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O Brasil atrás das grades

Prefácio (continuação)
        NORMAS INTERNACIONAIS

Metodologia e Questões de Acesso

PREFÁCIO

RESUMO

SISTEMA PENITENCIÁRIO

SUPERLOTAÇÃO

DELEGACIAS

CONDIÇÕES FÍSICAS

ASSISTÊNCIA

ABUSOS ENTRE PRESOS

ABUSOS POR POLICIAIS

CONTATO

TRABALHO

DETENTAS

AGRADECIMENTOS

 

Este relatório faz parte de uma série de relatórios publicados pela Human Rights Watch sobre as condições carcerárias por todo o mundo. Além do Brasil, já investigamos e documentamos as condições nas prisões na África do Sul, Checoslováquia (antes da divisão em dois Estados), Egito, Espanha, Estados Unidos (além de um breve relatório sobre Porto Rico), Hong Kong, Índia, Indonésia, Israel e Territórios Ocupados, Jamaica, Japão, México, Polônia, Reino Unido, Romênia, Turquia, ex-União Soviética, Venezuela e Zaire. Também publicamos um amplo relatório global sobre este tema, o Human Rights Watch Global Report on Prisons, que tratava das condições carcerárias em outros países como China, Cuba e Peru. Neste relatório, como em todos os outros que tratam da condição carcerária, abordamos práticas governamentais segundo as normas básicas de pesquisa estabelecidas pelas Nações Unidas nas suas Normas Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, bem como demais provisões relevantes dos tratados internacionais de direitos humanos, das quais o país é Estado parte.

Afim de garantir a precisão dos dados e objetividade, a Human Rights Watch prefere basear-se em observações de primeira-mão das condições carcerárias e entrevistas diretas com presos, autoridades e agentes penitenciários, embora nos tenha sido necessário desenvolver uma metodologia alternativa de pesquisa para uso em países cujas autoridades impedem o acesso da fiscalização externa. Normalmente, ao conduzir investigações nas prisões, a Human Rights Watch segue algumas regras internas: os pesquisadores efetuam visitas quando eles próprios, e não as autoridades, escolhem os estabelecimentos a serem visitados; quando lhes é garantido que poderão entrevistar em particular os presos que eles escolherem; e quando lhes é permitido acesso a todo o estabelecimento examinado. Essas regras garantem que os pesquisadores não sejam expostos a prisões "modelos", presos "modelos" ou às partes mais apresentáveis dos estabelecimentos sob investigação. Se acesso nesses termos for negado, a Human Rights Watch documenta abusos baseada em entrevistas com ex-presos, presos em condicional, familiares dos presos, advogados, especialistas em prisões, agentes penitenciários, assim como provas documentais.

Na América Latina, felizmente, normalmente é garantido generoso acesso aos estabelecimentos prisionais da escolha dos nossos pesquisadores. A maioria dos países latino-americanos têm uma saudável política de abertura em relação à fiscalização das condições carcerárias, com apenas algumas exceções, como Cuba e Peru, que continuam hostis a tal exame. Aliás, talvez a relativa abertura dos sistemas prisionais da região--não apenas às organizações de direitos humanos mas também a grupos humanitários, religiosos e da comunidade--seja sua maior virtude.

O Brasil, com sua estrutura política democrática e a política oficial do governo de promoção dos direitos humanos, deveria apresentar um ambiente favorável à fiscalização dos direitos humanos. Percebemos, no entanto, que obter acesso às penitenciárias e delegacias do país, para nossa surpresa, foi muito difícil. Nossos pesquisadores enfrentaram obstruções de recusas claras e, mais freqüentemente, procedimentos com obstáculos desnecessários que implicavam, na verdade, em perda de tempo. Negociar os termos e as condições de acesso exigiram inúmeros faxes, dúzias de ligações telefônicas e várias horas de reuniões com autoridades estaduais--tempo que poderia ter sido melhor utilizado se gasto observando as condições nas prisões. Além disso, durante várias ocasiões, nossos pesquisadores tiveram a clara impressão de que a principal razão desses procedimentos era a de retardar a pesquisa. Obstruindo nossa pesquisa dessa maneira, ao invés de simplesmente negar nosso acesso às prisões, evidentemente, permite que as autoridades continuem mantendo uma fachada de simpatia pelas preocupações com os direitos humanos.

