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Sumário

O Estado respeita e protege a propriedade das pessoas… e a propriedade e a posse da terra pelos camponeses, sem prejuízo da possibilidade de expropriação por utilidade pública, nos termos da lei.
—Lei Constitucional de Angola, artigo 12.º, n.º 4

Eles chegaram e não conversaram com ninguém…E partiram as casas…Não avisaram ninguém…Não deu tempo de nada…não deu tempo de tirar nada. Partiram a minha cama, fogão, pisaram tudo. Estava a tirar as coisas e meteram-me no carro da polícia.
—C.A., pessoa de 35 anos despejada do bairro de Cambamba II

Em Luanda, capital de Angola, o Governo despejou coercivamente e de forma violenta milhares de pessoas que viviam em áreas habitacionais informais com pouco ou nenhum aviso prévio. Em violação das próprias leis de Angola e das suas obrigações internacionais de direitos humanos, o Governo destruiu casas, culturas e bens pessoais dos moradores sem um processo justo e raramente concedeu indemnização.

Os despejos (desocupações forçadas) ocorreram numa cidade onde a maioria da população vive em áreas habitacionais informais com falta de clareza quanto à posse e propriedade da terra, e consequente insegurança dessa posse. As vítimas são angolanos pobres e vulneráveis. Nelas se incluem mulheres que sustentam sozinhas as suas famílias, idosos e crianças. Muitos fugiram para Luanda durante a longa guerra civil que assolou o país em busca de abrigo e protecção, abandonando as zonas de conflito ou áreas agrícolas destruídas pelos combates e pela insegurança. Os despejos em larga escala perpetrados pelo Governo resultaram em novas deslocações e deixaram muitas pessoas sem abrigo e na miséria, sem qualquer acesso a uma via legal de recurso.

O presente relatório centra-se em 18 despejos em massa levados a cabo pelo Governo entre 2002 e 2006 e documentados pela Human Rights Watch e pela organização angolana SOS Habitat. Foram também incluídos neste relatório outros despejos em pequena escala ocorridos nas mesmas áreas e durante o mesmo período. No total, mais de 3,000 casas foram destruídas e muitos terrenos cultivados de pequena dimensão foram confiscados, afectando cerca de 20,000 pessoas.

Ao documentar desocupações forçadas ocorridas entre 2002 e 2006, este relatório comprova que tais desocupações não constituíram acontecimentos esporádicos ou isolados em Luanda. As desocupações forçadas representam um padrão de conduta abusiva por parte do Governo angolano que não se alterou significativamente nos últimos anos nem nunca foi plenamente solucionado. Apesar dos apelos das organizações nacionais e internacionais e das vítimas, o Governo nunca tomou as medidas necessárias para acabar com as desocupações forçadas nem assegurou a responsabilização pelos abusos associados a estas desocupações e uma indemnização adequada à vasta maioria das pessoas despejadas, como é obrigado a fazer de acordo com a legislação angolana e o direito internacional.

A Human Rights Watch não tem conhecimento da ocorrência de desocupações forçadas em larga escala em Luanda desde a finalização do trabalho de campo para este relatório. Contudo, os moradores das vastas áreas informais da cidade continuam extremamente vulneráveis tanto a novos despejos como à repetição dos despejos, devido ao facto de o Governo se ter abstido, até ao momento, de abordar com eficácia a questão da segurança da posse da terra.

Vítimas de despejos investigados para este relatório e colaboradores da SOS Habitat que testemunharam esses despejos, disseram à Human Rights Watch que polícias fardados e funcionários do governo local recorreram à intimidação, à violência e a uma utilização excessiva da força na execução das operações de despejo. Polícias e funcionários públicos tentaram frequentemente impedir à força que os moradores salvassem os seus bens pessoais da demolição. Pessoas despejadas descreveram a forma como agentes policiais, por vezes acompanhados por membros de empresas de segurança privada, utilizaram armas de fogo para intimidar os moradores, disparando para o ar ou para o chão. Quatro moradores, incluindo uma criança de cinco anos, foram alvejados ou atingidos por balas perdidas. Muitos outros foram espancados com bastões e coronhas de armas.

