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Anexo II

Comentário Geral N.° 7 do CDESC (Observações Gerais)

O Direito a uma Habitação Condigna  (N.°1 do art. 11.°):
desocupações forçadas 20/05/97. (Reunião n.º 16, 1997)*


1. No seu Comentário Geral N.º 4 (1991), o Comité referiu que todas a pessoas devem ter um grau de segurança de posse que lhes garanta protecção jurídica contra as desocupações forçadas, as perseguições e outras ameaças. Concluiu que as desocupações forçadas são prima facie incompatíveis com as disposições do Pacto. Após considerar um significativo número de relatos de desocupações forçadas nos últimos anos, incluindo certos casos em que concluiu que as obrigações dos Estados-Parte estavam a ser violadas, o Comité encontra-se, neste momento, em condições para prestar novos esclarecimentos quanto às implicações de tais práticas no que se refere às obrigações consagradas do Pacto.

2. A comunidade internacional já reconheceu há muito tempo que as desocupações forçadas são uma questão grave. Em 1976, a Conferência das Nações Unidas sobre Povoamentos Humanos assinalou que deveria ser dada especial atenção ao facto de que"a realização de grandes operações de despejo só deve ter lugar quando a conservação e a reabilitação não forem possíveis e tiverem sido tomadas medidas de realojamento ".1 Em 1988, na Estratégia Mundial para a Habitação até ao ano 2000, adoptada pela Assembleia Geral na sua Resolução 43/181, foi reconhecida a "obrigação fundamental [dos Governos] de proteger e melhorar habitações e zonas residenciais, em vez de as danificar ou destruir".2 Na Agenda 21 refere-se que "as pessoas devem ser protegidas por lei contra desocupações injustas das suas casas ou terras".3 Na Agenda Habitat, os Governos comprometeram-se a "proteger todas as pessoas contra, e providenciar protecção jurídica e reparação por, desocupações forçadas que não respeitem a lei, tendo em consideração os direitos humanos; [e] quando as desocupações são inevitáveis, a assegurar, de forma apropriada, que são apresentadas soluções alternativas adequadas ". 4 A Comissão de Direitos Humanos também referiu que "as desocupações forçadas são uma violação flagrante de direitos humanos". 5 Todavia, ainda que estas afirmações sejam importantes, deixam em aberto uma das questões mais importantes: determinar em que circunstâncias são admissíveis as desocupações forçadas e enumerar os tipos de protecção necessários para assegurar o respeito das disposições pertinentes do Pacto.

3. O uso da expressão "desocupações forçadas" é, em alguns aspectos, problemático. Esta expressão procura transmitir um sentido de arbitrariedade e ilegalidade. Todavia, para muitos observadores, a referência a "desocupações forçadas" é uma tautologia, enquanto outros criticam a expressão "desocupações ilegais", por se assumir que o direito aplicável providencia protecção adequada do direito à habitação e respeita o Pacto, o que de modo algum corresponde sempre à realidade. Foi igualmente sugerido que a expressão "desocupações injustas" é ainda mais subjectiva, por não remeter para qualquer enquadramento jurídico. A comunidade internacional, especialmente no contexto da Comissão de Direitos Humanos, optou por se referir a "desocupações forçadas", sobretudo porque todas as alternativas sugeridas têm, também elas, muitos defeitos. A expressão "desocupações forçadas" usada neste comentário geral é definida como a retirada definitiva ou temporária de indivíduos, famílias e/ou comunidades, contra a sua vontade, das casas e/ou da terra que ocupam, sem a disponibilização de formas adequadas de protecção jurídica ou de outro tipo ou sem o acesso a tais formas de protecção. A proibição de "desocupações forçadas", todavia, não se aplica a desocupações levadas a cabo pela força dentro da lei e em conformidade com as disposições dos Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos.

4. A prática de "desocupações forçadas" está generalizada e afecta pessoas quer em países desenvolvidos, quer em países em vias de desenvolvimento. Devido à inter-relação e interdependência que existe entre todos os direitos humanos, as desocupações forçadas violam frequentemente outros direitos humanos. Assim, violando claramente dos direitos consagrados no Pacto, a prática de desocupações forçadas pode também resultar em violações dos direitos civis e políticos, como o direito à vida, o direito à segurança da pessoa, o direito à não ingerência na vida privada, na família e no domicílio e o direito ao usufruto pacífico de bens.

