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Em uma simples canetada, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, presidida por Diego García-Sayán, acaba de colocar em xeque a liberdade de expressão e o respeito às garantias penais fundamentais. Numa região onde a fragilidade institucional é a regra, este seríssimo retrocesso viola não só direitos e liberdades fundamentais, bem como dificulta a luta contra a corrupção.

Numa decisão judicial recente, aprovada por pequena maioria, a Corte reverteu precedentes importantes defendidos por muitos anos.[1] Os preciosos votos salvos de três dos setes juízes realçam um compromisso pela proteção da liberdade de expressão que felizmente ainda existe na Corte.

O lamentável fracasso aconteceu no caso Mémoli X Argentina, referente à condenação penal de um jornalista que denunciou evidentes desvios de bens públicos. Em 1990, Pablo Mémoli, diretor de um jornal de uma pequena cidade da província de Buenos Aires, denunciou que uma empresa privada havia vendido bens públicos pertencentes ao município. A Justiça interveio por conta da denúncia e os interessados descobriram que os contratos de compra e venda eram inválidos, recuperando assim seu dinheiro. Surpreendentemente, o juiz que invalidou os contratos decidiu que os diretores da empresa desconheciam o fato de que não poderiam vender a propriedade pública que não lhes pertence.

Curiosamente, o único condenado por esses atos foi quem os denunciou. Mémoli foi condenado a cinco meses de reclusão por difamação. Seu pai, que era membro da empresa e havia denunciado os fatos às autoridades competentes, foi condenado a um mês de reclusão por difamação. Como se não bastasse, após a condenação penal, um processo civil foi instaurado contra os Mémolis, que têm seus bens apreendidos por mais de 16 anos.

Em 2008, a Corte Interamericana determinou (caso Kimel X Argentina) que o crime de difamação naquele país era incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos. Para a Corte, a definição do crime era ambígua e violava o princípio da legalidade, o qual exige que as condutas ilícitas sejam tipificadas em termos precisos. Por conta desta decisão, em 2009 a Argentina descriminalizou a difamação e a calúnia quando as expressões ofensivas se referirem a assuntos de interesse público.

Considerando que os Mémoli foram condenados por um crime hoje inexistente na Argentina, a Corte deveria, ao tomar ciência do caso, aplicar o princípio que pressupõe a incidência da lei mais favorável ao acusado de cometer um crime. Sem dar nenhuma explicação razoável, na contramão da própria jurisprudência, a Corte subverte e valida a condenação penal e todos os seus efeitos.

O direito à liberdade de expressão, aspecto central do caso, foi redefinido pela Corte em termos que parecem frágeisse comparados com decisões passadas. Por exemplo, para a maioria dos juízes, a má gestão dos bens públicos não representa questão de interesse público, ou, quiçá ainda pior, agora o crime de opinião conta com a benção do mais alto tribunal de direitos humanos do continente. Os quatro juízes furtaram-se a questionar a veracidade das denúncias dos Mémoli, o que, conforme sua própriajurisprudência, é o fundamento para verificar se expressões são “ofensivas”. Para a Corte, não há que se falar em violação da liberdade de expressão nacondenação penal e o jornalista não merece proteção.

Catalina Botero, Relatora para a Liberdade de Expressão da OEA, argumentou em audiência perante a Corte que a condenação dos Mémoli "gerou inibição e insegurança jurídica", sustentando também que isso afeta "centenas de jornalistas regionais, os quais são os mais indefesos".[2]

Felizmente, quiçá por não ser objeto deste processo, permanecem válidas as jurisprudências Interamericanas que protegem manifestações críticas sobre funcionários públicos e a outra, sobre a descriminalização do desacato.

É lamentável que a Corte García-Sayán tenha ignorado sumariamente a jurisprudência construída ante o sacrifício de muitos que se arriscaram para conter os abusos das autoridades e daqueles que gerenciam assuntos de interesse público. A Corte privou este continente, onde é costumeiro que juízes sejam intimidados por quem pode fazê-lo, de uma ferramenta chave na luta contra o abuso de poder e a corrupção.

 

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