Até certo ponto, reconhecemos que nossas dificuldades em obter acesso foram em conseqüência do sistema federal brasileiro e, particularmente, seu sistema de controle estadual dos assuntos penais. Diferente dos outros países onde a Human Rights Watch fiscaliza as condições carcerárias, o Brasil não possui uma autoridade prisional centralizadora com poder de atender pedidos de acesso e facilitar as visitas. Ao invés de um sistema penitenciário nacional, cada estado administra seu complexo de penitenciárias, cadeias e delegacias. Além disso, como este relatório descreve, a responsabilidade pela fiscalização dos assuntos penais é dividida entre vários agentes estaduais que, individualmente ou em conjunto, arbitram quanto à permissão de acesso. Assim, para conduzir uma pesquisa nacional das condições carcerárias, foi necessário que contatássemos uma ampla gama de autoridades, das quais nossos pedidos de cooperação receberam respostas diversas. Algumas autoridades realmente empenharam-se para garantir o sucesso de nossas visitas às prisões; outras sequer retornaram nossas ligações telefônicas, ou foram abertamente antagônicas. Permissão para uma determinada visita, além disso, normalmente dependia da cooperação das autoridades diretamente à frente da instituição, isto é, do diretor da prisão e dos guardas. Em um distrito policial em São Paulo, por exemplo, o delegado titular não permitiu que falássemos com os presos, respondendo a uma ordem judicial que garantia o nosso acesso ao estabelecimento nestes termos: "Eu não me importo se o presidente da República pessoalmente autorizou sua visita, quem manda aqui sou eu!"(7)

Por fim, em apenas três das jurisdições por nós visitadas--Amazonas, Brasília e Rio Grande do Norte--as autoridades foram completamente abertas à fiscalização. O Secretário de Justiça do estado do Amazonas, em especial, foi extremamente receptivo ao nosso interesse nas prisões sob sua jurisdição e de fiel ajuda na garantia de livre e incondicional acesso para examinar as condições carcerárias e entrevistar os presos em particular. No outro extremo, o estado do Rio de Janeiro impediu a nossa entrada completamente; as autoridades prisionais sequer retornaram nossas ligações telefônicas ou nossos faxes, impossibilitando assim a nossa pesquisa nesse estado.

Talvez a recusa de acesso mais decepcionante tenha ocorrido no Presídio do Róger, no estado da Paraíba. Nos meses que antecederam a nossa visita, um total de onze presos foram mortos em três incidentes diferentes, o mais sangrento deles envolvia a tortura cruel de vários presos antes de suas mortes. Tendo encontrado com o médico legista que realizou a autópsia nos corpos dos presos, estávamos ansiosos para entrevistar as testemunhas oculares que sobreviveram ao incidente. Quando chegamos ao Presídio do Róger, encontramos três defensores públicos--advogados encarregados de prestar assistência jurídica gratuita aos presos--que queriam impedir a nossa entrada.(8) Eles, especificamente, opunham-se às nossas entrevistas em particular com os presos, mesmo que os próprios presos desejassem falar-nos a sós.

Sem que soubéssemos, no dia anterior, os promotores públicos tinham impetrado uma solicitação de "habeas corpus preventivo", de cinco páginas, no Tribunal de Justiça da Paraíba, para obstruir nossas entrevistas com os presos. Descrevendo essas entrevistas como "interrogatórios", a solicitação visava proteger os direitos dos presos à assistência jurídica. Antes que tivéssemos a oportunidade de entrar no presídio, a ordem judicial chegou deferindo o pedido. A ordem declarava, no entanto, que os presos tinham direito à presença de um defensor público durante nossas entrevistas e não que o defensor deveria estar presente durante toda a entrevista. Dessa forma, se os presos assim preferissem, poderiam abrir mão desse direito e fazer a entrevista conosco em particular. Apesar da ordem ser de conteúdo bem claro, as autoridades prisionais, seguindo as recomendações dos defensores públicos, não permitiram essa possibilidade, interpretaram a ordem como exigindo que os defensores públicos estivessem presentes durante todas as nossas entrevistas. Como descrito acima, o caráter confidencial é uma regra básica em nossas entrevistas com detentos. Fomos, assim, forçados a deixar o presídio sem falar com várias testemunhas oculares dos homicídios.(9) (Felizmente, já tínhamos entrevistado presos testemunhas oculares que tinham sido transferidos anteriormente para uma outra prisão.)