5. Ainda que possa parecer que a prática de desocupações forçadas ocorre principalmente em zonas urbanas densamente povoadas, esta ocorre também no contexto de deslocações forçadas de população, deslocações internas, realojamentos forçados no contexto de um conflito armado, êxodos em massa e fluxos de refugiados. Em todos estes contextos, o direito a uma habitação condigna e a não ser sujeito a desocupação forçada podem ser violados através de uma série de actos ou omissões imputáveis aos Estados Partes. Mesmo em situações em que possa ser necessário impor restrições a estes direitos, é necessária a plena observância do artigo 4.° do Pacto, para que as limitações impostas sejam "estabelecidas por lei, unicamente na medida compatível com a natureza desses direitos [i.e. direitos económicos, sociais e culturais] e exclusivamente com o fim de promover o bem-estar geral numa sociedade democrática".

6. Muitos casos de desocupação forçada estão associados a violência, como as desocupações resultantes de conflitos armados internacionais, distúrbios internos e violência étnica e entre comunidades.

7. Outras formas de desocupação forçada acontecem em nome do desenvolvimento. As desocupações podem ser levadas a cabo no contexto de conflitos sobre direitos fundiários, de projectos de desenvolvimento e infra-estruturas, como a construção de barragens ou outros projectos energéticos de grande escala, de medidas de aquisição de terras associadas à renovação urbana, renovação habitacional, programas de reabilitação de cidades, de desocupação de terra para fins agrícolas, de especulação imobiliária desgovernada, ou da organização de grandes eventos desportivos, como os Jogos Olímpicos.

8. Na sua essência, as obrigações dos Estados Partes do Pacto em relação a desocupações forçadas são baseadas no n.°1 do artigo 11.°, interpretado em conjunto com outras disposições relevantes. Em particular, o n.°1 do artigo 2.° obriga os Estados a utilizarem "todos os meios apropriados" para promover o direito à habitação condigna. Contudo, tendo em conta a natureza da prática de desocupações forçadas, a referência no n.°1 do artigo 2.° a avanços progressivos baseados na disponibilidade de recursos raramente será relevante. O próprio Estado deve abster-se de levar a cabo desocupações forçadas e deve assegurar que a lei é aplicada relativamente aos seus agentes ou a terceiros que o façam (como foi definido acima, no ponto 3). Esta abordagem é ainda reforçada pelo n°1 do artigo 17.° do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, que complementa o direito de não ser sujeito a desocupações forçadas sem protecção adequada. A referida disposição reconhece, inter alia, o direito de protecção do indivíduo contra "intervenções arbitrárias ou ilegais" no seu domicílio. Deve notar-se que a obrigação do Estado de assegurar o respeito por esse direito não está qualificada por considerações sobre a disponibilidade de recursos. 

9. O n.°1 do artigo 2.° do Pacto insta os Estados-Parte a utilizarem "todos os meios apropriados", incluindo a adopção de medidas legislativas, para promover todos os direitos protegidos pelo Pacto. Ainda que o Comité tenha indicado no seu Comentário Geral N.º 3 (1990) que tais medidas podem não ser indispensáveis em relação a todos os direitos, é claro que a legislação contra as desocupações forçadas é uma base essencial para a construção de um sistema de protecção eficaz. Tal legislação deve incluir medidas que (a) providenciem a maior segurança possível da posse aos ocupantes de casas e terras, (b) respeitem o Pacto e (c) sejam destinadas a controlar rigorosamente as circunstâncias sob as quais as desocupações podem ser efectuadas. A legislação também deve aplicar-se a todos os agentes que actuem sob a autoridade do Estado ou que respondam perante o mesmo. Além disso, tendo em conta a tendência crescente do Governo de alguns Estados para reduzir significativamente as suas responsabilidades no sector da habitação, os Estados Partes deverão garantir que as medidas legislativas e de outra natureza são adequadas para prevenir e, sendo caso disso, punir as desocupações forçadas levadas a cabo, sem salvaguardas adequadas, por pessoas ou organismos privados.. Os Estados Partes devem, por isso, rever a legislação e as políticas relevantes a fim de assegurar a sua compatibilidade com as obrigações que resultam do direito à habitação condigna e revogar ou alterar qualquer legislação ou política incompatível com as exigências do Pacto.

