamente destacada, de forma discreta, em vez de ficar nos quartéis. O governo tinha aquartelado 5.450 membros da polícia de reacção rápida em treze locais. Contudo, de Junho a Agosto o governo destacou 424 destes agentes nas províncias de Lunda Sul e Lunda Norte, sem ter informado a ONU, e declarou a sua intenção de interromper o aquartelamento desta polícia em todo o país, reagindo à actuação da UNITA. A pressão exercida pela ONU e pela Troika sobre o governo pôs termo a esta situação, mas a ONU observou pessoal da polícia a realizar treino militar , indício de que o governo poderia estar a tentar preparar a polícia civil para tarefas que não correspondiam aos seus deveres normais. Em 1998 o problema da utilização da polícia para operações de tipo militar voltou a manifestar-se, especialmente em áreas onde a administração estatal tinha acabado de ser restaurada.

O governo desmobilizou realmente algumas das suas forças. Embora tivesse lançado, em Agosto de 1996, um programa para a reintegração social dos soldados desmobilizados, só em fins de 1997 é que o programa entrou em acção. Em 1998 já se tinham registado cerca de 16.000 antigos soldados, apesar de haver problemas tais como atrasos na entrega dos subsídios do governo, confiscações dos documentos de desmobilização dos antigos combatentes feitas por pessoal não autorizado e concentrações de antigos soldados em áreas que estes não tinham seleccionado.

Restrições que o Governo e a UNITA impuseram à ONU

Ambos os partidos, mas especialmente a UNITA, impuseram restrições às actividades de verificação da ONU. Por vezes o governo deixou de providenciar informação sobre os movimentos das suas tropas e equipamento militar, e outras vezes não permitiu que os observadores militares da ONU realizassem inspecções. A 11 e 12 de Julho de 1997, algumas unidades armadas da UNITA detiveram uma equipa de investigação da ONU e o seu helicóptero durante mais de vinte e quatro horas, em Calibuitchi, e a 12 de Julho uma equipe da ONU, tentando verificar informações de que soldados da UNITA andavam a armazenar armas em oito contentores em Chingongo, foi também interceptada. Em Junho de 1997, na província de Moxico, um helicóptero do Programa Mundial de Alimentos foi também arbitrariamente detido por soldados armados da UNITA.

Colocação de Novas Minas Terrestres10

Angola assinou a 4 de Dezembro de 1997 a Convenção sobre a Proibição do Emprego, Acumulação, Produção e Transferência de Minas Anti-Pessoal, e sobre a sua Destruição, mas ainda não a ratificou. O país voltou a entrar em guerra em 1998, e tanto o governo como a UNITA têm estado a usar minas terrestres anti-pessoal. A Campanha Internacional para Banir Minas Terrestres condenou ambas as partes pela utilização de minas AP, mas expressou especial consternação face à indiferença do governo angolano pelos seus compromissos internacionais. Embora o Tratado de Proibição das Minas não tenha entrado em vigor em Angola, o uso de minas por um signatário constitui uma transgressão das suas obrigações internacionais. Segundo o artigo 18 da Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados, " cada estado é obrigado a abster-se de actos que anulem o propósito de um tratado se... tal estado tiver assinado o tratado". É óbvio que a utilização de novas minas terrestres anula o propósito do tratado.

O regresso à utilização de minas desmente também declaradamente a grande retórica de suporte da proibição das minas anti-pessoal até agora apresentada por Angola. O governo manifestou pela primeira vez publicamente o seu apoio a uma proibição total de minas anti-pessoal em 1996, na Convenção sobre Armas Convencionais, no momento em que Parreira, o embaixador angolano anunciou na sessão plenária final que "o governo de Angola suporta uma proibição total de todos os tipos de minas anti-pessoal". Angola desempenhou também um papel activo no Processo de Otava que produziu o tratado. O governo endossou a Declaração de Bruxelas, que era a favor do tratado, e participou nas negociações para o tratado, feitas em Oslo. O governo votou ainda as resoluções da Assembleia Geral da ONU, em 1996 e 1998 a favor da proibição.