Apesar de obstáculos como esses, a Human Rights Watch coletou a maior parte das informações contidas neste relatório durante as detalhadas inspeções nas penitenciárias, cadeias e delegacias do país--num total de cerca de quarenta estabelecimentos visitados--e extensas entrevistas com presos. Passamos um dia em quase todas as penitenciárias e cadeias visitadas e várias horas em cada delegacia. Durante as nossas visitas, normalmente examinamos todo o estabelecimento, inclusive as celas de castigo e outras áreas de isolamento, a enfermaria, a cozinha, áreas de lazer, os banheiros e, é claro, as celas dos presos. Algumas das nossas entrevistas com presos foram conduzidas em grupos informais enquanto caminhávamos com eles pelas celas, mas a maior parte foi conduzida em entrevistas individuais e em particular.

Finalmente, várias fontes documentais forneceram informações adicionais sobre as políticas penais, normas e condições. Tais fontes incluem o Censo Penitenciário Nacional, artigos jornalísticos relevantes, documentos legais dos processos apurando incidentes de abusos cometidos por policiais e agentes penitenciários, laudos do Instituto Médico Legal, estudos acadêmicos sobre a legislação penitenciária e uma abundante gama de materiais fornecidos pela Pastoral Carcerária.(10)

Normas Internacionais de Direitos
Humanos Sobre o Tratamento dos Presos

Os mais importantes instrumentos internacionais e regionais comprometendo o Brasil claramente afirmam que os direitos humanos se estendem às pessoas que estão encarceradas. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, todos ratificados pelo Brasil, proíbem a tortura, tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes, sem exceção ou derrogação.(11) Tanto o Pacto Internacional sobre Diretos Civis e Políticos quanto a Convenção Americana requerem que "a reforma e readaptação social dos condenados" é a "finalidade essencial" do encarceramento.(12) Eles também determinam que "toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com respeito devido à dignidade inerente ao ser humano".(13)

Vários documentos internacionais adicionais detalham os direitos humanos das pessoas encarceradas, fornecendo normas básicas de como os governos devem cumprir com suas obrigações perante o Direito Internacional. As mais amplas de todas essas normas são as Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros das Nações Unidas, adotadas pelo Conselho Econômico e Social, em 1957. Outros documentos relevantes incluem o Corpo de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas sob Qualquer Forma de Detenção ou Aprisionamento, adotado pela Assembléia Geral, em 1988, e os Princípios Básicos para o Tratamento de Presos, adotado pela Assembléia Geral, em 1990. Vale a pena notar que, embora esses instrumentos não sejam tratados, eles fornecem interpretações vinculantes no que diz respeito ao conteúdo das normas contidas em tratados.(14)

Esses documentos reafirmam o princípio de que os presos conservam seus direitos humanos fundamentais. Como declara o mais recente desses documentos, os Princípios Básicos:

 

Exceto por aquelas limitações que são demonstradamente necessárias pelo fato de encarceramento, todos os presos devem manter seus direitos humanos e liberdades fundamentais estabelecidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e, onde o Estado em questão é uma das partes, pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e seu Protocolo Opcional, assim como aqueles direitos enumerados em outros pactos das Nações Unidas.(15)

Endossando essa filosofia, em 1992 o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas explicou que os Estados têm "uma obrigação positiva frente às pessoas que são particularmente vulneráveis por causa de sua condição de pessoas privadas de liberdade" e estabeleceu:

As pessoas privadas de suas liberdades não podem ser sujeitas à [tortura ou outra forma cruel, desumana ou degradante de tratamento ou punição], inclusive de experiência médica ou científica, nem tampouco a dificuldades ou constrangimentos além daqueles resultantes da privação da liberdade; o respeito à dignidade de tais pessoas deve ser garantido sob as mesmas condições das pessoas livres. Pessoas encarceradas devem gozar de todos os direitos enunciados pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, sujeitos às restrições que são inevitáveis a um ambiente fechado.(16)

De forma significativa, o Comitê de Direitos Humanos também enfatizou que a obrigação de se tratar pessoas encarceradas com dignidade e humanidade é uma norma fundamental aplicada universalmente, independente dos recursos materiais do Estado em questão.(17)


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