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Brasil: Comissão da Verdade Expõe Atrocidades da Ditadura

Relatório Identifica Autores dos Abusos e Recomenda Responsabilização

(São Paulo) – A divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade é um grande passo rumo à reparação das atrocidades cometidas durante a ditadura militar do país (1964 - 1985), declarou hoje a Human Rights Watch.

O relatório final identifica 377 indivíduos, dos quais quase 200 ainda estão vivos, como responsáveis por violações dos direitos humanos consideradas pelo documento como crimes contra a humanidade, incluindo tortura, execuções e desaparecimentos forçados. A Comissão considerou que os abusos constituíram "uma ação generalizada e sistemática", conduzida como parte de uma "política de Estado" concebida e implementada a partir de decisões emanadas do mais alto escalão do governo.

"A Comissão traz uma fundamental contribuição ao oferecer um relato categórico e por muito tempo aguardado sobre os mais graves crimes cometidos durante a ditadura", disse Maria Laura Canineu, Diretora da Human Rights Watch no Brasil. "De igual importância está a indicação pela Comissão do caminho para uma próxima e crucial medida para o Brasil: garantir que aqueles que cometeram atrocidades sejam levados à justiça".

A Comissão da Verdade identificou 434 pessoas mortas ou desaparecidas durante o regime ditatorial, um aumento em relação ao número oficial anterior, que registrava 362 pessoas. O novo número inclui 192 pessoas mortas, 210 desaparecidas e 33 que desapareceram e cujos corpos foram encontrados mais tarde. A Comissão apenas incluiu casos cuja comprovação foi possível em função do trabalho realizado e concluiu que o número real poderia ser ainda maior se tivesse obtido acesso a documentos produzidos pelas Forças Armadas, oficialmente dados como destruídos.

O relatório contém relatos dramáticos do sofrimento de centenas de brasileiros que foram detidos e torturados por membros das Forças Armadas e da polícia, muitos dos quais jamais foram encontrados.

O documento descreve, por exemplo, o caso de Joaquim Alencar de Seixas, líder de um grupo armado, o Movimento Revolucionário Tiradentes, preso juntamente com sua esposa e três de seus filhos. Joaquim e seu filho de 16 anos foram torturados lado a lado em uma instalação militar em São Paulo, com choques elétricos aplicados a suas genitais e outros órgãos e submetidos ao abominável "pau de arara", uma técnica de tortura altamente dolorosa na qual a vítima é suspensa em uma viga horizontal. O relatório aponta que Joaquim deve ter morrido durante uma das sessões de tortura. As autoridades disseram à época que ele foi morto durante uma tentativa de fuga.

De acordo com a Comissão, os registros oficiais com frequência acobertavam execuções, alegando que as mortes foram resultados de suicídios, acidentes ou mortes durante tiroteios.

O documento também relata casos de estupro; tortura de mulheres grávidas, algumas das quais sofreram aborto; uso de animais, como baratas, introduzidos nos corpos das vítimas; e tortura psicológica, como ameaças contra familiares.

A ditadura não perseguiu apenas membros de grupos armados, mas também críticos, acadêmicos, religiosos, sindicalistas, trabalhadores rurais, militares que defendiam o retorno à democracia e membros de minorias e grupos vulneráveis.

Além disso, o relatório documenta o sofrimento de povos indígenas, muitos dos quais foram removidos de suas terras pelo Estado para a implantação de projetos de infraestrutura, mineração ou agricultura. Como resultado, comunidades inteiras foram dizimadas. O governo também demitiu diplomatas do Ministério das Relações Exteriores, sob a acusação de serem homossexuais, e a polícia de São Paulo prendeu centenas de travestis por conta de sua orientação sexual.

A responsabilização criminal dos culpados pelas atrocidades tem sido impedida no Brasil pela interpretação judicial de uma lei de 1979 que prevê a anistia para "crimes políticos". A lei da anistia resultou na libertação de centenas de presos políticos e permitiu o retorno dos exilados, de acordo com o relatório. As cortes brasileiras interpretaram posteriormente que a anistia se estende às violações dos direitos humanos cometidas por agentes estatais durante a ditadura.

Em novembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou, no caso Gomes-Lund et al. (Guerrilha do Araguaia) v. Brazil, que a lei da anistia não deve impedir a responsabilização criminal daqueles que cometeram graves violações contra os direitos humanos durante o regime militar, instruindo o Brasil a abrir investigações sobre o desaparecimento de 62 pessoas e processar criminalmente seus responsáveis. Em outubro de 2014, a Corte Interamericana considerou que o Brasil não cumpriu sua determinação de 2010.

Um novo avanço significativo ocorreu em 10 de setembro de 2014, quando a 2ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no Rio de Janeiro, permitiu que cinco membros das Forças Armadas reformados fossem processados pela morte de Rubens Paiva, um ex-parlamentar que morreu em uma instalação militar no Rio de Janeiro, em 1971. O Ministério Público argumentou que a lei da anistia não se aplica a crimes contra a humanidade ou cujo efeito ainda permanece no tempo, como os desaparecimentos forçados. Foi a primeira vez que um tribunal superior abriu caminho para a abertura de um processo criminal em um caso do período militar.

Em 1º de dezembro de 2014, a 5ª Turma do Tribunal Federal Regional da 3ª Região, em São Paulo, permitiu a abertura do processo contra o coronel aposentado Carlos Alberto Brilhante Ustra e contra o ex-policial Alcides Singillo, por suposto envolvimento no desaparecimento forçado de Hironaki Torigoe, de 27 anos, torturado e morto em uma instalação militar em São Paulo, em 1972, de acordo com a Comissão da Verdade. Em janeiro deste ano, a primeira instância da Justiça Federal de São Paulo havia julgado que o crime havia prescrito. Porém o tribunal superior reverteu este julgamento sob a justificativa de que o crime permanece no tempo em que o paradeiro da vítima for desconhecido.

A Comissão Nacional da Verdade recomendou que as Forças Armadas admitam sua responsabilidade institucional pela participação de militares em abusos cometidos durante a ditadura e pelo uso das instalações do Exército, da Marinha e da Aeronáutica para levá-los a cabo. A Comissão também recomendou que seja determinada, pelos órgãos competentes, a responsabilização dos autores dessas graves violações dos direitos humanos.

Além disso, a Comissão propôs a criação de um órgão para monitorar a adoção de suas recomendações quanto aos abusos cometidos no passado, bem como para examinar e promover medidas para acabar com a prática atual, pelas forças de segurança, da tortura e de outros abusos documentados no relatório.

A Comissão Nacional da Verdade publicou uma resolução, três meses após sua criação em maio de 2012, definindo como seu objetivo investigar as graves violações dos direitos humanos cometidos por "agentes públicos" e não examinar os crimes cometidos por agentes não-estatais.

"Este relatório histórico é o resultado de dois anos e sete meses de trabalho. Entretanto, não deve ser considerado como o final do processo", disse Maria Laura Canineu. "Os membros do Ministério Público devem usar os fatos trazidos à luz pela Comissão da Verdade para redobrar os esforços voltados à responsabilização dos autores desses graves crimes".

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