Em Otava, durante a cerimónia de assinatura do tratado, o então Vice-Ministro Angolano dos Negócios Estrangeiros , Georges Chikoti, afirmou:

Ser natural de Angola, país vítima das minas, e estar presente, neste dia importante, à cerimónia da assinatura, é não só uma realização lógica para o meu governo como também uma oportunidade para sublinhar as expectativas dos milhares de crianças, homens e mulheres angolanos que são vítimas desta arma mortal, destrutiva e cobarde... Foi principalmente em nome de todas essas pessoas que o meu governo assumiu um forte compromisso no sentido de alcançar uma proibição global das minas terrestres anti-pessoal... Antes de concluir, gostaria de repetir que o governo angolano está pronto para cooperar, como sempre cooperou, com a comunidade internacional e com todas as partes associadas a este tratado que realmente querem que ele seja implementado em todo o território angolano, incluindo as áreas sob controle da UNITA, de forma a alcançarmos uma paz total.11

Estas palavras soam falsas à luz do uso contínuo que o governo tem feito das minas terrestres anti-pessoal. É óbvio que o governo não tem pressa nenhuma em ratificar ou implementar o Tratado de Proibição das Minas. Numa reunião da Cruz Vermelha Britânica, a Human Rights Watch perguntou ao Ministro de Assistência Social, Albino Malungo, quais os planos de Angola para a ratificação do tratado. O ministro avisou que o artigo um não podia ser ratificado, mesmo que o resto do tratado pudesse sê-lo (embora essa "ratificação" parcial não seja válida.)12 Contudo em Novembro de 1998 a Sra. Josefa Coelho da Cruz, da Missão Permanente de Angola na ONU, anunciou que "o facto de Angola não ter ainda ratificado o Tratado de Otava, no qual participou activamente durante as fases preparatórias, não implica indiferença nem uma mudança de atitude em relação a esta praga. O documento está já no parlamento para ratificação."13

Embora o governo angolano tenha assinado o Tratado de Proibição das Minas em Dezembro de 1997, tem desde essa altura sido responsável pela colocação sistemática de novas minas e campos de minas. A Human Rights Watch testemunhou o facto em 1998, e em 1999 recebeu inúmeros relatórios relativos à renovação da guerra de minas no centro e norte de Angola.14 Estes incluíam: (1) testemunhas oculares da preparação de novos campos de minas em Luena, em Agosto de 98, e também declarações de que as autoridades provinciais tinham recusado autorização para operações de limpeza de minas nestas áreas;15 (2) entrevistas com refugiados acabados de chegar à Zâmbia, que disseram que a Polícia Nacional Angolana tinha protegido a sua esquadra, em Cazombo colocando para esse efeito minas terrestres no telhado;16 (3) conversas com soldados angolanos, que admitiram ter colocado minas terrestres, no cumprimento de ordens emitidas em Agosto de 98, durante operações em Piri e no Uíge.17

A 2 de Dezembro de 1998 as organizações Jesuit Refugee Service, Junta Consultiva de Minas, Medico International e Vietnam Veterans of America Foundation publicaram uma carta aberta ao governo e à UNITA, na qual apelavam à cessação da utilização de minas terrestres e informavam que, na província de Moxico, as minas tinham mutilado ou morto sessenta e seis pessoas desde Junho de 98. As organizações escreveram o seguinte: "É proibida a desminagem. É até proibida a marcação de campos de minas! É esta a razão principal pela qual muita gente pisa minas em áreas que dantes eram seguras - tanto civis como militares." A carta também informava que, naquele período, a UNITA andava a colocar minas ao longo das estradas, e que o governo voltara a colocar uma cinta defensiva de minas em redor da cidade.18 Em meados de 99 continuam a colocar-se minas, havendo notícias de que a UNITA tem criado novos campos de minas em redor do Kuito, em estradas e terrenos agrícolas à volta do Huambo, e de que o governo tem feito o mesmo em redor do aeroporto.19