10. Mulheres, crianças, jovens, idosos, indígenas, minorias étnicas e outras, e outros indivíduos e grupos vulneráveis, sofrem de forma desproporcionada com a prática de desocupação forçada. As mulheres em todos os grupos são particularmente vulneráveis, devido ao grau de discriminação, legal e de outros tipos, muitas vezes aplicável em relação aos direitos de propriedade (incluindo à propriedade do domicilio) ou a direitos de acesso a propriedade ou alojamento, bem como à sua particular vulnerabilidade a actos de violência e abuso sexual quando ficam desalojados. As disposições em matéria de não discriminação dos artigos 2.º, n.º 2 e 3.º do Pacto impõem uma obrigação adicional aos Governos no sentido de estes garantirem que, quando ocorrerem desocupações, são tomadas medidas adequadas para garantir que as mesmas não implicam qualquer tipo de discriminação.

11. Embora algumas desocupações possam ser justificáveis, como em caso de incumprimento reiterado da obrigação de pagamento da renda ou em caso de danificação da propriedade arrendada sem motivo razoável, cabe às autoridades competentes garantir que elas decorrem em conformidade com uma lei que seja compatível com o Pacto e que existem vias legais de recurso e de reparação à disposição de todos os afectados.

12. A desocupação forçada e a demolição de casas enquanto medida punitiva são também incompatíveis com as normas do Pacto. No mesmo sentido, o Comité toma nota das obrigações consagradas nas Convenções de Genebra de 1949 e nos Protocolos de 1977 referentes à proibição da deslocação de população civil e da destruição da propriedade privada, na medida em que se relacionam com a prática da desocupação forçada.

13. Antes de procederem às desocupações, em particular as que envolvem grandes grupos, os Estados Partes deverão garantir que todas as alternativas viáveis são exploradas em consulta com as pessoas afectadas, com vista a evitar, ou pelo menos a minimizar, a necessidade de utilizar a força. As pessoas afectadas por ordens de despejo devem ter acesso a recursos eficazes ou procedimentos legais. Os Estados Partes devem igualmente assegurar-se de que todos os indivíduos têm direito a uma indemnização adequada por quaisquer bens, móveis ou imóveis, que lhes pertençam e sejam afectado pela ordem de despejo. A este respeito, é pertinente invocar o n.º3 do artigo 2.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, que obriga os Estados Partes a garantirem um "recurso eficaz" a todas as pessoas cujos direitos tenham sido violados, bem como a obrigação das “autoridades competentes” de fazer “cumprir os resultados de qualquer recurso que for reconhecido como justificado”.

14. Nos casos em que a desocupação forçada for considerada justificada, esta deve decorrer no respeito estrito pelas disposições relevantes do direito internacional no domínio dos direitos humanos e nos termos dos princípios gerais da razoabilidade e da proporcionalidade. A este respeito, é particularmente pertinente referir o Comentário Geral n.º 16 do Comité dos Direitos do Homem referente ao artigo 17.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, que refere que um indivíduo só pode ser sujeito a ingerência no seu domicílio "nos casos previstos pela lei". O Comité observou que a lei “deve ser compatívelcom as disposições, as finalidades e os objectivos do Pacto e deve ser sempre razoável nas circunstâncias do caso concreto". O Comité referiu igualmente que "a legislação relevante deve enunciar em detalhe as circunstâncias exactas nas quais essas intervenções podem ser permitidas".

15. Salvaguardas processuais adequada e garantias de um processo justo são aspectos essenciais de todos os direitos humanos mas são particularmente pertinentes em relação a uma questão como as desocupações forçadas, que invoca directamente um grande número de direitos reconhecidos em ambos os Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos. O Comité considera que as salvaguardas processuais a aplicar no domínio das desocupações forçadas incluem: (a) uma oportunidade de consulta genuína aos afectados; (b) uma notificação adequada e razoável de todas as pessoas afectadas antes da data prevista para a desocupação; (c) informação sobre as desocupações planeadas e, se for o caso, sobre a finalidade alternativa prevista para a propriedade ou habitação, que deverá ser participada a todos os afectados em tempo razoável; (d) sobretudo quando estejam envolvidos grupos de pessoas, a presença no momento da desocupação de funcionários públicos ou seus representantes; (e) todas as pessoas que procedem à desocupação devem estar devidamente identificadas; (f) as desocupações não deverão ocorrer sob condições meteorológicas particularmente adversas, nem de noite, excepto se as pessoas afectadas o consentirem; (g) disponibilização de vias legais de recurso e (h) disponibilização, se possível, de apoio judiciário a quem dele necessite a fim de reclamar uma reparação junto dos tribunais.

16. As desocupações não devem levar as pessoas a ficar sem abrigo nem torná-las vulneráveis à violação de outros direitos humanos. Caso os afectados sejam incapazes de prover às suas necessidades, o Governo deverá tomar todas as medidas apropriadas, na máxima medida dos seus recursos disponíveis, para assegurar a disponibilização de uma adequada habitação alternativa, reinstalação ou acesso a terrenos produtivos, conforme o caso.