Vários moradores dos bairros onde ocorreram os despejos foram arbitrariamente detidos pela polícia, geralmente por períodos curtos. Permaneceram detidos durante os despejos e depois dos mesmos, por vezes durante dias, sem serem informados do motivo da sua captura ou das acusações formais apresentadas contra si. Muitos dos detidos disseram à Human Rights Watch terem sido fisicamente maltratados enquanto se encontravam à guarda da polícia. Activistas da SOS Habitat presentes durante os despejos documentados neste relatório foram perseguidos e por vezes arbitrariamente detidos quando tentavam obter informação sobre o despejo ou simplesmente tentavam explicar os direitos das pessoas despejadas aos funcionários públicos.

Na maioria das desocupações forçadas pesquisadas pela Human Rights Watch e SOS Habitat, o Governo angolano deu pouca ou nenhuma informação às vítimas sobre o objectivo do despejo e a utilização planeada para os terrenos que ocupavam. O Governo também não discutiu com as comunidades afectadas possíveis soluções alternativas para a sua desocupação forçada. A maioria das pessoas despejadas entrevistadas pela Human Rights Watch não foi formalmente notificada do seu despejo. Elas descreveram como foram apanhadas de surpresa pela súbita chegada da polícia, dos bulldozers e dos camiões para os despejar das suas terras e dos seus lares.

Nas poucas situações em que o Governo procedeu à notificação prévia dos despejos, não concedeu aos moradores tempo suficiente antes da desocupação e não incluiu informação exacta sobre a autoridade que emitiu a ordem de despejo, os seus fundamentos jurídicos e o órgão competente para apreciar a impugnação de tais decisões. Na maioria dos despejos, o Governo angolano não apurou se os moradores tinham um título formal ou outra pretensão jurídica relativamente aos terrenos que ocupavam, antes de os despejar.

Para além disso, as autoridades angolanas levaram a cabo estas desocupações forçadas sem terem posto em prática um procedimento adequado e coerente para determinar a forma ou o montante da indemnização a conceder a cada vítima de despejo. A indemnização foi muitas vezes oferecida aos moradores depois dos seus bens e pertences terem sido destruídos, sem possibilidade de negociar o montante em questão. O Governo angolano forneceu informação geral sobre os locais de realojamento e reinstalação por si estabelecidos para as famílias de baixos rendimentos em Luanda. Mas a informação do Governo não incluiu detalhes precisos sobre o número total de pessoas que receberam parcelas de terreno ou habitações a título de indemnização depois de terem sido despejadas das áreas pesquisadas pela Human Rights Watch e SOS Habitat.

Muitas vítimas de despejo realojadas pelo Governo não foram consultadas sobre a sua mudança para um sítio em concreto e foram frequentemente reinstaladas nestes novos locais contra a sua vontade. As áreas de realojamento eram demasiado distantes dos locais de residência originais e dos locais de emprego das pessoas despejadas. Os novos locais também não estavam adequadamente dotados de serviços, como transportes, centros de saúde e escolas, quando as vítimas de despejo chegaram. As mulheres e crianças foram particularmente afectadas pela perda de actividades geradoras de rendimentos nos mercados locais e pela perturbação do acesso à educação.

Até este momento, o Governo de Angola não se empenhou plenamente em solucionar as violações dos direitos dos angolanos documentadas no presente relatório. Embora o número de vítimas de despejo actualmente necessitadas de assistência humanitária urgente não seja alarmante, tal não se deve ao facto de o Governo estar a agir em conformidade com a lei e proporcionar às pessoas despejadas a necessária assistência. Pelo contrário, não tendo recebido tal assistência do Governo, as vítimas de despejo foram obrigadas a encontrar as suas próprias soluções, muitas vezes inadequadas, para continuar as suas vidas e reconstruir os seus abrigos noutros locais.

Para além disso, a conduta do Governo ao levar a cabo as operações de despejo violou claramente as suas obrigações ao abrigo do direito internacional e da legislação angolana. Angola é Parte no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC). O artigo 11.º deste Pacto estabelece a obrigação de proteger o direito a uma habitação condigna, o que inclui a protecção contra as desocupações forçadas. O direito internacional reconhece aos Governos o direito de expropriar terras de sujeitos privados mesmo sem o seu consentimento ou de obrigar os moradores a desocupar os imóveis. Porém, estas medidas só podem ser tomadas nas circunstâncias mais excepcionais, com uma clara definição do interesse público subjacente e a adopção de procedimentos adequados.

Para que um despejo coercivo respeite as normas internacionais, os Governos têm de assegurar a exploração de alternativas viáveis e de garantir o direito à indemnização das pessoas pelos bens móveis e imóveis afectados. Têm também o dever de aplicar salvaguardas processuais mínimas que incluam uma consulta genuína às pessoas afectadas; um aviso prévio adequado e razoável da data do despejo; informação atempada sobre os despejos propostos incluindo, se possível, o fim alternativo para o qual se pretende utilizar o terreno; uma devida identificação do pessoal que leva a cabo os despejos; e a disponibilização de vias legais de recurso para as pessoas afectadas.