Numa declaração de 28 de Dezembro de 1998, a União Europeia expressou a sua "grande preocupação" com o impasse do processo de paz, que tinha resultado numa "grave deterioração da situação política, militar, social, económica e de segurança em Angola... Neste contexto, a UE lamenta o aumento da actividade de colocação de minas em Angola, país que até agora tem sido um dos focos principais dos esforços de desminagem da UE em África. A UE apela ao governo angolano, como signatário da Convenção de Otava, e principalmente a UNITA, que cessem imediatamente as suas actividades de colocação de minas, e para que se certifiquem da existência de registos válidos, para que estas armas possam ser removidas.20 Em Julho de 99 a UE, em declaração da sua Presidência, apelou para que o governo angolano, como signatário da Convenção de Otava, e principalmente a UNITA, cessem imediatamente as suas actividades de colocação de minas."21 Além disso, em Janeiro de 99 a África do Sul suspendeu a assistência que prestava às operações angolanas de desminagem, devido a novas colocações de minas.22

Em 1999 cada uma das partes tem responsabilizado a outra pela colocação de novas minas: A Human Rights Watch arquivou cerca de vinte relatórios sobre o assunto, citando aqui apenas três exemplos: (1) a 10 de Dezembro de 1998 o Vice-Governador, Simeão Dembo, afirmou que a UNITA tinha colocado 7.000 novas minas em áreas da província de Uíge;23 (2) a UNITA noticiou que dez dos seus guerrilheiros tinham morrido e que vinte e cinco tinham ficado feridos em consequência do rebentamento de minas num campo de minas do governo perto de Kunge (Bié) a 16 de Dezembro de 1998;24 (3), em Janeiro de 1999, soldados do governo mostraram a um jornalista português provas do que eles referiram ser a nova colocação de minas em Vila Nova (Huambo), que os rebeldes da UNITA tinham recomeçado.25

Na primeira reunião dos Estados Signatários do Tratado de Proibição das Minas Terrestres de Otava, realizada de 3 a 7 de Maio em Maputo, a delegação do governo angolano chegou apenas na véspera da data de encerramento, para evitar discutir a questão da reutilização de minas em Angola. O Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros, Toko Serrão, justificou a utilização de minas pelo governo, dizendo: "Continuamos dedicados aos nobres objectivos do tratado. Mas de momento, estamos em guerra."26 O governo argumentou que usa minas para proteger instalações estratégicas tais como barragens e pilones de electricidade, que a localização das minas está registada em mapas, e que mais tarde o exército as retirar sem qualquer encargo para a comunidade internacional ao passo que os rebeldes da UNITA minam terrenos agrícolas e estradas, sem fazerem mapas.27

Segundo a organização Norwegian People's Aid (NPA), a extensão das actividades mais recentes de colocação de minas tem sido "exagerada", e a mutilação de pessoas fugindo da guerra e os acidentes relatados têm-se devido principalmente a minas colocadas no passado. A NPA noticiou também que o governo lhe tem dado alguma informação sobre os locais onde tem colocado novas minas terrestres.28

Bandidos Armados

Houve muitos actos de banditismo cometidos por indivíduos fardados durante o processo de paz de Lusaka. Foi muitas vezes impossível determinar quem eram realmente estas pessoas, e de quem recebiam ordens. Esta situação foi ainda mais dificultada pelo grande negócio de vestuário em segunda mão, que inclui uniformes militares e da polícia.

O clima de segurança permaneceu em estado volátil em muitas partes do país. Em fins de 1996 e 1997, foram atacados dezenas de civis, muitas vezes em emboscadas na estrada, tendo estes sido assassinados por homens armados não identificados. Alguns destes acidentes ocorreram perto de zonas povoadas. Em 1998 os acidentes de banditismo foram particularmente ruins nas províncias de Benguela e Huíla.

A facilidade de acesso às armas contribuiu para um aumento significativo de ataques armados e banditismo, sendo a situação nas províncias de Benguela e Lunda Sul particularmente grave. Segundo o Protocolo de Lusaka, o governo era responsável pelo desarmamento dos civis que armara em 92, altura em que se distribuíram, só em Luanda, até um milhão de metralhadoras AK-47. Os números de armas entregues à polícia em meados do ano desapontaram-nos: 102 armas de equipagem, 2.642 armas de fogo de vários tipos e 21.000 cartuchos de munições. Em Agosto de 97 o governo anunciava a suspensão do desarmamento da população civil até se completar a normalização da administração estatal, insistindo que a população civil deveria ser desarmada simultaneamente nas áreas do governo e nas da UNITA, .