17. O Comité reconhece que vários projectos de desenvolvimento financiados por agências internacionais no território dos Estados Partes deram origem a desocupações forçadas. Relativamente a esta questão, o Comité chama a atenção para o seu Comentário Geral Nº 2 (1990) que refere, inter alia, que “as agências internacionais devem evitar escrupulosamente qualquer envolvimento em projectos que, por exemplo, … promovam ou reforcem a discriminação contra indivíduos ou grupos, contrariamente às disposições do Pacto, ou que impliquem desocupações ou deslocações de pessoas em larga escala, sem as adequadas medidas de salvaguarda e indemnização. Todos os esforços devem ser envidados, em todas as fases de um projecto de desenvolvimento, a fim de assegurar que os direitos consagrados no Pacto sejam devidamente tidos em conta.”6

18. Certas instituições como o Banco Mundial e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) adoptaram directrizes em matéria de realojamento e reinstalação com o intuito de minimizar a dimensão e o sofrimento humano associado às desocupações forçadas. É comum tais práticas estarem associadas a projectos de desenvolvimento de grandes dimensões tais como a construção de barragens ou outros grandes projectos energéticos. É essencial que as próprias agências e os Estados Partes do Pacto respeitem plenamente estas directrizes, na medida em que elas reflectem as obrigações consagradas no Pacto. A este propósito, o Comité relembra a Declaração e o Programa de Acção de Viena quando refere que “o desenvolvimento facilita o gozo de todos os direitos humanos, mas a falta de desenvolvimento não pode ser invocada para justificar a limitação dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos” (Parte I, ponto 10).

19. De acordo com as directrizes adoptadas pelo Comité sobre a forma e conteúdo dos relatórios a apresentar pelos Estados Partes, solicita-se que estes forneçam vários tipos de informação directamente relacionada com a prática das desocupações forçadas, o que inclui informação sobre (a) o “número de pessoas despejadas nos últimos cinco anos e o número de pessoas que não beneficiam actualmente de protecção jurídica contra as desocupações arbitrárias ou qualquer outra forma de desocupação”, (b) “legislação relativa aos direitos dos locatários à segurança da posse, à protecção contra os despejos,” e (c) “legislação que proíbe todas as formas de despejo”.7

20. Pretende-se igualmente obter informação sobres “medidas tomadas durante, inter alia, programas de renovação urbana, projectos de requalificação, reconversão de áreas, preparação de eventos internacionais (Jogos Olímpicos e outras competições desportivas, exposições, conferências, etc.), campanhas de “embelezamento das cidades”, etc., que garantem a protecção contra as desocupações ou o realojamento baseado no consentimento mútuo, de qualquer pessoa que habite nos locais afectados ou nas suas imediações”.8 Contudo, poucos Estados Partes incluíram as informações exigidas nos seus relatórios apresentados ao Comité. Por isso, o Comité pretende salientar a importância que atribui à recepção deste tipo de informação.

21. Alguns Estados Partes indicaram que este tipo de informação não está disponível. O Comité recorda que uma monitorização eficaz do direito a um alojamento suficiente, quer pelo Governo em questão, quer pelo Comité, não é possível na ausência de dados adequados e solicita a todos os Estados Partes que garantam a recolha dos dados necessários e a sua inclusão nos relatórios apresentados ao abrigo do Pacto.


Notas

* Ver documento E/1998/22, anexo IV.

1 Relatório sobre o Habitat: Conferência das Nações Unidas sobre Povoamentos Humanos, Vancouver, 31 Maio - 11 Junho 1976 (A/CONF.70/15), cap.º II, recomendação B.8, parág. C (ii).

2 Relatório da Comissão de Povoamentos Humanos sobre os trabalhos da sua décima primeira sessão, Adenda (A/43/8/Add.1), ponto 13.

3 Relatório da Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 3-14 Junho 1992, Vol. I (A/CONF.151/26/Rev.1 (vol. I), anexo II, Agenda 21, cap.º 7.9 (b).

4 Relatório da Conferência das Nações Unidas sobre Povoamentos (Habitat II) (A/CONF.165/14), anexo II, Agenda Habitat, ponto 40 (n).

5 Resolução da Comissão de Direitos Humanos 1993/77, ponto 1.

6 E/1990/23, anexo III, ponto 6 e 8 (d).

7 E/C.12/1999/8, anexo IV.

8 Ibid.