As desocupações forçadas documentadas neste relatório e, em muitos casos, a conduta dos agentes policiais e funcionários públicos que as executaram, implicaram também violações dos direitos consagrados no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP), do qual Angola é Parte. Entre os direitos violados, contam-se o direito da pessoa de não ser sujeita a ingerências arbitrárias ou ilegais na sua vida privada e no seu domicílio (artigo 17.º) e o direito à liberdade e à segurança pessoal (artigo 9.º).

A Constituição angolana e vários diplomas legislativos também conferem um enquadramento jurídico protector. O artigo 12.º da Lei Constitucional de Angola protege a posse da terra. As leis e regulamentos angolanos em matéria de gestão de terras e planeamento urbano, bem como as normas gerais de procedimento administrativo, consagram disposições que reflectem em larga medida as exigências de informação, notificação e indemnização impostas pelo direito internacional. Em geral, o Governo não cumpriu tais disposições legislativas.

Nos despejos analisados pela Human Rights Watch e SOS Habitat, a insegurança da posse da terra, resultante da esmagadora informalidade da posse das habitações e terrenos, tornou muitos angolanos pobres particularmente vulneráveis a desocupações forçadas. Uma posse segura da terra confere aos moradores claros direitos jurídicos face ao Governo ou às entidades privadas com pretensões concorrentes sobre os terrenos. O Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais da ONU declarou que, independentemente do tipo de posse, todas as pessoas devem beneficiar de um certo grau de segurança da posse que lhes garanta protecção jurídica contra as desocupações forçadas, as perseguições e outras ameaças.

A insegurança da posse nos despejos documentados neste relatório resultou, em particular, da inadequação da legislação angolana em matéria de gestão de terras e planeamento urbano, bem como da ineficácia dos procedimentos de registo predial. O enquadramento jurídico dos direitos reais em Angola que tem estado em vigor desde a independência é complexo e confuso. Os terrenos urbanos permaneceram largamente sem regulação até 2004. O sistema de registo predial esteve também essencialmente paralisado durante os 27 anos de guerra. As anteriores tentativas do Governo angolano para solucionar este problema não tiveram êxito devido ao conflito, assim como à escassez de recursos humanos, financeiros e materiais.

O actual Ministro do Urbanismo e Ambiente de Angola reconheceu que a informalidade da posse da terra é grande em Luanda. As políticas deste Ministério parecem basear-se numa preocupação genuína com o bem-estar dos residentes informais da cidade e ter como objectivo encontrar uma solução duradoura para este problema. Porém, tais políticas estão em total contraste com a prática concreta revelada nos despejos documentados no presente relatório.

Em 2004, o Governo adoptou uma nova Lei de Terras. Esta Lei constitui um passo importante no sentido da regulação do uso dos terrenos urbanos e consagra algumas salvaguardas para as pessoas em risco de despejo. Porém, a Lei não teve qualquer consequência prática imediata uma vez que os necessários regulamentos de aplicação não foram adoptados e os organismos públicos continuaram a despejar coercivamente angolanos em violação das disposições da Lei, mesmo depois de esta ter sido promulgada.

A Lei de Terras de 2004 também fixa um prazo de três anos para a regularização da posse informal da terra, mas não estabelece de que forma o Governo irá efectivamente processar os pedidos de regularização. Nos termos da Lei, cada cidadão tem o ónus de requerer a regularização. Caso, no termo do prazo de três anos, as pessoas não tenham apresentado um pedido de regularização às autoridades, o Governo está autorizado a apropriar-se dos terrenos que ocupam, inclusivamente mediante o recurso à força – independentemente de ter ou não tomado as medidas necessárias para informar os cidadãos acerca da necessidade e do processo de regularização e para garantir uma tramitação atempada dos pedidos. A menos que o Governo tome deliberadamente medidas para aprovar os regulamentos em falta e dê prioridade à afectação de recursos que garantam um registo predial eficaz para todas as pessoas que requerem a regularização, a insegurança da posse continuará a prevalecer em Luanda e os pobres da cidade continuarão vulneráveis a desocupações forçadas como as descritas no presente relatório.