Em fins de 1997 a chamada campanha anti-banditismo do governo teve de ser abandonada nas províncias de Benguela, Huíla e Huambo, pois o governo reconheceu que as suas próprias forças de segurança se encontravam fora de controle.

Em Junho de1996, com a inflação a quase 3000 por cento por ano e uma série de greves feitas por funcionários do governo, este temia graves levantamentos da população em Luanda, iniciando então um policiamento agressivo e utilizando a sua Polícia de Intervenção Rápida. Em fins de Maio de 96 o presidente dos Santos demitiu o primeiro-ministro, Marcolino Moco, assim como o governador do Banco Nacional de Angola, anunciando em Junho uma remodelação significativa do governo, num esforço para reduzir a tensão na cidade. Em Agosto de 96 o governo lançou a "Operação Câncer Dois", atribuindo os seus problemas de controle do crime a imigrantes da África Ocidental e do Líbano, tendo sido detidos e sumariamente expulsos cerca de 2000 cidadãos de países da África Ocidental e do Líbano em Luanda.

Em Luanda era muitas vezes difícil distinguir entre a violência política e economicamente motivada, provocada pelas forças de segurança estatais, e a violência criminosa mais comum. Membros das forças militares e da polícia, tanto fardados como à paisana, cometeram um grande número de crimes violentos, incluindo roubos , roubos violentos de veículos, assaltos e raptos, violações sexuais e homicídios. Noticiou-se também em 1997 e 1998 que a Polícia de Intervenção Rápida do governo - os "Ninjas" - executavam sumariamente quem fosse apanhado em flagrante delito. Têm-se travado também, nos subúrbios, lutas armadas entre a polícia e o exército, ou grupos de bandidos, resultando em números significativos de baixas civis.29

Desenvolvimento do Separatismo

60 por cento do petróleo angolano é proveniente do enclave de Cabinda, território muito rico em petróleo, e também palco de um conflito separatista violento e muitas vezes esquecido. A luta começou em Cabinda em 1975, altura em que facções da Frente para a Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC), treinadas no Zaire, invadiram Cabinda. A FLEC alega estar a lutar pela independência e por uma percentagem maior nos lucros de petróleo gerados no enclave. Estas forças foram destroçadas, em Janeiro de 1976, por um exército composto por forças do governo e cubanos, e desde então tem tido lugar uma guerra separatista a baixo nível. O presidente Mobutu do Zaire continuou a apoiar oficialmente os separatistas até 1978, altura em que assinou um tratado com Angola. Desde então, e até à sua queda, em Maio de 97, Mobutu fingiu não reparar nas actividades da FLEC, permitindo que os seus oficiais recebessem uma percentagem dos pagamentos de resgate e protecção recebidos pelos separatistas no enclave.