Pela sua parte, o Governo angolano limitou-se, por vezes, a negar ter levado a cabo desocupações forçadas. Na maioria das vezes, justificou os despejos alegando necessitar dos terrenos para o desenvolvimento de projectos de interesse público ou dizendo estar a retirar alegados ocupantes ilegais de terrenos públicos. Muitas das vítimas de despejo entrevistadas para este relatório, contudo, viviam nesses terrenos há anos, em alguns casos há várias gerações. Outras que se instalaram mais recentemente fizeram-no de acordo com o costume, com o consentimento dos anteriores moradores e camponeses. Embora o Governo alegue estar a tentar melhorar as condições de vida em Luanda, está, na verdade, a piorar tais condições para as pessoas economicamente mais vulneráveis, despejando milhares delas e privando-as da necessária assistência para as ajudar a reinstalarem-se noutros locais.

A Human Rights Watch apela ao Governo de Angola para que investigue as alegações de utilização excessiva da força e outros abusos de direitos humanos associados aos despejos descritos no presente relatório e indemnize as vítimas de desocupações forçadas anteriores. O Governo deve também consultar genuinamente as comunidades e assegurar um processo equitativo nas situações em que o despejo involuntário de comunidades foi suspenso devido a queixas dos moradores e sempre que planeie desenvolver projectos de interesse público no futuro. Para prevenir novas desocupações forçadas em violação das normas e princípios internacionais de direitos humanos, é fundamental que o Governo tome medidas determinadas e urgentes para combater a insegurança da posse em Luanda.


Desocupações Forçadas em Luanda Documentadas pela Human Rights Watch e SOS Habitat

O que sucedeu? Funcionários públicos e agentes policiais forçaram angolanos pobres, de forma violenta e ilegal, a desocupar as suas casas ou terrenos cultivados ou ameaçaram que o fariam.

Quantas pessoas foram afectadas? Estima-se que entre 20,000 a 30,000 pessoas.*

Quando? Entre 2002 e 2006 (período de tempo abrangido pelos despejos analisados no presente relatório).

Onde? Em Luanda, nos bairros de Cambamba I, Cambamba II, Banga We, 28 de Agosto, Maria Eugénia Neto, Wengi Maka, Soba Kopassa, Bairro da Cidadania, Munlevos, Mbondo Chapé (Fubu), Onga, Rio Seco, Talatona, Gaiolas e Bem-Vindo (muncípios de Kilamba Kiaxi, Viana, Samba e Cacuaco). Mbondo Chapé, Rio Seco, Talatona e Bem-Vindo são áreas sobretudo agrícolas onde, até este momento, se registaram poucos despejos, mas que permanecem em risco – as autoridades locais suspenderam os planos de despejo devido a queixas dos moradores, mas anunciaram que pretendem reclamar as terras ocupadas pelos camponeses.

Como são os bairros de onde as pessoas foram despejadas?

Os bairros informais e as áreas agrícolas dos arredores de Luanda, em geral, não são urbanizados e o Estado não lhes assegura os serviços básicos adequados. Nas áreas onde ocorreram os despejos, as casas estavam construídas com chapa ou blocos de cimento. A maior parte dos terrenos agrícolas estava cultivada. As comunidades afectadas incluíam camponeses estabelecidos na terra há muitos anos, famílias com baixos rendimentos da cidade de Luanda, que se fixaram mais recentemente, e pessoas deslocadas que abandonaram as áreas rurais devido à guerra e a más condições de vida. As habitações e terrenos eram geralmente adquiridos através de transacções informais ou de ocupação, pelo que os títulos de posse formais constituem uma excepção.

O Governo angolano realojou as pessoas despejadas? O Governo reinstalou algumas das pessoas despejadas em áreas de realojamento estabelecidas em Mbonde Chapé (Fubu), Panguila e Sapu, mas desconhece-se o número exacto de vítimas de desocupação forçada realojadas pelo Governo nestas ou em outras áreas. O Governo não seguiu procedimentos adequados para o realojamento e a indemnização. Quando as pessoas despejadas chegaram, as áreas de realojamento não dispunham de saneamento básico apropriado ou dos adequados serviços de saúde, educação ou transporte.

Porque foram as pessoas despejadas pelo Governo? O Governo declara que levou a cabo os despejos a fim de facilitar projectos de desenvolvimento e “embelezamento” de interesse público.

* 20,000 segundo estimativas das pessoas despejadas, de acordo com as quais cada habitação aloja cinco a sete pessoas; 30,000 com base em dados do Governo, segundo os quais cada habitação aloja dez pessoas.