O governo tem negociado com os líderes dos grupos separatistas, oferecendo-lhes fundos e postos de poder em troca da paz. Em 1995 o governo reiniciou negociações com as facções armadas FLEC-R (Renovada), FLEC-FAC (Forças Armadas de Cabinda) e FDC (Frente Democrática de Cabinda). Mas em 1997 estas negociações parecem ter falhado, tendo-se declarado tréguas entre a FLEC-R, que estava a decair, e a FLEC-FAC, que então aumentava as suas actividades militares a norte do enclave. Há também uma tradição de rapto em troca de pagamentos de resgate. Em Fevereiro de 1997 um cidadão da Malásia que trabalhava para a companhia malasiana de madeiras Inwangsa SDN, morreu depois de ter sido raptado pela FLEC-FAC. O seu companheiro foi eventualmente posto em liberdade, depois de pago um resgate de U.S.$400 mil. Uma nova série de raptos, em Abril de 1998, incluiu o rapto de dois portugueses e nove angolanos pela FLEC-FAC. Também eles foram libertados no final do ano, em troca de um resgate cujo valor se supõe ter sido de U.S.$500 mil.30 Em 1999 continuam a ocorrer raptos. A 10 de Março de 1999 temia-se que cinco pessoas, entre as quais dois franceses, dois portugueses e um angolano, tivessem sido raptadas por separatistas da FLEC. Estes indivíduos trabalhavam para a Byansol, uma firma francesa de engenharia ligada à indústria de petróleo.31 A FLEC-R libertou o angolano e uma unidade elite do exército angolano libertou os quatro estrangeiros a 7 de Julho. Dez dias antes, a 27 de Junho, António Bembe, líder da FLEC-R, dirigiu-se a uma área remota de Cabinda, depois de lhe terem prometido U.S.$12,5 milhões em pagamento pelos dois portugueses e dois franceses reféns, mas foi-se embora sem que lhe tivessem pago. A FLEC-R tinha ameaçado matar os reféns se o governo angolano tentasse empreender actividades militares para obter a sua libertação.32 A agência de notícias Lusa noticiou que, a 13 de Junho de 1999, perto de Miconge, rebeldes da FLEC abriram fogo contra um veículo de civis, matando quatro pessoas e ferindo seis.33 Também as forças militares angolanas participaram que, em Maio, a FLEC-FAC tinha raptado pelo menos setenta jovens em idade militar nas aldeias da região.34

O governo parece ter decidido já não haver necessidade de negociar com os separatistas, uma vez detidos os líderes das três facções armadas no decorrer das suas actividades militares no Congo-Brazzaville e em Kinshasa. O colapso das negociações resultou na intensificação da luta em Cabinda. Em 1999 a situação da segurança em Cabinda continua muitíssimo volátil, piorando ainda com o retorno de cerca de 3000 naturais de Cabinda ao enclave, tendo estes sido empurrados dos Congos após a FAA ali terem iniciado operações contra os mesmos. Em Janeiro de 1998, uma missão de avaliação do Programa Mundial de Saúde visitou Cabinda, a fim de investigar a possibilidade de ajudar os elementos não combatentes desta repatriação forçada, mas o governador não lhes concedeu autorização para sair da capital da província35. Afonso Justino Waco, um clérigo protestante, foi preso na cidade de Cabinda em Agosto de 1998, tendo sido acusado de difamar o governo durante uma entrevista na rádio. A organização Amnistia Internacional considerava-o prisioneiro de consciência. Waco foi solto cinco dias mais tarde, estando agora a viver na Dinamarca, onde obteve asilo político. Ainda em Cabinda, um padre católico pregou um sermão, em Setembro de 1998, no qual mencionava a FLEC e, como resultado, o delegado provincial do Ministério do Interior escreveu para o bispo de Cabinda, avisando-o de que o Ministério do Interior não assumiria responsabilidades pelo que acontecesse caso o padre não modificasse o seu comportamento. 36

Em Cabinda há grande apoio da população à independência: a maioria dos nacionais boicotou as eleições multipartidárias de 1992, em protesto contra o grande controle que Luanda tem sobre a vida social e política do enclave.

1 Margaret Anstee, Orphan of the Cold War (Londres: Macmillan, 1996).

2 Creative Associates, Angola Quartering Process: Taking Stock, One Year After the Lusaka Accords (Washington DC: Creative Associates Documentation Unit, Dezembro de 1995).

3 Paul Hare, Angola's Last Best Chance for Peace: an insider's account of the peace process (Washington DC: U.S. Institute of Peace Press, 1998), pp.98-105.

4 Voz da Resistência do Galo Negro, Jamba, em português, 1900 gmt, 6 de Março de 1998.

5 Ibid.

6 Entrevista da Human Rights Watch, Paris, 1 de Novembro de 1998.

7 Entrevista da Human Rights Watch, África Austral, Agosto de 1998.

8 Entrevista da Human Rights Watch, África Austral, Julho de 1998.

9 Entrevista da Human Rights Watch, África Austral, Agosto de 1998.

10 Para uma discussão completa sobre as minas terrestres em Angola, consultar Human Rights Watch Arms Project, Still Killing. Landmines in Southern Africa (Nova Iorque: Human Rights Watch, 1997), pp.16-57; International Campaign to Ban Landmines, Landmine Monitor Report 1999: Toward a Mine-Free World (Nova Iorque: Human Rights Watch, 1999), pp.111-132.

11 Declaração feita por Sua Excelência o Vice-Ministro dos Negócios Estrangeiros, Georges Chikoti, Otava, 4 de Dezembro de 1997.

12 Entrevista com Albino Malungo, Londres, Julho de 1998.

13 Declaração da Sra. Josefa da Cruz, Conselheira do Ministro da Missão Permanente da República de Angola nas Nações Unidas, durante a Reunião Plenária das Nações Unidas, relativamente ao Item (42) da Agenda, Assistência no Sector de Limpeza de Minas, 17 de Novembro de 1998.

14 Trabalho local da Human Rights Watch em Angola em Agosto de 1998.

15 Ibid.

16 Trabalho local da Human Rights Watch na Zâmbia em Julho de 1998.

17 Trabalho local da Human Rights Watch em Angola em Agosto de 1998.

18 JRS, MAG, MI, VVAF, "As Minas Terrestres em Moxico Mataram e Mutilaram 66 Pessoas desde Junho: Carta Aberta ao Governo de Angola e à UNITA" Luena, Novembro de 1998.

19 Sunday Times (Londres), 4 de Julho de 1999.

20 União Europeia, "Declaration by the Presidency on behalf of the European Union on Angola," Viena, 28 de Dezembro de 1998. A declaração indicava que "os países da Europa Central e Oriental associados à União Europeia, o país associado de Chipre e os países da EFTA, que são membros da Área Económica Europeia, subscrevem esta declaração."

21 Declaração à Imprensa do Conselho Europeu de Ministros: 10130/99, 22 de Julho de 1999.

22 Rádio Nacional de Angola, Luanda, 19:00 GMT, 11 de Janeiro de 1999.

23 Agência Lusa de Notícias (Macão), 10 de Dezembro de 1998.

24 Comité Permanente da Comissão Permanente da UNITA, Bailundo, 17 de Dezembro de 1998, www.kwacha.com.

25 Jornal de Notícias (Lisboa), 21 de Janeiro de 1999.

26 Inter Press Service, 19 de Maio de 1999

27 Entrevista da Human Rights Watch com o delegado angolano, Maputo, 6 de Maio de 1999.

28 IRIN, "Angola: Relatório Especial da IRIN sobre a crise das minas [19990602]," 2 de Junho de 1999. Norwegian Peoples Aid, `The Current Landmine Situation'. Angola, 1999, Abril de 1999.

29 Para uma discussão sobre a economia e as dificuldades que esta causa à resolução do conflito, consultar: Saferworld, Angola: Conflict Resolution and Peace-building, Saferworld Report, Setembro de 1996, pp.1-52.

30 Agora (Luanda), 27 de Junho de 1998.

31 Associated Press (AP) agência de notícias, 10 de Março de 1999.

32 Público (Lisboa), 22 de Abril de 1999. A FLEC-FAC ameaçou matar os reféns portugueses a 2 de Julho, a não ser que Lisboa encetasse negociações para a sua libertação. Rádio RDP Antena 1, Lisboa, em Português, às 14:00 GMT de 2 de Julho de 1999.

33 Lusa (Macão), 13 de Junho de 1999.

34 Lusa (Macão), 7 de Junho de 1999.

35 Amnistia Internacional, "Angola: Extrajudicial executions and torture in Cabinda", AI Index: Afr 12/02/98, Abril de 1998; Amnistia Internacional, "Extrajudicial executions - fear of further killings", AI Index: Afr 12/07/98, Setembro de 1998.

36 Amnistia Internacional, "Human rights - the gateway to peace," AI Index Afr 12/01/99, Fevereiro de 1999; Agora (Luanda), 29 de Agosto de 1998.

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